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O textamento do magnânimo e magnífico José Luiz Tavares

Por: Rui Guilherme Silva

[Sobre como um segredo na boca do universo]

Como Um Segredo na Boca do Universo reúne toda a poesia de José Luiz Tavares escrita em português, incluindo dois livros inéditos: As Irrevogáveis Trevas, Prémio de Poesia Cidade de Ourense, em 2010; e Um Preto de Maus Bofes, escrito nos dias 29, 30 e 31 de janeiro de 2020 e «recapitulado» a 3 de novembro de 2022.

(Um Preto de Maus Bofes foi escrito quando a pandemia estava prestes a chegar a Portugal e ninguém sabia o que se seguiria. As Irrevogáveis Trevas tiveram edição prevista na Espanha, pela Espiral Maior, em 2010, e em Moçambique, pela Cavalo do Mar, em 2019).

Antes deste, José Luiz Tavares publicou (pelo menos) dezoito livros, em Portugal, em Cabo Verde, no Brasil, em Moçambique e na Colômbia, entre poesia em língua portuguesa (a maior parte) e em língua cabo-verdiana, traduções de Camões e de Álvaro de Campos, além de livros de literatura infantil e um volume recente de entrevistas, textos polémicos e de viagens – ou «andanças por Cabo Verde & outras paragens» («Pátria Soletrada à Vista do Harmatão»).

O livro aqui apresentado tem 1412 páginas. A dimensão – para alguns, impressionante – da obra de José Luiz Tavares explica-se 1. quer pela prática frequente da meditação e da investigação, que exige a forma do poema discursivo; quer, e sobretudo, 2. pela dedicação de uma vida ao exercício da poesia, dedicação que pode lembrar Pessoa, Agustina ou, na sua geração, Gonçalo M. Tavares, como propôs Fernando Pinto do Amaral no Festival Correntes d’Escritas de 2023.

1. Nota sobre o titúlo

José Luiz Tavares costuma dizer que os seus livros se fizeram (nalguns casos) a partir do título, que funciona como mote e motivo da obra. Não sabemos se este título – Como Um Segredo na Boca do Universo – lhe vem do começo da obra, mas encontramo-lo fechando os poemas 5. da sequência «Primeiras águas» e 20. da sequência «Areias do tempo», do mesmo livro Polaroides de Distintos Naufrágios.

A poesia de José Luiz Tavares exige um modo esquivo de dizer ou de se dizer; diz-se sempre num como se fosse – desembaraçado da realidade suposta e das funções pragmáticas da linguagem que pretende servi-la. Se de um segredo se trata, a poesia há de ser íntima e inocente, avessa ao vozear deôntico da praça pública; e se o universo é coisa ubíqua, haverá outra cidade ou outra praça onde ressoa, ecoando, o seu segredo comum.

Mas a paráfrase é o primeiro equívoco de quem tenta partilhar a leitura de um poema (e por isso deve ser evitada); anote-se apenas que os versos que deram título a este volume ecoam a épica suméria e a cosmogonia hebraica – nas «águas do dilúvio» e no «primeiro acontecido sopro,/ como um segredo na boca do universo».

2. Ordenação e revisão da matéria dada

A ordem cronológica surge invertida neste volume, ou seja, o primeiro livro é o mais recente, e o último, o mais antigo. Mas aqui não se acha um itinerário retrospetivo da maturação do poeta. Este caranguejo de José Luiz Tavares mostra-nos que ele não evolui, mas viaja por diferentes regiões poéticas ao longo dos vinte anos de poesia reunidos neste livro.

Uma prova elementar da maturidade do primeiro livro que José Luiz Tavares considerou publicável – i.e., Agreste Matéria Mundo – está no facto de alguns dos poemas ali reunidos surgirem em outros livros. Assim, e por exemplo, o poema Lisbon Blues, «Apesar da ignorância da rota desses navios», pertence agora ao livro a que dá título; a parte 2. de «Erlebnis», “Dispostos à morte, essa faca que o dia/ escurece”, está também neste livro; a segunda «Não carta a um não jovem poeta» – «Deixa entrar o trovão», etc. – encontra-se na abertura de Paraíso Apagado por Um Trovão (desde a edição bilingue deste livro, de 2010); e vários sonetos de «Indícios de caos» pertencem agora à sequência «O flato de Orfeu», do livro Desarmonia.

