Por: Francisco Fragoso
Estudo Primeiro:
A Medicina não é apenas uma ciência e uma técnica, é
outrossim, assumidamente uma Arte de múltiplas
ressonâncias humanas:
Francisco FRAGOSO
E, antes de mais e, em jeito de NP, para principiar, de modo consentâneo:
Com efeito e, sem dúvida, os relevantes progressos da Biologia nos derradeiros séculos foram gigantescos, imprevisíveis e quase incrédulos e na sequência, os nossos meios de diagnósticos e terapêuticos desenvolveram-se para além de toda expectativa!
Todavia, o que é facto, o médico e o doente (paciente) permaneceram homens! Homens!
O doente possui os seus receios, as suas preocupações das quais impõe-se ter em devida conta, por motivos e razões óbvios, mesmo se os considera irracionais.
O doente (paciente) encontra-se inserido no seio de uma família, uma sociedade da qual não se pode e nem se deve fazer abstração.
Os Médicos aprenderam a prática das estatísticas, dispõem de uma gama extensa de exames que reduzem os riscos de erros, conhecem melhor os dados sociológicos e o psiquismo dos doentes (pacientes).
Entretanto, em última análise, na hora da decisão, sob o olhar ansioso do paciente, escutando as suas palavras falsamente divertidas, o médico sente-se sempre tão sozinho, tão angustiado pela persistência de vastas zonas de ignorância e pelo peso das suas responsabilidades em presença do doente, da sua família e da sociedade.
E, contudo, é necessário decidir, visto que nada pior que a indecisão!
AD HOC!
Em cada um dos estádios do pensamento, a medicina assume um rosto dissemelhante! Existe a medicina dos mitos, a do mundo arcaico e mágico, antropomórfico e antropocêntrico, a utilizada aquando da adoração da ordem divina, a do racionalismo nascente, triunfante, ulteriormente decadente.
A clássica lei dos três estados da inteligência humana de Auguste Comte diz: “Cada uma das concepções principais, cada ramo dos nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstrato, o estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, pela sua natureza, utiliza, sucessivamente, em cada uma das suas pesquisas/investigações três métodos de filosofia, cujo carácter é fundamentalmente dissemelhante e mesmo radicalmente oposto.
Esta lei, (ou de preferência esta tese), foi enunciada antes que a medicina atinja o terceiro estado, no entanto, ela (esta lei, obviamente) aplica muitíssimo bem à medicina, ainda que exista, no seu caso concreto, uma ampla sobreposição entre estas três fases.
O primeiro período, dominado pela referência ao sobrenatural, é a da medicina da alta Antiguidade e da alta Idade Média, entretanto, encontra aí traços numerosos, no âmbito do feiticismo que permanece, mesmo nos nossos países, ainda presentemente:
vivaz!
No segundo período, em vez de se contentar de tudo explicar pela intervenção de seres sobrenaturais, mais ou menos numerosos, entretanto, sempre antropomorfos, substitui-se os poderes divinos pela “natureza”, ou seja por essências, qualidades intrínsecas aos objetos ou aos seres vivos, que explicam todos os fenómenos por palavras. Deste modo, o ópio dorme porque possui uma virtude dormitiva! Eis-nos ante a medicina da teoria dos humores de Aristóteles e de Hipócrates, ou a dos médicos de Molière, ou ainda a medicina chinesa com o yin e o yang e os meridianos sobre os quais pratica-se a acupunctura.
A eficácia desta medicina especulativa já não é maior que a da medicina teológica; a pesquisa e investigação das causas primordiais permanece aí tão vã que anteriormente, no entanto, não obstante, esta etapa metafísica obriga a refletir, raciocinar. As entidades conceptuais que se criam exigem um esforço de abstração científica (por exemplo a física da escolástica ou a medicina durante o Renascimento e o século XVII).
Vale a pena sublinhar, que estas construções teóricas desenvolvem o espírito crítico! Para Comte, esta fase é necessária! “As especulações conservaram o mesmo carácter fundamental de tendência habitual aos conhecimentos absolutos; unicamente a solução sofreu uma transformação notável, própria para facilitar o impacto das concepções positivas (…), o raciocínio prepara-se confusamente ao exercício verdadeiramente científico.”
Para Auguste Comte esta fase transitória é curta. Na realidade, para a medicina ocidental, ela durou durante toda a Antiguidade greco-romana, reapareceu no século XIV para acabar apenas no fim do século XVIII.
Na China, ela persistiu na medicina tradicional até à segunda metade do século XX, e jamais seria sem a impulsão do Ocidente. Inúmeros tabus e preconceitos deveram ser vencidos para aceder à terceira fase. Ainda apenas atingiu esta fase porque os fisiologistas e os naturalistas foram fortalecidos neste procedimento pelo prodigioso êxito da física.
Após a etapa metafísica, assevera Auguste Comte, a inteligência pode alcançar o “estado definitivo de positividade racional”, que substitui o real ao quimérico, os factos às sensações, o preciso ao vago, o relativo capaz de evoluir ao absoluto entorpecido e dogmático. O homem formula questões mais modestas aos quais pode responder por observações dos factos.
“A revolução fundamental, que caracteriza a virilidade da nossa inteligência, consiste fundamentalmente em substituir por toda a parte, na inacessível determinação das causas propriamente ditas, a simples procura das leis, ou seja das relações constantes que existem entre os fenómenos observados.”
Após uma gestação que durará do século XVI até ao fim do século XVIII, a medicina alcançará este terceiro estado, no século XIX graças à ciência e o seu positivo exemplo. (. . .).
Lisboa, 12 Agosto 2023
*(Médico & Humanista)