PUB

Convidados

Para uma história da interpretação literária em África: Críticos literários do século XX. Lewis Nkosi*

Por: Luís Kandjimbo**

Na sequência da reflexão anterior, voltamos ao tópico sobre as relações literárias internacionais africanas para abordar o lugar e o papel da crítica literária, bem como o conceito de valor e avaliação, no circuito de difusão e ensino das literaturas africanas. 

Para uma história da crítica 

Quando em finais do ano passado me debrucei sobre o filósofo da literatura democrata-congolês, Georges Ngal, fiz alusão à necessidade de uma história crítica literária africana, ao identificar quatro gerações de críticos literários e correntes dominantes na Filosofia e a Teoria das Literaturas Africanas.

 Nessa ocasião, considerei que existiam quatro gerações de académicos, escritores e intelectuais, Africanos e Afrodescendentes das diásporas. Não enunciei o nome de todos os críticos literários. Por essa razão, trago hoje à mesa da conversa a vida e obra de um membro da segunda geração de críticos literários Africanos. Numa perspectiva historiográfica e metacrítca, desenvolverei uma reflexão em torno do discurso de três críticos literários, dois da 2ª geração, Mohamadou Kane (Senegal, 1933-1995) e Lewis Nkosi (África do Sul, 1936-2010), e outro da 3ª geração Noureini Tidjani-Serpos (Benin, 1946). As referidas gerações de críticos literários fizeram história, ao terem desencadeado o debate sobre temas como a canonicidade e o ensino das literaturas africanas, ainda na década de 60. São assinaláveis os seguintes acontecimentos: 1) 1962 – Conferência de Escritores Africanos de Língua Inglesa, na Universidade de Makerere (Uganda); 2) 1963 – Colóquios da Universidade de Dakar (Senegal) e Fourah Bay College (Serra Leoa); 3) 1968 – Debate sobre a extinção do Departamento de Inglês e ensino das literaturas africanas na Universidade de Nairobi (Quénia).  

 

Para conhecer o crítico literário

Na literatura sul-africana, o nome de Lewis Nkosi é incontornável. Ele pertence a uma geração literária cuja existência está ligada ao jornalismo praticado por uma equipa de colaboradores da revista sul-africana «Drum», publicada em Joanesburgo nos anos 50 do século XX. Faziam parte desse círculo vários escritores, tais como, Nat Nakasa (1937–1965), Can Themba (1924 –1968), Bloke Modisane (1923–1986) e Arthur Maimane (1932–2005), Casey Motsisi (1932–77), além do músico Henry Nxumalo (1918–57). 

Entretanto, três acasos levaram-me a conhecer a obra de Lewis Nkosi. Em primeiro lugar, devo mencionar a aquisição de um livro de entrevistas com escritores Africanos. Seguiram-se o livro das actas do Colóquio de Yaoundé e a participação no congresso de Dakar. Em finais dos anos 80, andava sedento de conhecimento sobre outras literaturas africanas para melhor compreender a literatura angolana. Quem interpretava bem essa necessidade dos jovens da minha geração era o então Secretário-Geral da União dos Escritores Angolanos, Luandino Vieira. Contribuía para isso o facto de, na década anterior, a célebre editora inglesa Heinemann Educational Books, detentora da «African Writers Series», [Colecção de Autores Africanos], tinha decidido integrar autores Angolanos no seu catálogo. Um dos primeiros livros de ficção narrativa a serem traduzidos, em 1978, foi «A Vida Verdadeira de Domingos Xavier» de Luandino Vieira. Por isso, compreendendo a importância da presença de Angola na república africana das letras, o Secretário-Geral da União dos Escritores Angolanos não hesitou em convocar-me, igualmente, para integrar a delegação angolana, juntando-me ao Manuel Rui e E. Bovanena, que, em 1989, participaria no Congresso da Associação de Literaturas Africanas dos Estados Unidos da América, realizado pela primeira vez em África, nesse caso na cidade de Dakar, numa organização que tinha apoio da Universidade Cheikh Anta Diop. 

Já tinha lido a comunicação de Lewis Nkosi, apresentada ao Colóquio de Yaoundé de 1973. Por ocasião do congresso de Dakar, esperava ter a oportunidade de ouvi-lo falar. Não tive essa sorte. Mas conheci o poeta Dennis Brutus cuja poesia li, quando era estudante no Lubango. Como vimos, Lewis Nkosi também desenvolvia actividade jornalística. Comprovei o facto com a leitura da colectânea de entrevistas a escritores Africanos, reunidas numa edição a cargo de Dennis Duerden e Cosmo Pieterse, publicada em 1972 pela editora norte-americana Africana Publishing Corporation.

