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Contra a Ideologia da Competência – Marilena Chauí: uma filósofa da esquerda académica brasileira*

Por: Luís Kandjimbo**

Ao contrário do que dizem os corifeus da inoperância e fim das ideologias em África, julgo que o debate continua a ser necessário, lá onde alguma vez teve lugar. Sente-se o clamor para a discussão do pensamento elaborado sobre significados de conceitos como justiça, solidariedade, comunidade, liberdade e igualdade, ou ainda de critérios ao serviço da sua classificação. Por conseguinte, o tópico da nossa conversa é a tematização da competência, aqui proposta através das explorações reflexivas de uma prestigiada filósofa brasileira, Marilena Chauí (São Paulo,1941). 

Crise das ideologias? 

Foi no início da primeira metade do século XX, que o sociólogo norte-americano, Daniel Bell (1919-2011), proclamou o «fim das ideologias», com o seu livro, «The End of Ideology. On the Exhaustion of Political Ideas in the Fifties» (1960) [O Fim da Ideologia. Sobre a Exaustão das Ideias Políticas nos Anos 50],  passando, em seguida, a ser anunciado o seu esgotamento. Apesar disso, as diferentes ideologias políticas, classificadas de acordo com determinados critérios e tipologias, continuaram a mobilizar a atenção e o estudo. Uma das classificações mais debatidas, no século XX, é a díade «direita» e «esquerda», destacando-se o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004) com o seu livro «Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma Distinção Política» (1994).

Em epígrafe pode ler-se «ideologia da competência». É uma construção enunciativa formulada pela filósofa brasileira, Marilena Chauí, que se identifica como membro da esquerda académica. Articula um discurso que carrega um forte acento dos mestres da Filosofia e Sociologia francesas do século XX, tais como Claude Lefort (1924-2010), Michel Foucault (1926-1984) e Pierre Bourdieu (1930-2002), de que foi discípula. O referido enunciado é o título problematizador do livro de Marilena Chauí, estruturado como requisitório de críticas dirigidas ao modelo brasileiro de universidade pública. Constitui, por isso, uma âncora que garante a inscrição do seu pensamento nos campos político e académico, onde as clivagens ideológicas entre esquerda e direita têm a sua importância. 

Definição de ideologia

Marilena Chauí operacionaliza um conceito de ideologia que sublinha propriedades e referentes igualmente tratadas por outros autores. Em síntese, Marilena Chauí define-o em duas dimensões. Em primeiro lugar, a dimensão normativa: a ideologia como «um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores)». Em segundo lugar, a dimensão prescritiva: a ideologia como «normas ou regras (de conduta) que indicam aos membros de uma sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer». Conclui que a ideologia pode ter uma função opressiva, quando se torna dispositivo de exclusão. Esta consiste em ocultar a divisão social das classes, a exploração económica, a dominação política e a exclusão cultural.Temos aí subsídios para a compreensão da sua crítica à ideologia da competência. No fundo, trata-se de um ataque contra os pressupostos neo-liberais em que se fundam os relatórios do Forum Económico Mundial sobre a competitividade global.

Esquerda, Direita e Centro

Foi o sociólogo inglês Anthony Giddens, com uma filiação ideológica de esquerda, que no seu livro «Beyond Left and Right: The Future of Radical Politics», (1994) [Para Além da Esquerda e da Direita], afirmou que «as expressões direita e esquerda deixaram de ter o significado que tinham antes, e se ambas as perspectivas políticas se encontram de algum modo exaustas, é porque o nosso relacionamento (como indivíduos e como humanidade colectiva) com o moderno desenvolvimento social se alterou». Por essa razão, apoiando as teses de Tony Blair, o então Primeiro Ministro britânico e líder do Partido Trabalhista, de que era assessor, no livro publicado em 1998, Anthony Giddens, anunciava o advento da «terceira via», isto é, a social-democracia que deveria ser o resultado de «um consenso para o século XXI entre as forças políticas de centro-esquerda». Anthony Giddens fazia igualmente a apologia das propostas neo-liberais.

Ora, a realidade vem demonstrando que, do ponto de vista substantivo, o pensamento subjacente às clivagens do campo político assumiu a forma de ideologias e doutrinas políticas susceptíveis de classificações. Deste modo, as ideologias eram tratadas com base em modelos analíticos, privilegiando perspectivas binárias, absolutas e nominalistas. Eram elaboradas categorias que valiam mais pela sua denominação, em detrimento do sentido que é sempre contextualmente dependente. Mas, como se sabe, é o carácter histórico e civilizacional das ideologias que permite falar hoje de tipologias ideológicas e geopolítica das ideologias de esquerda e de direita. Presentemente, não se pode ignorar a influência e o impacto dessas ideologias. No plano académico abundam publicações temáticas que procuram transpor as limitações desta dicotomia bipolar. Numa categorização que opere com um modelo analítico flexível, pode-se transitar, por exemplo, para uma tipologia triádica das ideologias políticas com uma alternância que admite o «centro». 

Marilena Chauí

Marilena Chauí e a esquerda brasileira

Acompanho com muita atenção os rumos da esquerda brasileira, além do que é pensado por afrodescendentes e do que se produz nos domínios dos Estudos Culturais, da Teoria e Crítica Literárias e da Filosofia. Por essa razão, me tenho interessado pela obra desta filósofa. Pode, sem dúvidas, suscitar o interesse do público angolano, especialmente, dos agentes do campo académico.

