Djonzinho Cabral, de 101 anos completos em Março último, foi imortalizado pelos Tubarões, na voz do saudoso Ildo Lobo, e diversos outros artistas de Cabo Verde, o mais recente dos quais Dino D’ Santiago. É a memória viva de um século de vida que se confunde com a história do país. “Quando os deputados de Santa Cruz, independentemente do partido, falam alguma coisa errada no Parlamento, mando-os chamar para dar-lhes um puxão de orelhas. Todos me respeitam”, diz.
João Alves Afonso, conhecido carinhosamente por Djonzinho Cabral – “la di Txada Fazenda”, para que não haja dúvidas – , revela a origem do seu “nominho”, celebrizado pelos Tubarões, uma história surgida de um gesto de confiança e orientação familiar.
“Na verdade, eu não me chamo Joãozinho Cabral”, começa por esclarecer, “o meu nome é João Alves Afonso. A partir de um conselho que dei a uma filha minha, o meu compadre tocador de gaita, Fefé de Nha Txam, que já morreu, inspirou- -se no episódio e deu-me o apelido de Cabral para disfarçar, para não me comprometer”.
Sempre muito simpático e lúcido, o nosso entrevistado reconstituiu ao A NAÇÃO o episódio com uma das suas filhas, a mais velha, emigrada há vários anos na Itália, e que acabou por ditar o surgimento desta que é uma das músicas mais conhecidas de Cabo Verde, parte do álbum que haveria de projectar Os Tubarões internacionalmente, em 1979.
Só que a história de João Alves Afonso parece ser bem outra daquela narrada pela música celebrizada pelos Tubarões, do pobre camponês, rendeiro, que se dispõe a vender o único boi para o morgado não lhe tomar a terra por falta de pagamento da renda.
“A minha filha tinha 18 anos, e um pretende pediu-lhe em casamento por carta. Ela trouxe-me a carta para que eu a lesse… Respondi-lhe que não ia fazer isso porque a carta era para ela e não para mim”, relata Djonzinho, enfatizando a sua crença na capacidade de a filha tomar as suas próprias decisões e não ele, como pai. “Mas ela insistiu tanto, que Djonzinho Cabral, de 101 anos completos em Março último, foi imortalizado pelos Tubarões, na voz do saudoso Ildo Lobo, e diversos outros artistas de Cabo Verde, o mais recente dos quais Dino D’ Santiago. É a memória viva de um século de vida que se confunde com a história do país. “Quando os deputados de Santa Cruz, independentemente do partido, falam alguma coisa errada no Parlamento, mando-os chamar para dar-lhes um puxão de orelhas. Todos me respeitam”, diz. Geremias S. Furtado eu tive que ler a carta, e, depois, ela perguntou-me que resposta devia dar a esse pretendente, se aceitava ou não o pedido de casamento. No dia seguinte, depois de pensar no assunto, eu disse-lhe que eu precisava ver quem era o jovem, quem eram os seus familiares, porque só assim eu poderia saber se ele estava à altura dela ou não.
Naquele tempo, as pessoas casavam-se por interesse… Quando fui à casa desse jovem que queria casar com a minha filha deparei-me com mais de 12 pessoas a viver naquela habitação, diante do que vi acabei por dizer à minha filha que não ir morar numa casa com 12 pessoas… Foi a partir desse episódio que o meu compadre, Fefé de Nha Txam, tocador de gaita, me pôs o apelido de Cabral, mas o meu nome é João Alves Afonso e o meu pai chamava-se Manuel Alves Afonso”.
E foi assim que João Alves Afonso tornou-se em Djonzinho Cabral, “lá di Txada Fazenda”, em Santa Cruz, pois, como nos relata também Alberto Afonso, filho do nosso entrevistado, “na verdade, a partir do episódio, Fefé de Nha Txam fez duas músicas que Os Tubarões acabaram por fundir numa só…”
O certo é que tendo se tornado numa figura célebre, na Achada Fazenda, em Santa Cruz, não há quem não conheça Djonzinho Cabral, amigo de todos, de gente simples a políticos. Aliás, apesar da idade, quando bem de saúde, é difícil encontra-lo em casa… “Ele não pára”, disse-nos um dos familiares quando o procuramos para saber da sua história, neste ano de centenário de Amílcar Cabral.
Encontro com a história
As interações deste centenário com figuras políticas nacionais são recordadas quase a todo momento por Djonzinho Cabral. Parece ter particular prazer nisso. Pedro Pires e José Maria Neves parecem ser dois íntimos seus, presentes através de retratos de um e do outro. Aliás, conversa vai e conversa vem, num dado momento Djonzinho Cabral pergunta-me:
“Não sabes que até o ex-Presidente da República Pedro Pires gosta de me ter por perto?… Sim, ele é meu amigo. Não veio ver-me pelos meus 101 anos porque teve um problema, mas mandou justificar-se. Convivi com todos eles… O Aristides Pereira também…”
A isso soma-se a lembrança do período em que tentou a vida em Portugal, como emigrante, e o seu espanto ao deparar-se com “portugueses” pobres…
“A primeira vez que fui a Lisboa foi em 1964 vi uns portugueses numa vala a trabalhar e o meu chefe, vendo o meu espanto, perguntou-me a razão e eu respondi-lhe que nunca tinha visto um português numa vala a trabalhar. Ele perguntou-me o que então os portugueses faziam em Cabo Verde; respondi-lhe que mandavam nos cabo-verdianos. Aí ele me disse que em Portugal havia cabo-verdianos que mandavam também em portugueses e eu respondi-lhe que isso era bom, porque se havia cabo-verdianos a mandar em portugueses é porque eles tinham competência para mandar”
Nas suas memórias, Djonzinho conta que chegou a conhecer e a cruzar-se com Amílcar Cabral, momento marcado pela partilha de visões e esperanças para o futuro de Cabo Verde. “A última vez que nós nos encontrámos foram cerca de 10 minutos de conversa no porto de Pedra Badejo. Ele prometeu que haveria de voltar para falarmos depois, mas nunca mais o vi, porque o mataram anos mais tarde”.
