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A insustentável leveza dos dados estatísticos oficiais sobre a pobreza em Cabo Verde

Por: João Serra

O INE apresentou, no dia 09 do corrente mês de agosto, as estimativas da pobreza do primeiro e do segundo trimestres de 2023, baseados nos dados recolhidos no IV Inquérito às Despesas e Receitas Familiares (IV IDRF).

De acordo com os dados divulgados, a taxa da pobreza global (no inquérito anterior designada de pobreza absoluta) passou de 22,2% no primeiro trimestre para 20,2% no segundo trimestre, representando uma queda de dois pontos percentuais (p.p.). No mesmo período, a pobreza extrema também sofreu uma redução, com a taxa a cair de 11,8% para 9,4%, uma diminuição de 2,4 p.p.

Segundo a instituição, as estimativas apresentadas foram determinadas com base nos limiares de pobreza do III Inquérito às Despesas e Receitas Familiares, realizado em 2015. Essa escolha seria motivada por recomendações técnicas do Banco Mundial, que desaconselharam uma atualização do limiar antes do término da operação em curso, esclarece o INE. Nesse quadro, o instituto alerta para o facto de os valores indicados não serem resultados preliminares do IV IDRF. Estes só serão divulgados no ano 2024 (tanto os preliminares como os definitivos).

Assim sendo, até lá, prevalecem os dados saídos do terceiro e, até à presente data, último Inquérito às Despesas e Receitas Familiares, feito em 2015 (IDRF-2015).

Conforme o IDRF-2015, existiam em Cabo Verde, em 2015, 179.909 pessoas em situação de pobreza absoluta ou global, o que corresponde a 35,2% da população, então residente no país, estimada em 511.217 habitantes. Foram considerados pobres aqueles que viviam em agregados familiares com consumo médio anual por pessoa abaixo do limiar da pobreza, fixado, no meio urbano, no valor de 95.461 escudos (ecv) – 7.955 ecv/mês – e, no meio rural, no valor de 81.710 ecv, isto é, 6.809 ecv/mês.

Dos 179.909 pobres, estimou-se que 54.395, cerca de 10,6% da população estimada, viviam em extrema pobreza, ou seja, viviam em agregados familiares com rendimentos que permitiam consumos “per capita” anuais abaixo de 49.699 ecv (4.142 ecv/mês), no meio urbano, ou menos de 49.205 ecv (4.100 ecv/mês), no meio rural.

Refira-se que limiar de pobreza corresponde ao nível do rendimento abaixo do qual se considera que uma família se encontra na situação de pobreza.

De 2015 a 2022, praticamente não houve progresso na situação dos pobres e dos muito pobres, segundo estimativas oficiais. 

Com efeito, de acordo com dados do INE, publicados do mês de abril de 2023, em 2022 a taxa de pobreza global situou-se em 28,1%. Em outubro de 2022, o INE estimara que, em 2020, 13,1% da população em Cabo Verde vivia abaixo da linha da pobreza internacional – população que vivia com menos de 1,9 dólar dos EUA (cerca de 190 ecv) por dia.

Os dados divulgados pelo INE, no dia 09 de agosto, pp, sugerem, agora, uma tendência de redução significativa da pobreza global, na ordem de 15 p.p., e uma ligeira redução da pobreza extrema, na ordem de 1,2 p.p., entre 2015 e o segundo trimestre de 2023, mantendo, todavia, o valor do limiar da pobreza de 2015.

A meu ver, é ainda muito cedo para se aferir se houve ou não uma redução efetiva da pobreza entre 2015 e 2023, nomeadamente por o limiar da pobreza de 2015 ter sido mantido no primeiro semestre de 2023, o que poderá não ser correto. Ou seja, as linhas de pobreza de 2015 tinham, necessariamente, de ser atualizadas, descontando, ao menos, o efeito da inflação. Dito de forma simplista: para que os dois limiares de pobreza sejam “comparáveis”, o limiar da pobreza de 2023 tem de descontar, pelo menos, a inflação acumulada de 2015 a 2023. 

