Por: Luís Kandjimbo**
O tópico que venho propor, tal como é enunciado na pergunta que encerra o antetítulo, resume-se no raciocínio que está subjacente a uma possível resposta afirmativa. É o seguinte.
Negação do que se afirma
A. Existe um Direito Comparado de Língua Portuguesa que reconhece a existência da família jurídica romano-germânica em que se inscrevem os sistemas jurídicos africanos, sul-americano, asiático e europeu de língua portuguesa.
B. O sistema jurídico de língua portuguesa dos Estados-membros da CPLP, fundada na cultura jurídica europeia continental, é integrado apenas por instituições, ramos do Direito e disciplinas jurídicas afins, entre os quais se inclui o Direito Constitucional de Língua Portuguesa, sendo a Filosofia do Direito Luso-Brasileira a fonte dos seus fundamentos.
C. Portanto, não é a Filosofia do Direito que fornece as bases reflexivas sobre os sistemas jurídicos africanos de língua portuguesa, em virtude de os seus fundamentos actuais terem sido formulados por «juristas filosóficos» do Brasil e Portugal, sob a inspiração da cultura jurídica europeia continental.
De acordo com os métodos da lógica proposicional, estamos em presença de um silogismo em que identificamos premissas com termos que não pertencem a todo o sistema jurídico de língua portuguesa. Por isso, esses termos não podem ter força representativa. O sentido das frases B) e C) aponta para a negação do que se afirma em A). Conclui-se que as famílias jurídicas e os sistemas jurídicos africanos, asiáticos e europeus, coexistentes na CPLP, estão representados de modo desigual, obedecendo a uma lógica hierárquica. Por isso, o Direito Constitucional de Língua Portuguesa ignora os fundamentos filosóficos dos pluralismos jurídicos dominantes na maior parte dos Estados-membros da CPLP. Assim, não sendo a parte igual ao todo, a negação da existência de uma Filosofia do Direito nos Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste, implica, consequentemente, a negação da Filosofia do Direito Luso-Brasileira, como parte do «domínio comum de língua portuguesa».
Uma eventual reflexão sobre a Geopolítica da Filosofia do Direito de Língua Portuguesa, ou da Geofilosofia do Direito de Língua Portuguesa, exige um conhecimento do trabalho desenvolvido por alguns jusfilósofos da CPLP, merecendo aqui particular destaque o jusfilósofo português, António Braz Teixeira, pelas reflexões produzidas sobre a Filosofia do Direito Luso-Brasileira. Mas, ao mesmo tempo, semelhante exercício exige igualmente um profundo conhecimento de outras civilizações, outras línguas, outras fontes de direito, outras hermenêuticas e seus modos de existência nos PALOP e Timor-Leste, evitando-se assim a reprodução dos mitos da hegemonia linguística, do grafocentrismo e da escritofilia.
Um colóquio da CPLP
Em 2013, um ano após a publicação de uma colectânea de estudos e pareceres com o título «Direito Constitucional de Língua Portuguesa» do constitucionalista português Jorge Bacelar Gouveia, a Direcção para Acção Cultural e Língua Portuguesa do Secretariado Executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em colaboração com o Instituto do Direito de Língua Portuguesa, tomou a iniciativa de organizar um colóquio com o objectivo de contribuir para o esforço de legitimação de um novo campo disciplinar, o Direito Constitucional Comparado de Língua Portuguesa. O referido evento, que teve lugar na sede da CPLP, em Lisboa, representava o tipo de acções que, na altura, o Secretariado Executivo da organização prosseguia. O colóquio contou com a presença de eminentes juristas dos oito Estados-membros, nomeadamente, PALOP Brasil, Portugal e Timor-Leste. Enquanto constitucionalistas, todos deles procuraram responder à pergunta aqui reproduzida no antetítulo, em epígrafe.
