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Um precursor no estudo do Pluralismo Jurídico Africano: Taslim Olawale Elias e os contributos para a definição do Direito Consuetudinário*

Por: Luís Kandjimbo**

O tópico da nossa conversa retoma a tematização do costume como fonte de direito no chamado sistema jurídico de língua portuguesa. É de Filosofia do Direito dos filósofos que se trata. A referência aos sujeitos que a cultivam não pode ser feita no singular, contrariamente ao que, por lapso, ficou plasmado no título do artigo anterior. Admite-se que exista uma Filosofia do Direito dos juristas. O pensamento sistemático sobre o costume jurídico será aqui abordado na perspectiva de quem tem interesse pela história da Filosofia do Direito Africana. Para o efeito, importa conhecer a obra de Taslim Olawale Elias (1914-1991), na imagem, um dos precursores dos estudos do Direito Consuetudinário Africano. Embora seja, de igual modo, reconhecido pelo seu saber enciclopédico e reputação, enquanto juiz da Corte Internacional de Justiça, a nossa breve reflexão não abrangerá a actividade que desenvolveu no campo do direito costumeiro internacional. 

T. Olawale Elias

T. Olawale Elias, o precursor

Taslim O. Elias nasceu na cidade nigeriana de Lagos, em 1914. Após a formação escolar primária e secundária partiu para a Inglaterra, onde prosseguiu os estudos na Universidade de Londres. Com a licenciatura e a formação superior em Direito, obteve o seu Doutoramento, em 1949. Exerceu advocacia, além de ter sido investigador nas universidades de Manchester e Oxford. Ao serviço da Universidade de Deli, em 1956, foi professor visitante de Ciência Política. No ano seguinte, assumiu a direcção da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Desempenhou vários cargos no seu país de origem. Notabilizou-se como membro do Comité de Peritos da Organização das Nações Unidas, além de ter sido membro da comissão de redacção da carta da Organização da Unidade Africana. Após a sua eleição pela Assembleia Geral da ONU como juiz da Corte Internacional de Justiça de Haia, em 1975, foi, sucessivamente, Vice-presidente e Presidente, de 1979 a 1983. Eminente jurista e filósofo, figura igualmente na galeria dos mais ilustres filhos de África. Faleceu na sua cidade natal, em 1991.

Direito, moral e experiência africana 

Se o mito da origem grega da filosofia suscitasse alguma crença verdadeira, a natureza do Direito Consuetudinário Africano seria analisada unicamente de acordo com os fundamentos filosóficos de uma das tradições ocidentais: o sistema anglófono da «common law» ou o europeu continental romano-germânico. Isto quer dizer que, em virtude de o Direito Consuetudinário ser um domínio negligenciado no chamado mundo ocidental, limitar-nos-íamos a tomar referências de filósofos europeus e americanos que lhe prestam alguma atenção. Por exemplo, o italiano Norberto Bobbio e o seu «La Consuetudine come Fatto Normativo» (1942) [O Costume como Facto Normativo] ou o norte-americano James Bernard Murphy e o seu «The Philosophy of Customary Law» (2014) [A Filosofia do Direito Consuetudinário]. Mas a história da Filosofia do Direito aponta para um outro sentido. Chega-se à conclusão de que, na Europa e nos Estados Unidos da América, o costume jurídico, a partir de determinado momento, passou a ser qualificado como uma fonte menor do direito interno. Curiosamente, em 1966, registou-se um caso inédito, nos meios universitários portugueses. Foi a publicação de uma tese de doutoramento sobre o direito sucessório consuetudinário da África Central, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de Londres. Com surpresa, constata-se que o seu autor, Narana Coissoró, não refere a obra de Taslim Olawale Elias, publicada seis anos antes. Para os cultores do Direito Comparado e da Filosofia do Direito na CPLP, sugere-se assim a necessidade de conhecer o modo como se pode explorar a experiência jurídica africana. É o que propõe T. Olawale Elias, ao defender o costume como direito positivo, sem subscrever as teses do positivismo jurídico. Na verdade, revela-se útil distinguir dois termos da equação: o direito positivo e o positivismo jurídico. O primeiro é objectivamente formado por normas que vigoram numa determinada comunidade, podendo manter vínculos com a moral. O segundo constitui uma corrente filosófica que pugna pela separação do direito e da moral.