Na verdade, os valores considerados em 2015 como limiares de pobreza encontram-se totalmente desfasados da realidade de hoje (sensivelmente oito anos depois), devido ao efeito da inflação. De facto, com tais valores compra-se, atualmente, muito menos bens e serviços essenciais do que se comprava em 2015, devido à inflação média anual acumulada (IMA) de 2015 a 2022 – contas feitas por defeito – superior a 12%, mas sobretudo à IMA acumulada do índice referente aos produtos alimentares não transformados e às bebidas não alcoólicas, superior a 20%. A inflação, aliada à, praticamente, não atualização salarial, sobretudo por parte do Governo, provocou uma forte erosão do poder de compra das famílias, penalizando fortemente as famílias mais vulneráveis que gastam uma parte maior das verbas disponíveis ao consumo dos bens básicos. 

Portanto, era absolutamente necessário que, na falta de definição dos novos “limiares da pobreza monetária absoluta por pessoa por ano”, o limiar da pobreza de 2023 fosse atualizado em função da inflação acumulada a partir do limiar da pobreza de 2015, tanto para a pobreza global como para a pobreza extrema.

Nos países desenvolvidos, é comum definir-se a pobreza de acordo com um limiar relativo, abaixo do qual os cidadãos são considerados pobres.

Seguindo, por exemplo, a abordagem dos gabinetes estatísticos europeus, este limiar de pobreza, ou “linha de pobreza” (numa tradução literal do inglês “poverty line”), consiste em 60% da mediana do rendimento disponível observado no ano em causa. Ou seja, quem tem um rendimento igual a 60% da mediana, ou inferior, é considerado pobre. 

Desta forma, esta métrica é relativa (e não absoluta), já que varia, por um lado, com o tempo (consoante a evolução dos rendimentos) e, por outro lado, com o país, na medida em que os rendimentos medianos não são iguais em todos os países. Assim, ser pobre, por exemplo, em Portugal é, estatisticamente, muito diferente de ser pobre na Suécia ou na Bulgária. 

Mas, seja como for, os limiares de pobreza são atualizados anualmente.

De acordo com o INE de Portugal, o limiar da pobreza, fixado 60% da mediana do rendimento disponível, fixou-se em 5.443€ anuais em 2015 – cerca de 453,6€/mês (50.012 ecv/mês) e 6.608€ anuais em 2021 – cerca de 550,7€/mês (60.719 ecv/mês). E 60.719 ecv/mês é um valor entre 9 a 15 vezes superior aos limiares da pobreza global e da pobreza extrema em Cabo Verde.

Também o Banco Mundial tem alterado, de tempo em tempo, os seus valores de referência da pobreza, nomeadamente em 2015 e 2018. A partir de 2018, passou a adotar uma nova referência para o indicador condizente com as diferenças entre os países, estabelecendo três faixas de extrema pobreza para países com diferentes níveis de rendimento: 1,90 dólar dos EUA (USD)/dia para países de rendimento baixo, 3,20 USD/dia para países de rendimento médio-baixo e 5,50 USD/dia para países de rendimento médio-alto, em termos de paridade de poder de compra (PPC). Assim, quanto maior for o nível de rendimento médio de um país, maior a linha de pobreza para que se mantenha a correspondência com o nível de rendimento médio da sua população. 

Cabo Verde é um exemplo de país de rendimento médio-baixo, logo a linha de extrema pobreza recomendada pelo Banco Mundial é de 3,20 USD PPC/dia. Estranha-me o facto de o INE não ter considerado esse limiar para a medição da pobreza extrema em 2023, preferindo, antes, o limiar muito inferior estabelecido em 2015 – cerca de 1,4 USD, à taxa de câmbio desse ano.

Julgo que o INE tem muito trabalho a fazer para oferecer ao país valores de limiar de pobreza que sejam consistentes, isto é, condizentes com a realidade de Cabo Verde, considerando, é certo, as melhores práticas e recomendações internacionais.

A instituição deveria aproveitar o IV IDRF para assinalar a importância de repensar a medição da pobreza em Cabo Verde, assim como a necessidade de adequar as políticas na realização do direito universal a um nível adequado de recursos para obter um nível de vida minimamente digno. Isso permitirá, nomeadamente, proceder a alterações nos valores mínimos garantidos por diferentes medidas de política e configurações familiares, incidindo-se, por exemplo, nos valores monetários garantidos,  nos escalões de rendimento considerados, bem como nos limiares de insuficiência económica associados a diferentes benefícios em espécie.

Praia, 27 de agosto de 2023

*Doutor em Economia

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