Tendo vivido vários dos momentos marcantes da história de Cabo Verde, alguns desses momentos parecem estar profundamente enraizadas na vida pessoal deste santiaguense, de Santa Cruz. Lembra-se da mobilização que foi preciso fazer, em 1974-75, para mover a sociedade cabo-verdiana em direcção à independência, uma missão pessoalmente compartilhada com figuras como Mozinho Monteiro, Fefé di Nha Txam e Adriano Monteiro…
Andamos por tudo quanto é lado a mobilizar as pessoas para a independência de Cabo Verde. Mas quando chegou a Independência eu vi a diferença. Para o nosso desgosto fizeram do António Barreto o ‘morgado’. Houve também uma injustiça com o Fefé de Nha Txam que lutou dia e noite com a sua gaita, andámos juntos pelo Monte Negro, Porto Bandeira, Matinho, para tirar as pessoas do ‘colonial’ para passarem para o PAIGC… Tudo isso me deixou desgostoso.”
Reflexões de um século de Vida
Com uma vida marcada por acontecimentos vários, Djonzinho Cabral oferece um testemunho vivido dos desafios e triunfos experimentados pela sua geração. A sua narrativa sobre a fome de 1947, o esforço para sustentar a família, e a perda de entes queridos, inclusive da mulher, companheira de toda a vida, ajudam a fazer um retrato da resiliência e da determinação que caracterizam o espírito do camponês das ilhas, neste caso de Santiago.
“Na fome de 47 eu morava com a minha mãe e as minhas duas irmãs. Saía para o porto de Santa Cruz todos os dias e trabalhava na calceta para ganhar quatro mil réis por dia, o que não era muito dinheiro. Depois casei-me com a minha mulher, ela era do Porto, e em 1950 engravidou, lutamos dia e noite para acabarmos com a miséria. Tivemos seis filhos, quatro rapazes e duas meninas; morreram três rapazes e ficou um cujo nome é Alberto. Eu tinha 24 anos e a minha mulher 22 quando nos juntamos. Hoje ela é falecida, faz 11 anos”, relembra, com saudade.
Neste percurso de vida, Djonzinho Cabral e a esposa levaram avante o seu compromisso inabalável de educar e formar os filhos, no que destaca o papel da educação como um pilar para o futuro. O filho Alberto Afonso é administrador do Centro Nacional Ortopédico e de Reabilitação Funcional (CENORF), com sede em Achada de São Filipe, na cidade da Praia.
“Naquele tempo a escola era na Praia, lutámos para colocar os nossos filhos na escola, vendemos ouro, vendemos o que tínhamos, para isso e, graças a Deus, fizeram-se gente grande…”
Independência e progresso
A independência de Cabo Verde, em 1975, é um marco histórico com sentimentos mistos para Djonzinho Cabral, alegria e críticas ao que se seguiu. Nesta reflexão lembra-se das dificuldades para levantar o país a partir de quase nada e depois, em 1990-91, a mudança política, como momento de nova esperança, com entusiasmo e decepções.
Hoje, apesar das críticas, Djonzinho mantém uma visão esperançosa em relação ao futuro de Cabo Verde. E a importância de se valorizar e respeitar o trabalho de cada indivíduo para a construção de uma sociedade melhor.
“Os políticos têm que trabalhar melhor e os que já trabalharam não é para desanimarem, ou ficarem tristes, porque tiveram a sua vez e deram o seu contributo para o país que hoje temos. Eu, com 101 anos, ainda não terminei de finalizar o meu lar, que dirá os mais novos que ainda precisam encontrar o seu lar. Que cada um que entre no poder trabalhe para melhorar e deixar que outro venha e melhore cada vez mais”, aconselha Djonzinho, apontado para um rádio que tem na sua cabeceira e para o televisor ao lado de sua cama.
“Acompanho tudo. O que se passa no país e no mundo. Quando os deputados de Santa Cruz, independentemente do partido, falam alguma coisa errada no Parlamento, mando-os chamar para dar-lhes um puxão de orelhas. Todos me respeitam”, assegura.
A vida de João Alves Afonso, “Djonzinho Cabral”, entrelaça-se com a história de Cabo Verde, numa rica tapeçaria de lutas, sucessos, e um incansável espírito de perseverança. “Aos jovens digo que se concentrem numa única pessoa e façam a sua vida a dois. Esta é a fórmula para uma vida de sucesso, que ninguém se iluda”, conclui.
Geremias S. Furtado