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Aristides Pereira: O homem de Estado discreto e tranquilo

Por: Ilidio Cruz

A Presidência da República e a Fundação Amílcar Cabral estão de parabéns pela organização de uma conferencia e demais atos em saudação ao Centenário do Nascimento de Aristides Pereira, um dos cabouqueiros-mor da independência de Cabo Verde, da construção do Estado, impulsionador, garante e fator de estabilidade do processo de transição do sistema de governo de partido único para a democracia. Pelo incontornável papel que desempenhou nessas três etapas chaves da história recente de Cabo Verde, Aristides Pereira merece ser lembrado com respeito e sentido de gratidão pelas gerações atuais e futuras deste país.

O papel essencial desempenhado por Aristides Pereira (i) na luta armada de libertação nacional e na conquista das independências da Guiné Bissau e Cabo Verde; (ii) na construção e projeção da imagem internacional do Estado de Cabo Verde; e (iii) como impulsionador e garante da transparência e do respeito pelas regras do jogo democrático durante o processo de transição para o pluripartidarismo,  tem sido objeto de vários estudos e intervenções e vai continuar a sê-lo durante os eventos de comemoração do seu centenário – confronte por todos  as atas do Simpósio Internacional realizada em sua homenagem na Praia em novembro de 2017.

Tendo o sido o seu Conselheiro Jurídico durante o período de transição do sistema de governo de partido único para o pluripartidarismo (1990-1991), apraz-me aqui deixar alguns testemunhos sobre a forma exemplar como, na minha perspetiva, ele conduziu todo o processo, desde o anúncio da abertura política, em 19 de fevereiro de 1990, passando pela revisão do ordenamento jurídico e constitucional subsequente, seguida da realização das eleições e da passagem do poder para os novos órgãos democraticamente eleitos.

As ideias aqui expressas constam, aliás, na sua maior parte, dos discursos proferidos durante o período de transição e pretendem evidenciar o seu elevado sentido de Estado, de Ética, de enraizado apego aos sentimentos mais profundos do povo cabo-verdiano, que sempre o acompanhou e motivou durante a sua vida de homem público.

Assim, eivado de um grande simbolismo, na cerimónia de condecoração dos Combatentes da Liberdade da Pátria, com a Ordem Amílcar Cabral, em dezembro de 1990, lembrou aos presentes, entre eles, o Chefe de Estado Maior, que o país vivia momentos de profundas mudanças que exigiam a adequação das mentalidades das instituições, com a abertura política ocorrida em fevereiro de 90 e que culminaria com a realização das eleições legislativas e presidenciais de janeiro e fevereiro de 91, respetivamente. Saudou as medidas de reforma da lei Orgânica do ex Ministério da Defesa e Segurança no sentido da dissolução de qualquer estrutura de direção politica ou partidária incompatível com a nova ideia de direito emergente, e disse, claramente, que havia que continuar a rever todo o sistema normativo, com vista a criar um quadro jurídico e constitucional que definisse com clareza o papel das Forças Armadas no (novo) Estado, “dando garantias da sua total isenção e imparcialidade políticas no processo de construção e consolidação da democracia pluripartidária em curso”. Realçou que as “Forças Armadas integram a organização democrática do Estado, constitucionalmente conformado…devendo obediência às normas e princípios gerais consagrados na Constituição, fazendo parte da Administração do Estado, superiormente conduzido pelo Governo legítimo”. Isto dito por ele, enquanto Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, no momento em que, ainda nas palavras dele, o pais se encontrava a poucos dias de eleições competitivas que o conduziriam ao inicio da II República, expressão cunhada por ele, tem um alcance extraordinário, e explica, entre outros, a forma consciente, pacifica e exemplar como o processo de transição ocorreu, com elevada participação institucional e cívica, contribuindo para aumentar ainda mais o prestígio de Cabo Verde no mundo.