José Luiz Tavares

José Luiz Tavares é um autor de livros, mais do que de poemas. Cada um dos seus livros apresenta uma estrutura evidente quanto à temática (p. ex., a cidade de Lisboa) ou quanto à técnica (p. ex., o soneto). Um Preto de Maus Bofes, com que abre a obra (in)completa, leva essa tendência orgânica a um novo estádio, já que os seus dezoito andamentos (e o coro final) podem ser lidos como um único poema – um poema longo de setenta páginas. Os vários poemas apresentam aliás articuladores discursivos que assinalam as mudanças de temas e de tom: «Agora é tempo de me dedicar ainda», «vou em breves laudas lavrar», «Em modo menos faceto discorro agora», «Pomo-nos agora a cogitar», «Por fim, é tempo de me dirigir», etc. Os diferentes tons, como sugerido em cima, podem ecoar ainda os géneros líricos de François Villon: a balada, o rondó, a canção, o epitáfio, a epístola, como ainda o lamento, a contradita ou o requerimento. 

Assim, este livro novo, que abre a obra inacabada do autor, pode estimular a leitura de outros livros como um só poema longo. O exercício parece especialmente adequado aos dois títulos que foram livros-álbum – Cidade do Mais Antigo Nome e Coração de Lava –, agora dispostos em mancha gráfica contínua e não entrecortada de imagens. Aliás, percebe-se nestes livros um continuum narrativo, de matriz histórica em Cidade do Mais Antigo Nome e de matriz mítica em Coração de Lava. A sequência de cantos ou episódios de Coração de Lava, em particular, pode ser lida como narração do naufrágio de Ulisses nas praias de uma outra Esquéria.

A reunião da obra implicou também alguns cortes, emendas e acrescentamentos que interessam ao exame dos processos e das exigências do autor. Ao recusarem certos versos ou estrofes, os cortes afirmam a contrario sensu as regras do jogo de José Luiz Tavares. Assim:

a) Do poema «Et in Arcadia ego» – título que fecha «A deserção das musas» não por acaso, mas por se tratar de um epitáfio –, rasuram-se os versos «Luz concebida para a morte./ Como esse azul que a distância esboroa»; contudo, a locução heideggeriana presente no primeiro verso lê-se ainda no poema «Dez» de «Cena de cinzas», de Paraíso Apagado por Um Trovão: «Outubro é esta vala comum donde crescemos/ para a morte». O corte evita, portanto, a repetição da mesma sentença filosófica.

b) Do poema «Dois» da mesma «Cena de cinzas» cortaram-se duas estrofes que diziam o engano amoroso, primeiro como «a sirene do desastre depois/ do último tinto nas tabernas já sem alma”, e depois como «a felicidade proveito antecipado/ duma perda próxima». Sobre a imagem da taberna, digamos que o seu ar se tornou poeticamente irrespirável; já o aforismo da nona elegia de Rilke mantém-se no poema 12. de «Onde habita o trovão», de Paraíso Apagado por Um Trovão.

A eliminação daquele prosaísmo taberneiro tem talvez paralelo na exclusão do «tropel/ dos que o centro comercial demandam/ em cinzentos bandos domingueiros» que líamos, mas já não lemos, no poema «Sete» de «Vernais» de Agreste Matéria Mundo. Já os carecidos de esmolas rasurados na estrofe seguinte deste poema têm melhor expressão no «Bairro de Sol» de As Irrevogáveis Trevas.

Quanto aos poemas perdidos, basta-nos o exemplo de «Palimpsesto», de «A deserção das musas». O título que convoca Gérard Genette tornou-se um tópico comum da crítica literária; o primeiro verso era um trocadilho sugestivo, mas fácil – «O poeta é um esfingidor» –; e o palimpsesto resolvia-se num «esparregado/ mole em rima e trocadilho», aliás lucidamente sinalizado no próprio poema.

Quanto à exclusão da sequência «De palma sobre a pedra do destino (Périplo segundo com Tiofe&Vário, do povo de Notcha e Babel, através de imagens de Fernando Guerra», de que o Contrabando de Cinzas de 2016 nos oferecera quatro poemas, pode ser explicada pelo conseguimento maior do diálogo quer com João Vário em «As irrevogáveis trevas» quer com as fotografias de Duarte Belo (da mesma ilha do Fogo) em Coração de Lava. A exclusão desta sequência pode dever-se, por outro lado, ao registo próximo de certa poesia de circunstância, que encontramos em alguns trechos do Segundo Livro de Notcha, conforme cauciona aliás a exclusão do poema «Póvoa – Fantasia crepuscular», de Agreste Matéria Mundo.

As emendas e alterações, escassas e muito precisas, têm exemplo no poema «Dois» de «Matinais», ainda de Agreste Matéria Mundo. Trata-se de outro quadro crepuscular de Turner, embora tácito neste caso, que termina com dois novos tercetos parentéticos, que eram os últimos (cinco) versos do poema «Quatro», da mesma série, entretanto rasurado.

Um caso particular de reaproveitamento de versos próprios é o do dístico que encerrava o poema 3. de «Telhados longínquos» e que em Instruções Para Uso Posterior ao Naufrágio vem a ser o epigrama gnómico de uma «Nova teoria do soneto»: «[na] margem demasiado estreita/ para conter a fórmula da felicidade».