Durante os debates, nenhum dos oradores teve a preocupação de invocar expressamente os fundamentos filosóficos da família jurídica de língua portuguesa. A comunicação que mais próxima esteve de problematizações filosóficas foi a do constitucionalista guineense, Emílio Kafft Kosta (na imagem), professor da Faculdade de Direito de Bissau e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ele efectuou algumas incursões no domínio da Filosofia Política, ao tematizar o problema do Estado e do Direito pré-coloniais na Guiné-Bissau. Em geral, registou-se uma unanimidade, relativamente à possibilidade da existência de um Direito Constitucional de Língua Portuguesa.
Famílias jurídicas, equívocos e critérios
É notória a utilidade do critério linguístico para a actividade dos juscomparatistas e jusfilósofos. Mas não é raro verificar os equívocos a que o seu uso dá origem. É o que se passa com o jurista português, Dário Moura Vicente. A dado passo do seu «Direito Comparado», afirma categoricamente que «o continente africano nunca conheceu uma civilização nativa de extensão, duração e homogeneidade análogas às que existiram na Ásia e na Europa […]». Em contradição, sublinha que a civilização Bantu representa uma família linguística, o que é garantia de unidade entre os sistemas jurídicos africanos que a integram.
Por um lado, o referido autor considera que os PALOP e Timor-Leste pertencem à família jurídica romano-germânica. Mas, por outro lado, afirma que neles se constituem sistemas jurídicos de carácter híbrido ou misto, devido à importância que têm o chamado «direito consuetudinário». Em seu entender, os PALOP não integram a família dos direitos africanos porque esta família jurídica não existe. Apesar disso, dedica um capítulo inteiro aos sistemas jurídicos africanos, complementado por uma vasta bibliografia. Não é este o entendimento do professor francês Pierre-F.Gonidec (1914-2008) que, baseando-se em critérios civilizacionais de longa duração, em vida publicou duas obras importantes, «Direitos Africanos» e «Sistemas Políticos Africanos».
Em busca de exemplos que ilustram o carácter hegemónico do critério linguístico, encontrámos uma excelente edição enciclopédica consagrada às áreas linguísticas da tradição jusfilosófica romano-germânica no século XX. Refiro-me ao «Tratado de Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito» (volume 12, 2011), organizado por dois italianos, Enrico Pattaro e Corrado Roversi, professores da Universidade de Bolonha. Ao conjunto dos países que fazem parte do chamado «domínio comum de língua portuguesa», são reservados apenas três capítulos: um dedicado ao Brasil, capítulo 27; o capítulo 4, conjuntamente sobre Portugal e Espanha; e o capítulo 24, apenas sobre Portugal.
Normativismos coloniais
Se fosse, a este propósito, formulada alguma pergunta sobre a existência de uma Filosofia do Direito de Língua Portuguesa, provavelmente a resposta seria negativa. Aliás, na referida obra enciclopédica, faz-se referência apenas à Filosofia do Direito Luso-Brasileira.
No entanto, a explicação do problema que se coloca hoje tem a sua génese na conceptualização do Direito. O que se entende por Direito? Na transição do século XIX ao século XX, a afirmação do Estado moderno ocidental inspirou o desenvolvimento do positivismo jurídico como uma das mais importantes concepções doutrinárias de que a codificação normativa é um traço distintivo. O estadualismo e o legalismo são duas das suas manifestações. O primeiro assenta no monopólio estadual do Direito. No segundo, a lei monopoliza o Direito. É esse modelo de pensamento jurídico que chega a outros continentes, através da expansão colonial.
Concepção positivista nos PALOP
O positivismo jurídico, que se caracteriza pela glorificação do normativismo, tem a sua mais elevada expressão na técnica da codificação das leis. Nestas reside a racionalidade do Estado e seus dispositivos, cujo fim é organizar a vida em sociedade. Por isso, a única fonte das normas jurídicas é a lei. A natureza imperativa das normas jurídicas torna-as absolutas e gerais. Devem ser avaliadas como factos puros, sem qualquer conexão com os valores morais. Quando assim não se procede, as normas jurídicas é que modelam a moral e não o contrário. Por isso, no século XX, a Filosofia do Direito vai transformar-se em filosofia dos juristas. Era a usurpação da Filosofia do Direito pelos juristas. São estes que se notabilizam no domínio da reflexão sistemática sobre o fenómeno jurídico. No entanto, trata-se de uma actividade diferente daquela que deve ser realizada pelos filósofos. Mas a pergunta pertinente é esta: Poder-se-á falar de positivismos na Filosofia do Direito de Língua Portuguesa?