Entre tantas entrevistas, a referida colectânea conta com cinco realizadas, na década de 60, por Lewis Nkosi, aos seguintes escritores: Chinua Achebe, John Pepper Clark, Ciprian Ekwensi, Mazisi Kunene, John Nagenda, Cristopher Okigbo, Richard Rive, Wole Soyinka. A partir daí facilmente se podia concluir que tinha livros publicados e era possível prever a publicação de outros tantos.

Lewis Nkosi, o ensaísta

A primeira leitura, das reflexões que inicio hoje, cuidará de Lewis Nkosi, na imagem, o ensaísta e professor universitário sul-africano, cujos percursos e tendências discursivas corporizam o desenvolvimento da crítica literária como actividade de natureza ética, associada a uma hermenêutica da coerência. Estas são as ideias que ele enuncia na comunicação ao Colóquio de Yaoundé, «Le Critique Africain et son Peuple comme Producteur de Civilisation» [O Crítico Africano e seu Povo como Produtor de Civilização], organizado, em 1973, pela Sociedade Africana de Cultura. O título é eloquente: «The African Critic as a Creator of Values» [O Crítico Africano como Criador de Valores]. Por isso, não é casual que Lewis Nkosi tenha sido um dos oradores, já na Conferência de Escritores Africanos de Língua Inglesa, realizada no Uganda. Nesta e outras comunicações, Lewis Nkosi indagava-se incessantemente em torno das literaturas africanas, a sua relação com as literaturas europeias e o engajamento político do escritor Africano.

A Conferência de Makerere foi uma oportunidade que permitiu inscrever Lewis Nkosi no panorama dos debates pan-africanos, pois, encontrava-se a escassos dois anos longe do cerco do apartheid. Passou a ser colaborador de publicações periódicas históricas, situadas no continente africano e fora dele, nomeadamente, «Transition», «The New African», «The Guardian», «Présence africaine», «The New Statesman», «Black Orpheus», «The Spectator», «The Times Literary Supplement».

Em semelhante exercício de balanço, verifica-se que há na crítica literária africana um outro facto histórico que ocorre, em 2007, na Universidade do Gabão, por iniciativa do Departamento de Letras Modernas, três décadas depois do Colóquio de Yaoundé. Trata-se do Colóquio Internacional de Libreville que se realizou à luz da seguinte interrogação: «A crítica africana existe?». Foi um evento digno de registo. Mas, revelou-se como uma manifestação dos efeitos da glotobalcanização, em virtude de ter reunido maioritariamente críticos literários e professores universitários oriundos dos países africanos de língua oficial francesa. Portanto, a presente reflexão dedicada ao ensaísta e crítico literário sul-africano, Lewis Nkosi, faz apologia de uma história geral deste segmento dos sistemas literários africanos, para lá das barreiras e marginalizações linguísticas.

Do exílio ao regresso 

Lewis Nkosi nasceu na província de Durban, África do Sul. Foi jornalista na sua cidade onde nasceu, tendo trabalhado para «Ilanga Lase Natal» [Sol da Região do Natal], num período em que os editores eram os irmãos, Herbert Dhlomo (1903–56) e Rolfes Dhlomo (1906–71), e em Joanesburgo prestou serviço à revista «Drum». Cedo se distinguiu como um ensaísta que combatia o apartheid e o racismo institucional sul-africano. Após a proibição do que publicava, por força da Lei de Supressão do Comunismo, obteve um bolsa para prosseguir os seus estudos na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos da América. Deixou a África do Sul em 1961 com um visto que não autorizava o seu regresso. Inicia assim a sua vida de escritor no exílio. Dedicou-se à docência universitária, tendo leccionado disciplinas da área da Literatura, nas universidades norte-americanas de Wyoming e Universidade da Califórnia-Irvine. De de igual modo, nas universidades da Zâmbia e Varsóvia. Há um tópico que com regularidade Lewis Nkosi reelabora em suas reflexões do exílio. Trata-se das assimetrias existentes na literatura sul-africana escrita em inglês e afrikaans, por força das políticas culturais e educativas do apartheid. Num texto publicado em 1998, Lewis Nkosi qualifica esse fenómeno de natureza histórica como manifestação do «estatuto colonial da literatura negra sul-africana» que, no contexto pós-apartheid, deveria ser superado. Em seu entender, tal possibilidade não era discernível, num campo dominado por escritores brancos, sendo aos escritores negros reservado um lugar marginal. Para Lewis Nkosi, o mais forte dos indícios disso era o isolamento observável, perante um dos mais fecundos debates contemporâneos que se desenvolvia em torno de teorias culturais sobre o «pós-modernismo». 

