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São Vicente

Algodão de Cabo Verde transpõe fronteiras nacionais com a Neve Insular

Vanessa Monteiro e Rita Rainho

O colectivo Neve Insular (NI) nasceu há cinco anos e as suas sementes têm germinado a partir da comunidade da Ribeira de Calhau e Madeiral, em São Vicente. Os mais de 30 kg de algodão colhidos desde 2020 deram vida à exposição “Neve Insular 0,0003% – Algodão e Resistência”, exposta em Lisboa e distinguida “Best of” das artes visuais africana e afrodiaspórica 2023, em Portugal. O projecto está de malas prontas para a quinta edição do XTANT Roots 2024, em Espanha, no mês de Maio.

A Neve Insular (NI) é um colectivo artístico independente com origem em São Vicente, da autoria da artista e investigadora Rita Rainho, e da designer de moda Vanessa Monteiro. Surgiu do desafio de criar um projecto de design que tivesse na sua base criativa os padrões do pano tradicional de Cabo Verde, o chamado “pano d’ terra” ou “pano d’obra”. 

Em parceria com a Associação Agropecuária do Calhau e Madeiral, a plantação de algodão foi iniciada em 2019, numa área de aproximadamente 300m2, alargando-a para 800m2, em 2021. Além de semear a fibra têxtil, a NI criou um consórcio de espécies evitando a plantação de monocultura e vem promovendo atividades na área da agroecologia, educação artística e arte&design, entre os quais workshops para o Ciclo do Algodão, residências artísticas anuais e colheitas colectivas.

Fruto desse trabalho, e após exposição de peças autorais no Centro Cultural Cabo Verde, em Lisboa, a “Neve Insular 0,0003% – Algodão e Resistência” foi nomeada, pela Bantumen, “Best of” das artes visuais africana e afrodiaspórica 2023, em Portugal.

“Esta nomeação reforça a acção da NI. Em 2022 percebemos que tínhamos uma situação de maturidade nas relações e no conhecimento que nos permitia marcar presença na cena artística internacional. Uma presença que traduzisse a experiência destes anos, reforçada pelos pilares da agroecologia, educação e arte&design que sustentam o projecto”, referem as autoras, por escrito, ao A NAÇÃO.

XTANT Espanha 

O colectivo NI prepara-se agora para levar a exposição ao XTANT Roots 2024, um encontro global que celebra a arte no artesanato para compartilhar conhecimento sobre tradições têxteis patrimoniais e discutir práticas regenerativas.  

“Para NI, é importante fazer parte desse encontro porque também é um destino para todos os entusiastas têxteis, colecionadores, artesãos, educadores, designers de interiores, fabricantes e artistas de fibras, o que poderá fazer alargar o impacto internacional do trabalho que realizamos com a comunidade, especificamente no sector da arte e design. Além disso, também permite dar a conhecer a história cultural de Cabo Verde mediante uma abordagem contemporânea e artística”, indicam as autoras.

Para materializar esta nova transposição além-fronteiras e alargar o impacto internacional do seu trabalho, o colectivo tem aberta uma campanha de angariação de fundos na plataforma crowdfunding. Vão precisar de um valor a volta de dez mil euros, destinado a viagem, alojamento, logística, design, exposição e equipamentos. 

Mais de 30 kg de algodão colhidos 

A NI tem a sua actividade em torno da plantação de algodão no Centro Agroecológico do Madeiral (CAM), São Vicente, fruto de uma parceria com a Associação Agropecuária do Calhau e Madeiral (AAPCM). 

Desde a primeira “colheita”, em 2020, a NI já colheu mais de 30 kg de algodão com semente, feita de forma comunitária e aberta ao público, em edições também de 2022 e 2023, este último ano agraciado por boa chuva que fez aumentar a produção de 6 para 11 e depois para 14 kg, respectivamente. 

O terreno cultivado também aumentou, dos 300m2 iniciais para 500m2. 

Cumplicidade com a comunidade local 

 O trabalho da Neve Insular foi desenvolvido, lado a lado, segundo Rita Rainho e Vanessa Monteiro, com a construção de uma relação de confiança com os membros da Associação Agropecuária do Calhau e Madeiral (AAPCM) e com a comunidade em geral, que hoje se vê envolvida no projecto, em várias dimensões. 