O meu conhecimento sobre Marilena Chauí tem a sua fonte na leitura da sua obra e informações sobre a posição que ocupa no campo da esquerda académica brasileira. A sua produção intelectual inscreve-se principalmente no campo da Filosofia Política e História da Filosofia Moderna. Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde se doutorou em Filosofia com uma tese sobre Baruch de Spinoza e lecciona desde 1967, é uma das mais distintas filósofas brasileiras com vasta obra publicada, nos domínios em que intervém.

Marilena Chauí integra o elenco de membros das elites intelectuais brasileiras que contribuíram para a renovação da esquerda republicana, na segunda metade do século XX, após a instauração de um regime democrático que se seguiu à ditadura militar. A filósofa brasileira manteve sempre uma participação activa nos movimentos de mulheres, intelectuais e professores universitários. Tornou-se militante do Partido dos Trabalhadores, quando foi constituído, em 1980. A vitória do antigo líder sindical, Luíz Inácio “Lula” da Silva, nas eleições de 2002, confirmou a ascensão da esquerda e o lugar que partir daí ocupou no espectro político brasileiro. Portanto, pode dizer-se que Marilena Chauí pertence a uma geração de intelectuais orgânicos, engajados, alguns dos quais chegaram a desempenhar cargos políticos. No seu caso, de 1989 a 1992, assumiu o cargo de Secretária Municipal da Cultura de São Paulo. 

Polémicas e controvérsias

A reputação de Marilena Chauí foi posta em causa na década de 80, quando o filósofo e sociólogo da direita liberal, José Guilherme Merquior (1941-1991), acusou-a de ter praticado plágio, a que não parecia associar qualquer intencionalidade. Segundo José Guilherme Merquior, a filósofa brasileira teria cometido a fraude, ao ter reproduzido excertos de um livro do filósofo francês Claude Lefort inseridos no seu «Cultura e Democracia». O também ensaísta e diplomata visava as suas posições, enquanto intelectual de esquerda que dialoga com membros de outras esquerdas europeias, designadamente a do campo académico francês. Outros detractores da direita brasileira, entre os quais o filósofo Ruy Fausto (1935-2020), associavam a sua reputação ao facto de gozar de prestígio nas fileiras do Partido dos Trabalhadores, considerando que a sua reputação estava em declínio, por força dos processos judiciais que tinham abalado o partido de Lula da Silva. 

Contra a ideologia e o mito da competência

Marilena Chauí afirma que a ideologia e o mito da competência são emanações do neo-liberalismo. Na paisagem política brasileira, afirma ela, a ideologia e o mito da competência manifestam-se sob a forma de autoritarismo político, aristocratização do acesso à cultura e à ciência fundada no privilégio de classe, e desqualificação dos saberes populares. É suportada pelo «discurso competente» cujo sujeito é o especialista que ocupa uma posição nas hierarquias sociais e organizações burocratizadas, supostamente detentoras de racionalidade.

A eficácia da ideologia e o mito da competência verificam-se através do surgimento de indivíduos incompetentes cuja identidade os qualifica como objectos de exclusão social. Não legitimam o exercício de direitos sociais, políticos, económicos e culturais, como se exige em qualquer sociedade democrática. A argumentação de Marilena Chauí conduz-nos à conclusão segundo a qual as universidades e as instituições de ensino superior, em geral, alimentam a cultura da privatização da competência. Isto significa que a felicidade de qualquer pessoa instruída depende exclusivamente da sua capacidade para competir e vencer. Assim, transformam-se as universidades e instituições de ensino superior em fontes para satisfazer a procura de diplomas universitários, reduzindo-se a sua função ao que é comum no mundo empresarial.É o capitalismo académico, diriam outros autores.

Perante os que consideram justificável criticar a incompetência e ser infundado criticar a ideologia da competência, Marilena Chauí refuta tais posições, na medida em que está em causa a negação da competência real. Isto é, a competência real está sob ameaça, quando se assiste à aquisição de notoriedade pública, através de actos que consistem em falar pelos outros, dirigindo, controlando, manipulando e punindo. Estar ao serviço dessa notoriedade tem sido o papel dos meios de comunicação social no Brasil. Marilena Chauí ilustra o seu pensamento, narrando anedotas sobre o modo como se comportaram os jornalistas e comentadores brasileiros que invocavam uma presumível incompetência de Lula da Silva, por ocasião da sua eleição como Presidente do Brasil. Em virtude de não possuir um diploma universitário e não falar línguas estrangeiras, foi aprioristicamente considerado incompetente. Por essa razão, julgava-se que seria incapaz de governar. 

Atitude reflexiva 

A atitude filosófica adoptada por Marilena Chauí é, ao mesmo tempo, uma atitude política que tem fundamentos nos valores da esquerda académica e democrática. Com semelhante abordagem, ela vem reiterar um imperativo que é partilhado pelas sociedades do nosso tempo: a necessidade de uma incessante reflexão sobre os sentidos atribuídos aos conceitos de justiça, solidariedade, liberdade e igualdade. Depreende-se daí que o imperativo reflexivo sobre esses conceitos políticos e morais, os valores da esquerda e seus sentidos encontra a sua tradução nas diferentes concretizações do pluralismo ideológico. Em suma, as propostas da filósofa brasileira têm dignidade para serem trazidas à mesa de debates angolanos, quando se tratar do pluralismo e da definição dos agentes, estrutura e funcionamento dos diferentes campos em que se analisa a sociedade.

* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 31 de Julho, aqui republicado com a autorização do autor.

** Ensaísta e professor universitário

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