 Clássicos do pensamento africano

Ora, até à segunda metade do século XX, as sínteses temáticas da História da Filosofia do Direito Africana eram escassas. Deste modo, não se pode esperar abundante bibliografia sobre a tematização do Direito Consuetudinário. O que se invoca aqui é a sua qualidade, não necessariamente a quantidade das reflexões sobre o tema ou o meio através do qual se chega ao seu conhecimento. Por outro lado, a relativamente abundante produção bibliográfica no campo disciplinar da Antropologia Jurídica, não pode servir para confundi-la com a Filosofia do Direito Consuetudinário Africana. Por isso, o rigor obriga a formular a seguinte pergunta: Quais são as fontes do Direito Consuetudinário? Onde se localiza o pensamento sistemático que lhe é consagrado? O livro de T. Olawale Elias procura responder a estas perguntas. Não temos conhecimento da tradução deste livro em língua portuguesa. Mas, em língua francesa, foi publicado no início da década de 60 do século passado pela editora pan-africana, Présence Africaine. 

Em matéria de reconhecimento do valor que se atribui ao costume jurídico em África, o pensamento autónomo manifesta-se no âmbito de uma tradição filosófica associada a sistemas políticos, instituições e actividades dos sábios que transmitem e dominam determinados saberes específicos. Nos países africanos de língua inglesa, onde a tradição jurídica colonial coexistia com as tradições jurídicas endógenas, já nos séculos XIX e XX, era possível identificar autores africanos e respectivas obras. Por exemplo, J. Mensah Sarbah (1864-1910), «Fanti Customary Laws»[Costumes Jurídicos Fanti] (1904), J. B. Danquah (1895-1965), «Akan Laws and Customs» [Leis e Costumes Akan](1928), K.A.Busia (1913-1978), «The Role of the Chief in the Modern Political System of Ashanti» [O Papel do Chefe no Sistema Político Moderno Ashanti](1951), do Gana; A.K. Ajisafe, «Laws and Customs of the Yoruba People» [Leis e Costumes do Povo Yoruba] (1924), T.Olawale Elias, «Nigerian Land Law and Custom» [Direito Fundiário e Costumes Nigerianos] (1951), «Groundwork of Nigerian Law» [Fundamentos do Direito Nigeriano] (1954), «The Nature of African Customary Law» [Natureza do Direito Consuetudinário Africano] (1956), da Nigéria. 

Esses autores integram a geração dos clássicos do pensamento jurídico-consuetudinário, até à década das independências políticas africanas. Nas décadas seguintes, até finais do século XX, a reflexão sobre o costume jurídico multiplicou-se. De igual modo, a produção filosófica, através da qual se vem consagrando o estatuto disciplinar da Filosofia do Direito Consuetudinário Africana. Pode ser útil destacar alguns filósofos contemporâneos, entre os quais: Olufemi Taiwo, F.U.Okafor,  Idowu William (nigerianos), Jean-Godfroy Bidima (camaronês), John Murungi (ugandês). Um dos mais debatidos tópicos tem sido exactamente o problema da relação entre a moral e o direito, a possibilidade ou impossibilidade da sua separação. Trata-se de um debate que opõe o naturalismo jurídico e o positivismo jurídico. Mas os vectores em que se desenvolve o debate já tinham sido enunciados por Taslim Olawale Elias, no seu livro, [Natureza do Direito Consuetudinário Africano] (1956). A ilustrá-lo, está a obrigação de obedecer à lei.

Dever de obediência 

O canónico livro de Taslim Olawale Elias, «The Nature of African Customary Law» [Natureza do Direito Consuetudinário Africano] estrutura-se em treze capítulos. Sem prejuízo da importância que os outros capítulos têm para a compreensão do pensamento deste jusfilósofo nigeriano, a focagem da nossa síntese incide sobre o terceiro, quarto e quinto capítulos, dedicados, respectivamente, aos erros sobre a natureza do direito consuetudinário africano, à definição do seu conceito e à justificação da obediência às suas normas. 

