Os grupos de thugs, ou gangues, na cidade da Praia, estão a ser integrados e até liderados, cada vez mais, por adolescentes quase crianças. O sociólogo Redy Lima ressalta que a falta de maturação e ausência de referências morais como factores que tornam essa nova forma de criminalidade complexa e perigosa. Já o psicólogo Nilson Mendes alerta para os riscos do envolvimento de menores em comportamentos desviantes e até criminoso.
“As crianças sempre estiveram nos grupos. Não é de hoje”, começa por dizer Redy Lima, sociólogo há anos a estudar o fenómeno da violência urbana em Cabo Verde, principalmente na cintura urbana e suburbana da cidade da Praia.
“Os Netinhos de Vovó – grupo organizado em Lém Ferreira e Achada Grande Frente, cidade da Praia -, entraram nos grupos na segunda metade dos anos 80 com 14 anos, eram crianças. Em 2012, a maioria dos grupos, cerca de 90%, era dividida em categorias etárias. Havia sempre um grupo principal do bairro e tinha um grupinho que era tipo academia. As caixas baixas, que eu chamo geração Zé Pequeno, eram miúdos que estavam numa espécie de aprendizagem para depois entrarem no grupo maior”.
Entretanto, “com o aumento das prisões, mortes e viagens dos ‘mais velhos’, houve uma desestruturação dos grupos e a liderança dos mesmos passou a ser assumida por jovens ainda mais jovens, muitas vezes com apenas 15 ou 16 anos”.
Riscos
Redy Lima recorda que, anteriormente, a maturidade da liderança desempenhava o papel de alguma moderação nos comportamentos extremos dos grupos, mas que agora, com líderes cada vez mais jovens, esse elemento moderador está ameaçado. “Antigamente havia coisas que não eram aceites no bairro e hoje já não é bem assim”, conta.
Lima destaca que, desde 2012, a criminalidade passou por uma “redefinição perigosa”, amplificada por uma suposta “guerra de pacificação”, “guerra” esta liderada pelo Ministério da Administração Interna. Como alega, a falta de políticas inclusivas durante esse período contribuiu para o aumento dos roubos nos bairros e uma mudança na natureza do crime, com líderes mais jovens e grupos operando sem uma “ideologia clara”.
Este é, continua na sua análise o nosso entrevistado, apenas um dos factores que tornam o cenário da chamada violência urbano mais complexo e perigoso.
“É um dos factores que é importante levar em conta, não pela violência em si, mas pela generalização e pela forma de agir, completamente descontrolada, dos grupos. Falando com o pessoal mais velho, eles dizem que hoje não há ideologia. Não interessa se é ideologia boa ou má, mas havia um código com coisas que sabiam se deviam fazer ou não. Os miúdos não têm essas noções e não estão para se chatear”, reforçou, completando que o fenómeno está a redefinir-se novamente de uma forma mais perigosa.
“O miúdo é muito imaturo, não tem noção, é muito emotivo. Um adulto consegue se controlar melhor”, afirma o sociólogo, num cenário delinquente, em que agora não é mais “bairro contra bairro”, mas sim de “escola contra escola”, com liceus envolvidos em actividades criminosas, sempre, uns contra os outros.
Os adultos também têm culpa
Redy Lima diz ser claro que os “mais velhos” têm culpa nisso, e para justificar esta tese se baseou numa máxima do “Thug Life”, que dizia “o ódio que dás, depois lixa todo mundo”.
“Tive um grande exemplo num ‘Old G’. Ele disse-me que foi falar com um puto, para aconselhá-lo, e o puto disse-lhe que esse ‘Old G’ já teve o seu tempo e que agora é o dele. Não dá para dizer se isto é bom ou mau, ou se é melhor ou pior, a violência é violência e crime é crime, e pronto, mas o que se nota é que, de facto, não há balizas ideológicas, estão à-toa”, concluiu.
Falta de diálogo e atenção nas famílias
Redy Lima desvaloriza o que chama “explicações simplistas” relativas à desestruturação familiar como causa de problemas sociais. Como diz, criminalizar famílias pobres não é a solução, visto que a questão não reside na estrutura familiar em si, mas na falta de atenção.