Após quarenta anos de exílio, Lewis Nkosi regressou à África do Sul, em 2001. Lamentavelmente, durante os últimos anos da sua vida, viveu na indigência, doente e apoquentado por dificuldades financeiras. Faleceu em 2010, após um acidente de rodoviário.

Lewis Nkosi publicou obras em três géneros literários. a) Peças de teatro: The Rhythm of Violence [Ritmo de Violência] (1964), The Black Psychiatrist (2001) [O Psiquiatra Negro]; b) Romance – Mating Birds [Acasalamento de Pássaros] (1986), Underground People [Pessoas Subterrâneas] (2002) e Mandela’s Ego, [ O ego de Mandela] (2006); c) Ensaio e crítica: Home and Exile [Pátria e Exílio] (1965) e Tasks and Masks [Tarefas e Máscaras] (1981). 

Anatomia, interpretação e os padrões 

De um modo geral, os manuais que nas relações literárias internacionais tematizam os processos do «mercado da interpretação», sob influência de modelos ocidentais dominantes, estruturam-se com base em «monopólios de interpretação» fundados no logocentrismo, como os descreveu o alemão Wolfgang Iser (1926-2007).  Numa clara postura crítica contra tais monopólios, esse membro fundador da Escola de Constança, que reunia os teóricos da Estética da Recepção, defendia que a interpretação é um instrumento operativo que deve ser considerado como um acto de tradução. Curiosamente, este princípio constitui um dos pilares em que se ergue as teorias sobre a interpretação literária em África. 

Quando se investiga a história da teorização e da crítica literária das literaturas africanas, desde que sejam inscritos os investigadores e críticos Africanos, verifica-se que a interpretação e os padrões estéticos da crítica são objecto de problematização ainda na primeira metade do século XX, consolidando-se nas décadas seguintes. Tudo isso pode ser ilustrado pela obra dos membros das diferentes gerações de críticos literários e filósofos da literatura. Destacam-se Alexis Kagamé (Rwanda,1912-1981), Leopold Sedar Senghor (Senegal,1906-2001), Ezekiel Mphalele (África do Sul,1919-2008), Eldred Jones (Serra Leoa,1925-2020), Daniel Kunene (África do Sul,1923-2016), Mário Pinto de Andrade (Angola, 1928-1990).

Em conversas anteriores já mencionei, algumas obras de referência entre as quais «African Literature. An Anthology of Criticism nad Theory» [Literaturas Africanas. Antologia de Teoria e Crítica] (2013), organizada pelo nigeriano Tejumola Olanyan (1959-2019) e pelo ganense Ato Quayson. No entanto, há outras duas que vale destacar. Estou a referir-me à «La Littérature Africaine et sa Critique» [As Literaturas Africanas e sua Critica] (1986), da autoria do democrata-congolês Locha Mateso, e «African Literature, African Critics. The Formation of Critical Standards, 1947-1966» [ Literaturas Africanas, Críticos Africanos. A Formação de Padrões Críticos, 1947-1966] (1988), cujo autor é o norte-americano Rand Bishop.  

Portanto, os contributos de Lewis Nkosi para a edificação da crítica literária africana e seus padrões de interpretação e avaliação são inegáveis. A leitura da sua obra crítica e ensaística afigura-se obrigatória, quando se trata de procurar os melhores caminhos para conhecer aquilo a que designa por «República das Letras após a República de Mandela». De resto, este é o título de um belíssimo texto sobre a África do Sul, enquanto Estado sem nação, que apresentou num seminário realizado na Universidade da Cidade do Cabo, em 2001.

É com razão que o também já falecido professor e crítico literário queniano Chris Wanjala (1943-2018), traçou o perfil de Lewis Nkosi, nos seguintes termos: «Apesar das críticas que lhe eram dirigidas, Nkosi foi um dos mais talentosos escritores de não-ficção que o continente africano produziu. Os seus primeiros trabalhos, muitas vezes ousados, irreverentes e eruditos, apontaram o caminho para críticos e ensaístas posteriores.»

*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 04 de Setembro, aqui republicado com a autorização do autor.

**Ensaísta e professor universitário

PUB

PUB

PUB

To Top