Quanto aos acrescentamentos, destacam-se alguns novos sonetos em Desarmonia, dos quais se assinalam apenas dois. O número 7. de «Nenhum oásis», «Hoje jornadeei à serra – fui dar corda à vida», situado entre o piquenique burguês de Cesário e as crónicas em verso de Joaquim Manuel Magalhães sobre esses a quem deram a liberdade para estragar, não o mar, neste caso, mas a serra. E o número 12. de «Perto do coração», “Polvo que em tinta segregas a tua casa”, comum ao Apollinaire irmão do pequeno monstro que escurece os céus, fechando numa síntese poderosa dos versículos “De profundis (clamavi)…” e «Abyssus abyssum (invocat). Essa síntese diz: «pelo abismo clamas».

3. Os dípticos e o caso de Lisbon Blues

Outro modo de leitura que este volume permite tem que ver com os vários dípticos que nele podemos agora conceber. O mais evidente, sugerido aliás em entrevistas do autor, propõe uma leitura sincrónica dos dois livros que, em 2017, assinalaram os 50 anos de José Luiz Tavares – Polaroides de Distintos Naufrágios e Rua Antes do Céu.

Mas também podemos fazer uma leitura diacrónica das Instruções para Uso Posterior ao Naufrágio, de 2019, enquanto regresso às «meditações metapoéticas em chave lírica» de «A Deserção das musas», de 2004. A este díptico metapoético pode juntar-se, por exemplo, a sequência de sonetos «O flato de Orfeu», de Desarmonia. Já os conjuntos «Nenhum oásis» e «Matéria ígnea», do mesmo Desarmonia, podem emparelhar, respetivamente, com Paraíso Apagado por Um Trovão, dada a comum matéria cabo-verdiana, e com as «Seis canções fesceninas» de Arder A Vida Inteira, ou a parte 11. de Um Preto de Maus Bofes, dada a comum matéria porno-erótica. Finalmente, a Lisboa fadista de Arder A Vida Inteira, como a de David Mourão-Ferreira ou Vasco Graça Moura, pode ser confrontada com essas outras Lisboas de Cesário, Pessoa, Cesariny, O’Neill ou Armando Silva Carvalho que relemos em Lisbon Blues. (O confronto das distintas representações poéticas da mesma cidade confirma a sua condição de «cosa mentale»: transmutada em poesia, Lisboa refaz-se enquanto «feérica paisagem», como se lê em «Lição de urbanismo»).

O índice de Contrabando de Cinzas [Revisitação & Súmula], de 2016, situa o livro Lisbon Blues entre Agreste Matéria Mundo e Paraíso Apagado por Um Trovão, abonando a devolução ao título lisboeta de vários poemas de Agreste Matéria Mundo.

Ainda no âmbito das leituras paralelas, a primeira parte de As Irrevogáveis Trevas, «Bairro de Sol», pode agora ser confrontada com a cidade histórica, literária e turística de Lisbon Blues. Este livro faz-se de paisagens culturais que participam da literatura universal (e.g., Ulisses) como da poesia de língua portuguesa (e.g., João Cabral de Melo Neto) ou propriamente lisboeta; assim, se os domingos «nas hortas» são hoje «lúgubre reminiscência» de Álvaro de Campos, é ainda «real, porém, a mulher» de Cesário Verde «vendendo hortaliças».

Invertendo o rumo prospetivo da epígrafe de Alexandre O’Neill («subamos e desçamos a avenida/ enquanto esperamos»), a miséria do quotidiano urbano abre-se a uma outra vida oriunda do passado pessoal e coletivo. Como queria Rilke, Lisbon Blues mostra que «o todo [temporal] é infinitamente mais novo» do que a idêntica superfície do presente; estatuária e a toponímia são sinais adormecidos dessa totalidade que chama os mortos ao convívio das comunidades migrantes reunidas nas praças da cidade.

A Lisboa de José Luiz Tavares é também o átrio a que assomam todos os gentios. Um esboço de análise imagiológica não deixaria de apontar o recurso estratégico ao estereótipo na representação das minorias étnicas; veja-se como «a cigana do parque» lê a sina e crava «duas moedas»; ou como a «roliça/ preta» barafusta «com os ciganos». Ouve-se também por vezes a voz de quem «detest[a] negros e turistas» ou de quem se presta «a pregar civilidades» a esses que «têm modos estrangeiros», como lemos no homónimo «Lisbon blues».

Mas o «nós» que identifica «os estrangeiros filhos desta cidade» não precisa de distinguir o peregrino oriundo das «longes ilhas onde sopram os alísios», visitante aliás de terras de Castela ou da Flandres; conforme o tom do soneto proemial, onde Camões, Campos ou João Cabral redistribuem o sol crioulo pela pátria comum da morte, todos somos esse «involuntário turista» exilado num mundo sem covil onde acoitar-se.

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