Por: Germano Almeida
Há tempos atrás, numa entrevista a um jornal, usei uma frase para me referir aos magistrados, frase essa que viria a ser repudiada pelo Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial (PCSMJ) como desrespeitosa. Ele tinha razão: fui reler o texto e pedi desculpas, tinha sido traído na conversão mental do crioulo para o português, a frase em crioulo é inócua, em português pode ficar ofensiva. Reitero, pois, o meu pedido de desculpas.
Esse meu pedido de desculpas fez-me lembrar uma estória que contam de um cabo-chefe em Santo Antão. Quando duas pessoas iam a ele pedir justiça e no meio da conversa uma delas dizia, Senhor cabo-chefe, com atenção e devido respeito!, ele logo atalhava, Cale-se, por favor, não diga mais nada, deixe estar como está!… Isso porque ele já sabia de experiências anteriores que após essa frase bonita e educada, ia necessariamente sair uma asneira irremediável. Bem, não é o caso, tenho o maior respeito pela grande maioria dos nossos magistrados.
Porém, é certo que no melhor pano cai a nódoa. E a nódoa caiu estrondosamente no tribunal de Relação de Barlavento, com a forma indecorosamente vingativa como conduziram o processo em que é réu o deputado Amadeu Oliveira.
Porque, senhor PCSMJ, ou estudamos nas mesmas escolas e se calhar pelos mesmos livros, ou então pelo menos estudamos dentro do mesmo sistema jurídico. Não dá para confundir nem com o ex-sistema soviético, nem com o anglo-saxão. E sabe muito bem que no nosso sistema defendemos o primado da lei escrita, preto no branco. Não é nem o costume nem a hermenêutica. Portanto, por mais que esprema, vai sempre dar no mesmo. Sim, há quem diga que as palavras, quando bem torturadas, acabam por confessar o que a gente quiser. Mas também conheço quem defenda que as palavras têm honra e se impõem e obrigam ao respeito. Eu acredito mais nesses aqui. Portanto, senhor PCSMJ, tudo que o senhor diz no seu texto seria correto, se nós estivéssemos a lidar com uma JUSTIÇA isenta e que tivesse honra em agir como tal. E não seria só o senhor a dizer o que diz, todos nós teríamos prazer e orgulho em repetir as suas palavras porque mesmo parecendo que não, na realidade somos patriotas. Mas sr PCSMJ, com as palavras, ou outras, usadas pelo dr José António dos Reis, a verdade é que a grande massa dos nacionais caboverdianos está a pensar exatamente assim da nossa Justiça.
Grande número dos nossos magistrados, com a mania de um pessoal e grotesco endeusamento, mais não estão a fazer que cobrirem-se de ridículo, porque metem medo pelo facto de usurparem o poder de mandar prender pessoas ou mantê-las na cadeia, mas aquilo que os dignificaria e a nós também, que é ter-lhes respeito pela forma digna e imparcial como exercem a sua função, isso a pouco e pouco foi desaparecendo na nossa sociedade.
O sr pergunta que autoridade em Direito ou no domínio da Ética e da Moral escrutinou o acórdão do TRB e concluiu que era manifestamente inconsistente, incoerente, contraditória…
E o senhor mesmo responde que nenhuma. E com razão: NENHUMA AUTORIDADE! É apenas o bom senso a gritar que aquela sentença não pode ser séria, devia envergonhar qualquer sociedade, aquele invento de um crime contra o estado de direito democrático é uma aberração que deixa mal o Estado de Cabo Verde porque mostra que afinal estamos nos antípodas dos estados democráticos que tanto berramos que somos.
E isso não é bom para nós como país. Estamos perdendo o respeito que duramente foi-se conquistando como nação credível ao longo dos anos. E não chega o secretário-geral da ONU vir por aqui bandoar que somos referência em África para nos embandeirarmos em arco, como se fosse assim difícil ser-se referência em África.
Senhor PCSMJ, ignoro em que país estudou, mas parto do princípio que estudamos todos pelo sistema romanístico de direito. Ora na lógica desse sistema e na lógica do ordenamento jurídico nacional, é impossível fazer-se qualquer interpretação que permita, sem grave violação dos princípios, equiparar a Comissão Permanente da Assembleia Nacional ao plenário da assembleia nacional.
Se o senhor, em consciência, consegue fazer isso sem se sentir violado, então é verdadeiramente um abençoado que pode dormir descansado na certeza de não estar a violentar-se para acompanhar, quer o Parlamento, quer o tribunal de Relação de Barlavento na brutal ofensiva que mantêm contra o Amadeu Oliveira.
Toda a gente que estudou direito conhece o brocardo in claris non fit interpretatio. E mesmo reconhecendo que só depois de interpretado se constata que algo é claro, mesmo assim não se deve exagerar e deixar aos juristas o monopólio da competência para interpretar as leis, porque, por mais voltas que se der, por mais hermenêuticas que se invoque, na realidade o direito, especialmente o direito penal, resume-se a simples bom senso ao alcance do homem comum, aquele que aprendemos na escola como exemplo de um bonus pater familiae.
E convenhamos que não houve um micrograma de bom senso ao inventar-se para o Amadeu Oliveira um crime de atentado contra o estado de direito para lhe aplicar a pena de sete anos de cadeia, e não é correto o senhor exigir que toda a gente se cale perante esta ignomínia, tanto mais que pode gabar-se de ver calada tanta gente que tem o especial dever de falar. Porque qualquer pessoa sensata pergunta, Tem alguma lógica condenar em 100 dias de suspensão de trabalho o Supervisor que terá “facilitado” a saída do Arlindo Teixeira do país e em 2600 dias de prisão o advogado que o terá acompanhado?
Como já não tinha havido bom senso quando foi relegado ao poder do Tribunal de Relação de Barlavento (TRB) pela Comissão Permanente da Assembleia Nacional que fez isso sabendo que estava violando a Constituição da República e o estatuto dos deputados, apenas porque era urgente “conter” o Amadeu Oliveira. E nessa urgência de conter o homem, um juiz desembargador não se acanhou de cometer um crime de prevaricação e o TRB não se deteve diante de uma clara inserção de falsidades no processo para com mais à vontade condenar um homem a sete anos de prisão. Tivesse essa condenação sido justa, poderíamos de lamentar o facto, porém aceitá-lo e talvez encomendar o Amadeu a Deus, como fez a juíza presidente do TRB.
Tem razão o senhor PCSMJ quando diz que as instituições estão para o estado de direito como os órgãos vitais estão para o corpo humano. E é exatamente por isso que temos de cuidar bem da seriedade das nossas instituições para que elas não se tornem inúteis, escusadas, desnecessárias. Porque afinal das contas, a segurança jurídica é a mãe de todas as nossas instituições.
Admita, por exemplo, que diante de um pedido de fiscalização da constitucionalidade proposto por x deputados, vinha o Tribunal Constitucional dizer que sim senhor, os deputados podem ter razão quando dizem que para a suspensão de um deputado, a Constituição exige, primeiro que haja um despacho de pronuncia de um juiz, e a seguir uma votação secreta por maioria dos deputados reunidos em plenário.
Porém (simples hipótese académica, bem entendido!), diz o Tribunal Constitucional que embora a Constituição e o estatuto dos deputados exija essa garantia, a prática tem sido suspender os deputados apenas com votação da Comissão Permanente. E nem tem sido exigido voto secreto dos deputados para a suspensão.
Foi apenas um suponhamos! Mas se um dia viesse a acontecer desse modo, poderíamos ainda continuar a dizer que vivemos num estado de direito democrático, quando são as próprias instituições a auto-vilipendiarem-se?