Aristides Pereira

Na mensagem de Ano Novo aos membros dos PAICV e do Governo, proferida a 10 de janeiro de 1990, lembrando que “o nosso conceito de desenvolvimento é inerente ao entendimento de que o Homem deve estar sempre no centro de todo o processo de modernização, o qual deve subordinar-se aos seus sentimentos e aspirações mais profundas”, desafiou os dirigentes políticos a rever as decisões tomadas no III Congresso do PAICV em 1988 – que decidia pela extroversão da economia, a implantação de um poder local eleito democraticamente e o aprofundamento da participação das diferentes classes na formação da vontade do povo, designadamente, através da criação de várias associações profissionais (médicos, escritores, engenheiros, arquitetos e economistas), mas não ainda pela abertura política. Enfatizou que os dados que tinham servido de base à análise já não eram os mesmos…. e concluiu dizendo que “temos, pois, de avaliar se a sociedade cabo-verdiana continua disposta a continuar a sua experiência, provada como válida, introduzindo os aperfeiçoamentos apontados pelo Congresso, ou se há novas exigências políticas que não podem ser satisfeitas pelo atual sistema”. Ainda realçou que o sistema eleitoral devia ser objeto de aperfeiçoamentos contínuos no sentido de espelhar a vontade política de democratização plena da sociedade e do sistema político.

Era a sua profunda convicção de que o Mundo se encontrava em mudança e que não poderiam subsistir duvidas de que a sociedade cabo-verdiana não só não ficaria indiferente como seria envolvida por ela.

Como corolário destas palavras, pouco mais de um mês depois, a 19 de fevereiro de 1990, foi declarada a abertura política do país ao pluripartidarismo.

Considerava exaltantes os acontecimentos vividos em 1990, ano do XV Aniversário da Independência, e as transformações em curso que conduziriam, dizia ele, ao “pluripartidarismo e ao nascimento da II República”.

Dizia que, como Presidente da República, tudo faria, na defesa dos superiores da Nação, para que o processo decorresse num quadro de respeito, estabilidade e confiança mútua, das diversas forças políticas em presença.

Demitiu-se das funções de Secretário Geral do PAICV, assumindo total autonomia em relação às diversas forças políticas e dando uma garantia suplementar de transparência e isenção do Presidente da República na condução do processo de transição. Recebeu na Presidência da República o movimento que conduziria à formação do MPD. Promulgou a revisão da Constituição, a nova lei de formação dos partidos políticos, as leis referentes à liberdade de associação, de imprensa e de manifestação, as leis eleitorais, enfim, todas as leis que enformavam e conformavam a nova ideia de direito do momento.

No discurso pronunciado por ocasião da proclamação da Associação dos Jornalistas, em novembro de 1990, chamou a atenção para a importância da comunicação social como fator de coesão e desenvolvimento – ou mesmo sobrevivência – da democracia. Considerava importante a não manipulação da comunicação social por nenhum grupo social, seja ele político, económico ou profissional. Devia imperar o pluralismo na comunicação social e que as minorias não deveriam ser excluídas. Ao lado do trabalho e da participação dos profissionais na produção, gestão e orientação dos órgãos de comunicação social, deveria haver espaço suficiente para o acesso do público aos órgãos, para a sua reação, interpelação, e enfim, para a realização do direito de informar e ser informado.

A magnanimidade de Aristides Pereira não se revelou apenas na condução do processo que desembocou nas eleições legislativas e presidenciais. Ela foi ainda maior nos momentos subsequentes de reconhecimento dos resultados e de entrega do poder aos novos titulares, momentos esses marcados por uma elevada ética e dignidade públicas.

Na mensagem dirigida ao país após os resultados das eleições legislativas de 13 de janeiro de 1991, disse:

– “A jornada do dia 13 de janeiro vai ficar na nossa História. Ela representa a passagem do testemunho do PAICV para o MPD. O país escolheu e o que o país escolhe deve ser respeitado como ato de soberania…”. 

Após felicitar o povo cabo-verdiano pelo civismo e maturidade demonstrados nas assembleias de voto, felicitou o MPD pela expressiva vitória eleitoral e do mesmo modo saudou o PAICV pela forma digna como aceitou o “veredicto do povo”. Por fim apelou a todos a meter “mãos à obra para honrar Cabo Verde como Nação e o cabo-verdiano como povo”.

Nessa mesma linha, no discurso pronunciado na Assembleia Nacional, em 26 de janeiro de 1991, perante os novos deputados eleitos e o Governo saído dessas eleições, começou por dizer que “gerações e gerações de cabo-verdianos, cidadãos anónimos, poetas, escritores, músicos, políticos, sonharam possuir uma sociedade desenvolvida, de homens e mulheres livres, solidários e iguais. No caminho sempre inacabado da concretização desse sonho, a Independência nacional representou uma etapa singular e decisiva. Ela permitiu-nos construir um Estado que funciona e um importante capital de credibilidade, em suma, um país dinamicamente virado para o futuro”.