 “Foi uma relação que começou com alguma dúvida, talvez pela aparente distância entre as áreas em questão. Mas acabou resultando num espaço de diálogo aberto entre comunidade e o próprio coletivo NI. 

Para além da AAPCM, a vivência no Madeiral possibilitou outro nível de cumplicidade, estreitando cada vez mais a relação com o grupo de mulheres do Calhau e Madeiral que participou nas diferentes ações”, destacam Rita Rainho e Vanessa Monteiro.

No vale da Ribeira de Calhau e Madeiral, as relações estenderam-se aos ofícios da gastronomia, envolvendo os fornecedores locais em todas as ações da NI.

 “Além disso, na Residência Artística Rbera, foi desenvolvido um produto de food design em colaboração com a Unidade de Transformação Agro-alimentar da Ribeira do Calhau: queijo com malagueta, queijo com salsa e queijo com manjericão, produzidos num molde cerâmico com uma forma remanescente à figura estilizada do algodão no pano d’terra. No fundo, é um processo de conhecimento, confiança e cumplicidade crescente”, indicam. 

 Educação e agroecologia 

Mas, conforme explicam Rita Rainho e Vanessa Monteiro, a relação criada com a comunidade não se fica só no grupo de mulheres e alguns agricultores e agricultoras, mas também com a comunidade educativa. “A participação e entusiasmo das crianças e corpo docente das escolas do Madeiral, Ribeira do Calhau e Calhau, nas atividades propostas pela NI, têm sido muito gratificantes”, garantem.

Isto, através de um percurso de sensibilização local visando inspirar as crianças para alternativas e novos futuros, fortalecer os laços para com o seu contexto, numa produção mais lenta e respeitosa dos recursos naturais, assim como o reconhecimento e valorização das profissões dos seus familiares, como a agricultura e a pastorícia.

“Com as escolas do vale temos proposto várias oficinas, ora no espaço escolar, ora levando as crianças à plantação de algodão. Mas também com as turmas de Educação Artística da FAED/Uni-CV. Para nós, é importante partilhar com a comunidade escolar para que possa conhecer, cuidar, valorizar e saber fazer em torno do ciclo do algodão”, referem.

Para além disso, a NI tem organizado oficinas, atraindo investimento na área da educação e da agroecologia.

Ao nível do público geral, nacional e internacional, Rita e Vanessa revelam que têm sentido “um carinho grande” e que a sua actividade tem possibilitado às pessoas um contacto com um território, uma comunidade e com uma fibra que tanto é usada no dia-a-dia, mas que muito pouco se sabe sobre ela.

Dos campos ao mundo do design 

As peças autorais produzidas pela NI têm uma base conceptual ligada ao percurso e relações do coletivo, mas também aos mapeamentos históricos resultado de um estudo relacionado com o algodão e com o “pano d’terra”.

As autoras têm peças autorais no Atelier Vanessa Monteiro Design, no centro da cidade do Mindelo, entre as quais uma peça de algodão fiado à mão, com várias funcionalidades. Produziram, ainda, as peças da exposição, onde consta, por exemplo, a escultura Casulo, uma estrutura que se assemelha à forma e  “aconchego da montanha do Madeiral”.

Neve Insular – Algodão e Resistência 

O pensamento e prática artística da Neve Insular baseiam-se, segundo as suas autoras, em 0,0003% da superfície terrestre da ilha de São Vicente cultivada com algodão e outras espécies em parceria com a AAPCM. Um “nada-tudo” comprometido com a memória da plantação colonial de algodão e as novas proposições do saber fazer e pensar ligados à planta do algodão. 

Resistência, conforme explicam Rita Rainho e Vanessa Monteiro, é um movimento fundacional da vida nas ilhas de Cabo Verde, especialmente em São Vicente, tanto devido ao processo de ocupação e colonização como devido às condições de clima e solo. 

 “Poderíamos falar do algodão que é, segundo os agricultores, das plantas mais resistentes que existem nas ilhas. Essa é uma resistência que nos inspira enquanto projeto independente que procura raízes e constrói futuro aqui”, finalizam.

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