A concepção positivista do Direito chega aos PALOP e Timor-Leste, através dos aparelhos e dispositivos do Estado colonial português, da organização administrativa, da legislação e dos funcionários que estão ao seu serviço, além da institucionalização do ensino do Direito, profissionalização e formação dos poucos juristas originários de África e de Timor. Relativamente ao Brasil, podem ser invocados os argumentos de índole histórica, segundo os quais, o ensino da Filosofia do Direito remonta ao século XIX. Para o jusfilósofo português, António Braz Teixeira, é aí onde se situa o marco cronológico do positivismo jusfilosófico Luso-Brasileiro.No caso do Brasil, inspira-se na transplantação da cultura jurídica europeia continental.
Filosofia do Direito dos Filósofos
A transplantação tardia dessa cultura jurídica europeia não pode sustentar a negação de uma Filosofia do Direito nos PALOP e Timor Leste, fundada no facto de não existir uma tradição escrita.Se o direito é um fenómeno cultural e civilizacional, não será certamente exclusividade de algumas civilizações, partindo-se do pressuposto segundo o qual o critério definidor deve ser a fonte escrita donde emana. Ora, o costume em África, enquanto fonte de Direito, tem uma base eminentemente oral, isto é, a oralidade revela-se como modo da sua existência. Neste sentido, a solução dos problemas das fontes do Direito, no sistema jurídico de língua portuguesa, bem como dos critérios para a sua classificação, justificam a busca de novos fundamentos. Isto quer dizer que ao estadualismo, ou seja, ao monopólio estadual do Direito e ao legalismo que é o monopólio do Direito pela lei, não poderão ser atribuídas propriedades eternas, reconhecendo-se assim um monismo das fontes do Direito. Este é um debate que convoca um outro procedimento fundamentador. O pluralismo jurídico ocupa aqui um lugar central, legitimando a produção do pensamento crítico contra os efeitos deletérios do dogmatismo jurídico e correspondentes dispositivos hermenêuticos.
Quando o jusfilósofo ugandês John Murungi, no seu livro «An Introduction to African Legal Philosophy» (2013) [Introdução à Filosofia do Direito Africana], se indagava acerca da Filosofia do Direito Africana, entendia que a tradição jurídica continental está indissoluvelmente ligada ao pensamento autónomo dos Africanos, neste domínio. Por essa razão, advoga a necessidade de um ensino da Filosofia do Direito que não dependa das tradições europeias ou anglo-americanas.
Podemos concluir que, no contexto do sistema jurídico de língua portuguesa, os problemas do Direito, das fontes do Direito, e da justiça à luz de doutrinas filosóficas ecuménicas vão tardando, pelas razões já referidas. Para o caso de Angola, parece, por isso, relevante defender a tematização filosófica do pluralismo jurídico no âmbito do ensino da Filosofia do Direito dos filósofos, garantindo assim que as instituições de ensino superior que se dedicam à formação em Filosofia tenham a dignidade que os desafios impõem. Por outras palavras, diríamos o seguinte. As Faculdades de Direito, que proliferam pelo País, formam os juristas que tratam do Direito, explorando os fenómenos jurídicos empíricos, à luz dos cânones da dogmática. Mas é absolutamente prioritário formar especialistas, dotados de consistentes bases humanísticas, capazes de desenvolver reflexões sobre o Direito do ponto de vista filosófico, tematizando, paralelamente, a Filosofia Moral ou Ética, a Filosofia Política, a Filosofia da Cultura e a Filosofia da Literatura. Estes são os que praticarão a Filosofia do Direito dos Filósofos.
*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 07 de Agosto, aqui republicado com a autorização do autor.
**Ensaísta e professor universitário