No dizer de Olawale Elias, o preconceito sobre a natureza do direito consuetudinário africano e a sua presumível inexistência era, no período colonial, difundido por quatro tipos de agentes: missionários; funcionários coloniais; antropólogos; e funcionários da justiça. Estes são os responsáveis pela cristalização de argumentos refutáveis, quando, numa perspectiva histórica, se examina as semelhanças existentes entre os sistemas jurídicos africanos e europeus, construídas por transplantação de tradições jurídicas ocidentais.   

O tópico desenvolvido no quinto capítulo é o dever de obediência ao direito consuetudinário. Suscita uma reflexão crítica de Olawale Elias, incidindo sobre as propostas formuladas por filósofos da tradição analítica inglesa. A legitimidade jurídica do legislador, não importando se fundada no direito natural ou no direito positivado, constitui o núcleo das suas interrogações. Afigura-se necessário responder às perguntas: Por que razão se deve obedecer à lei? Qual o fundamento dessa obrigação? Estaremos perante uma obrigação jurídica, moral ou política? 

Ao elaborar as suas respostas, Olawale Elias defende que qualquer sanção imposta por uma determinada lei tem a sua base no consentimento da população. Afirma, neste sentido, que existem sanções efectivas no direito consuetudinário africano. Donde, critica a ideia segundo a qual a obrigação de obedecer à lei é um fenómeno psicológico, já que não pode ser avaliada apenas pelo medo que a sanção inspira. Refuta a teoria falaciosa do antropólogo inglês J. H. Driberg (1888-1946) em «The African Conception of Law» [A Concepção Africana do Direito] (1934/35), segundo a qual, nas sociedades africanas, as sanções são sempre de índole religiosa, e que no direito africano não existe qualquer mecanismo de aplicação da lei no sentido ocidental do termo. No entanto, as razões para adoptar comportamentos de obediência à lei, na perspectiva de Olawale Elias, configuram uma obrigação moral e política. 

O que é o Direito?

Ao fim de uma revisão dos conceitos dominantes nos círculos académicos ocidentais e campos disciplinares da Antropologia, Sociologia e do Direito, Olawale Elias constrói a sua definição na secção final do seu livro. Procede à releitura crítica da obra de filósofos e juristas, norte-americanos e europeus, tais como Jeremy Bentham (1748-1832), John Austin (1790-1859), Paul Vinogradoff (1854-1925), Henry J. S. Maine (1822-1888), Arthur Goodhart (1891-1978), F. von Savigny (1779-1861), Olivier W. Holmes (1841-1935), Léon Duguit (1859-1928), Rudolf Stammler (1856-1938), Hans Kelsen (1881-1973). Avalia igualmente o trabalho de antropólogos e sociólogos europeus, nomeadamente, Radcliffe Brown (1881-1955), B.Malinowski (1884-1942) e Eugen Ehrlich (1862-1922).

Apesar da empatia que manifesta pela posição do jurista francês, Léon Duguit, que reconhece expressamente o direito consuetudinário como direito, Taslim Olawale Elias apresenta uma definição instrumental, quer para as sociedades não-ocidentais, quer para as sociedades ocidentais. Admite, em primeiro lugar, que o direito é um atributo comum e indispensável de todas as sociedades humanas. Por isso, conclui que «o direito de uma determinada comunidade humana é um conjunto de regras que os seus membros reconhecem como obrigatórias». Acresce, ao considerar que tal reconhecimento deve ser conforme os princípios do imperativo social, na medida em que toda a sociedade submete-se a uma dinâmica social, a uma norma social que ela aceita porque a imensa maioria dos seus membros a considera como absolutamente necessária ao bem comum. 

Portanto, para Taslim Olawale Elias, essa definição tem o mérito de permitir que a concepção do direito em África seja igualmente parte da Filosofia e da Teoria Geral do Direito. Esta a razão por que nos capítulos seguintes cuida de outras matérias, igualmente importantes: «estatuto jurídico do indivíduo», «distinção entre direito civil e direito penal», «responsabilidade por delitos costumeiros», «conceitos de propriedade e posse no direito africano», «ficções jurídicas», «legislação no direito consuetudinário», «processo jurisdicional no direito consuetudinário» e «influência das concepções do direito inglês no direito consuetudinário africano».

*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 14 de Agosto, aqui republicado com a autorização do autor.

**Ensaísta e professor universitário

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