“Vais a qualquer escola privada, dita escola de elite, em Cabo Verde, e encontras os mesmos níveis de problemas, a nível de rivalidade de grupos, de indisciplina, que encontras em qualquer o seu público mais pobre num bairro periférico”, assegura.
Lima menciona mudanças nas dinâmicas de socialização infantil, referindo-se à perda de entidades ou organismos como os Pioneiros Abel Djassi, no período da I República (1975-1991) e a Catequese. Com o desaparecimento ou a desestruturação desses “espaços de socialização”, as crianças passaram a buscar referências nas ruas, muitas vezes, sem orientação. “A falta de diálogo nas famílias resulta em crianças buscando referências na televisão e na rua, sem a devida análise crítica”.
Daí a importância de retomar espaços de socialização das crianças, particularmente adolescentes, e promover uma interação mais significativa entre pais e filhos para enfrentar desafios sociais.
Nilson Mendes alerta para factores familiares
O psicólogo Nilson Mendes tem observado e analisado a influência da dinâmica familiar no desenvolvimento de comportamentos violentos em crianças, bem como os sinais de alerta e estratégias de intervenção eficazes. Mas também o papel da comunidade e das instituições escolares na prevenção e intervenção em casos de menores envolvidos em comportamentos delinquentes.
Sinais de alerta e risco
Nilson Mendes começa por lembrar que a família desempenha um papel importante na formação da personalidade da criança, fornecendo valores, crenças e normas de conduta. A falta de educação sobre respeito à vida e aos valores sociais, pais despreparados e desorganizados, podem contribuir para o desenvolvimento de comportamentos violentos nas crianças.
“O comportamento violento não emerge espontaneamente; é algo que se desenvolve progressivamente, da infância até a adolescência. Durante o seu desenvolvimento, as crianças costumam dar muitos sinais de alerta antes de se envolverem em padrões comportamentais mais severos. Esses sinais podem indicar a presença de um Transtorno Desafiante de Oposição (TOD), que costuma anteceder formas mais graves de comportamentos delinquentes e violentos”, disse.
Mendes chama por isso a atenção para sinais de alerta em crianças que podem incluir mudanças no comportamento, como isolamento, agressividade, ansiedade, medo excessivo, regressão a comportamentos infantis, irritabilidade constante, dificuldade de concentração ou desinteresse em actividades.
Além disso, indicou que lesões físicas inexplicáveis, comportamento sexual inadequado para a idade, problemas de sono e alimentação, e baixo desempenho escolar também são indicadores de que algo de anormal se passa com o jovem. Alerta, entretanto, que esses sinais não confirmam necessariamente violência.
Mendes ressalta a importância de estabelecer um canal de comunicação aberto dos pais com os filhos, criar regras que promovam disciplina e responsabilidade, e acompanhar de perto as suas actividades. Aqui destaca o papel do relacionamento familiar na prevenção da delinquência juvenil e a necessidade de reforçar normas e valores não violentos, evitar castigos físicos ou humilhantes, promover acesso à educação eficaz e garantir serviços de apoio de qualidade.
“A que ter atenção o estado psicoemocional do menor. Na maioria das vezes são vítimas no ambiente que estão inseridos. Por outro lado, analisar outros fatores que não depende do menor”, acrescenta.
Papel da Comunidade e das Instituições Escolares
O psicólogo aponta, ainda, para a necessidade de união da comunidade para combater os males sociais e públicos, nomeadamente, o papel relevante de cada indivíduo na prevenção, bem como a importância de políticas públicas que promovam inclusão, acolhimento, empatia, acompanhamento, diálogo e atividades ocupacionais para fortalecer menores e jovens emocionalmente.
“Hoje, mais do que nunca, é urgente um ‘djunta-mon’ para combater os males sociais e pública. Cada um tem papel relevante na prevenção. Políticas públicas para inclusão, acolhimento, empatia, acompanhamento, diálogo, atividades ocupacionais que possam fortalecer os menores e jovens, questões emocionais e atitudes positivas”, conclui.
Geremias S.Furtado
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 859, de 15 de Fevereiro de 2024