Prosseguiu, valorizando e ligando indivisivelmente o passado ao presente histórico, dizendo:

– “do mesmo modo, as eleições legislativas de 13 de janeiro, representam o iniciar de um novo ciclo na História destas ilhas…13 de janeiro ficará na História, porque representa um importante salto qualitativo na construção do Estado de direito democrático, um Estado de direito onde podem e devem ser criadas mais e melhores condições de livre desenvolvimento da pessoa humana na sociedade…onde os direitos fundamentais não sejam simplesmente uma garantia do individuo perante o Estado mas também um modelo de organização do próprio Estado e da sociedade…em que os partidos políticos desempenhem um papel importante na formação e expressão da vontade popular…em que os direitos da pessoa humana sejam vistos cada vez mais como uma conquista irreversível da cada cidadão…um Estado de direito em que o Estado não seja uma entidade distante mas possa promover o desenvolvimento como resultante de uma interação permanente entre os homem e o Estado, na salvaguarda da liberdade, mas também da igualdade e solidariedade”.

De seguida felicitou o Primeiro Ministro, eleito, Dr. Carlos Veiga, e toda a equipa governamental, nas suas palavras, “pela honrosa e pesada tarefa…de conduzir os destinos do país”.

Esta postura de Estadista, no sentido de Aristóteles, de querer produzir um certo caráter moral nos seus concidadãos, uma disposição para a virtude e para prática de ações virtuosas, ou no sentido da definição de Houaiss, pessoa que exerce a liderança política com sabedoria e sem limitações partidárias, foi igualmente mantida na sua última mensagem à Nação, como Chefe de Estado, quando perdeu as eleições com o candidato Dr. António Mascarenhas Monteiro, a 17 de fevereiro de 1991. Na sua alocução à Nação disse:

– “O povo de Cabo Verde acaba de escolher, livre e soberanamente, o novo Presidente da República. Com as eleições que acabam de ter lugar, Cabo Verde afirma, mais uma vez e em toda a plenitude, a sua condição de ator do seu próprio destino (…).  Participante ativo da obra realizada ao longo de quase três décadas e meia de combate, primeiro pela conquista da independência e da dignidade nacional, mais tarde pela construção de um país livre e soberano, é com honra e dignidade que encaro os resultados destas primeiras eleições diretas, cuja realização gratifica um sonho acalentado ao longo de décadas de dedicação à causa nacional (…). É com serenidade e modéstia, com o mesmo civismo que pautou a minha campanha que, mais uma vez, em resposta aos anseios da Nação cabo-verdiana, acato e assumo por inteiro o veredicto popular”.

Antes de terminar, exprimiu um sentimento de fraterna amizade a todos os cabo-verdianos, com especial lembrança para aqueles que o tinham acompanhado na luta pela independência e pelo desenvolvimento do país, e saudou o Presidente eleito, Dr. António Mascarenhas Monteiro, a quem augurou os maiores êxitos no desempenho da mais alta magistratura da Nação.

Aristides Pereira é sem sombra de dúvidas, ao lado de Amílcar Cabral e de outros heróis nacionais, um dos grandes pais fundadores desta Nação (expressão que aqui tomo de empréstimo aos “Founding Fathers” dos Estados Unidos, que abrange os líderes políticos que assinaram a Declaração da Independência dos Estados Unidos ou participaram na Revolução Americana como Patriotas e assinaram a Constituição). Além disso, Aristides Pereira deu um contributo enorme para a construção do Estado e o prestígio de Cabo Verde no mundo, como seu primeiro Presidente, e por fim, mas não por último, soube conduzir o processo de transição do país para a II República, de forma exemplar, digna, na paz e tranquilidade.

Depois de deixar o poder, não obstante o seu enorme peso na História deste país, manteve sempre uma postura de maior discrição, leveza, humildade e impressionante simplicidade, não raras vezes sendo visto a conduzir, pelas ruas da cidade da Praia, o seu pequeno Toyota Yaris mini, de cor verde alface, de apenas 1300 CC, perante o olhar curioso dos transeuntes. 

Que os cabo-verdianos saibam honrar a sua memória!

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