Por: João Serra
A taxa de inflação do IPC situou-se em 7,8% em março de 2023, informou o INE.
A variação homóloga do IPC total desacelerou para 5,6%, menos 1,7 e 2,0 pontos percentuais em relação à do mês anterior e à de março de 2022, respetivamente. Já o índice referente aos produtos alimentares não transformados e às bebidas não alcoólicas registou uma variação homóloga de 10,8% (16,6% no mês anterior e 16,5% em março de 2022).
No entanto, não obstante a tendência de desaceleração do IPC no mês de março, a inflação continua ainda muito elevada comparativamente ao patamar considerado adequado para o normal funcionamento da economia, que é em torno de dois por cento. Por outro, tal qual referido no meu artigo anterior, publicado neste jornal (edição de 09 de março de 2023), é preciso perceber que a inflação indica o valor da subida generalizada de preços face ao período homólogo. Assim, mesmo que esse indicador baixe para perto de zero em 2023, os produtos continuarão mais caros do que em 2022, na medida em que a comparação será feita com o mesmo mês do ano passado, em que os preços já estavam mais altos do que em 2021. Ou seja, para que o nível de preços regressasse a valores comparáveis aos de 2021, teria de se verificar um período com taxas de variação negativas, o que, muito provavelmente, não ocorrerá em 2023.
Pelo que é muito mais provável que continuemos a ter inflação em cima de inflação em todo o ano de 2023, resultando em uma, cada vez mais, acentuada perda de poder de compra, perda essa que já vem do ano transato.
E essa forte erosão do poder aquisitivo não foi compensada em 2022, uma vez que, de um modo geral, não houve aumentos dos salários e das pensões. Também em 2023 não o será, na medida em que foi decretado apenas um aumento irrisório dos salários da Administração Pública e das pensões, no valor compreendido entre 480 e 1.155 escudos (ecv) e, mesmo assim, somente para aqueles que auferem estas prestações até ao valor de 69.000 ecv. Entretanto, poderá ocorrer um ou outro aumento no setor privado, mas que não afetará a situação de perda brutal do poder de compra de quase todos os cabo-verdianos.
Isso significa que os cabo-verdianos passaram – e, certamente, passarão nos próximos meses do ano em curso – a precisar de uma fatia cada vez maior do seu rendimento para os seus gastos, sobretudo com a comida, onde a subida dos preços tem sido ainda mais galopante. Por exemplo, um adulto saudável que, segundo cálculo da ADECO de julho de 2022, precisava de gastar cerca de 13 mil ecv por mês só para alimentação e água, passou a precisar, agora, de pelo menos 15.600 ecv, valor superior ao salário mínimo nacional e equivalente a mais de duas vezes e meia ao da pensão social (6.000 ecv).
A carestia afeta, de um modo ou de um outro, todos. Mas é a população mais pobre que mais sofre com ela, porque a compra de alimentos consome uma fatia maior do orçamento dessas famílias em comparação com as famílias com rendimentos mais elevados. E preços elevados dos bens e serviços essenciais para além do alcance dos pobres, forçam-nos a vender os seus escassos bens e a viver em condições sub-humanas, o que, em última análise, lhes retira o direito de viver em dignidade.
Assim sendo, não é difícil imaginar a situação, eventualmente, dramática das cerca de 73.000 pessoas que o INE estimou estarem a viver na situação de extrema pobreza em 2020, bem como das 138 mil pessoas que, segundo as últimas estimativas desta instituição, viviam, em 2022, em situação de pobreza.
Note-se que são considerados pobres aqueles que, em 2015, viviam em agregados familiares com consumo médio anual por pessoa abaixo do limiar da pobreza, fixado, no meio urbano, no valor de 95.461 ecv (7.955 ecv/mês) e, no meio rural, no valor de 81.710 ecv (6.809 ecv/mês). Acrescente-se que esses valores foram determinados em 2015 e resultaram do terceiro e, até à presente data, último IDRF, realizado nesse mesmo ano, pelo que se encontram totalmente desfasados da realidade de hoje.
Já para a pobreza extrema, o INE considerou a proporção da população que vivia com menos de 1,9 dólar dos EUA (cerca de 200 ecv) por dia.
Como se a inflação devastadora já não bastasse, muitas pessoas veem reclamando que, por vezes, estão a pagar a mesma quantia por menos quantidade de produto. Trata-se de uma prática ilegal, designada de “reduflação” e que deve ser denunciada.
O termo “reduflação” diz respeito a um mecanismo no qual as empresas mantêm o preço de um determinado produto, mas alterando os componentes numa embalagem – na maioria dos casos, a quantidade de produto. Para compreendermos melhor o seu significado, tomemos, como exemplo, um pacote de arroz, pressupondo que custa 100 ecv. Poderá acontecer que a empresa, que o vende, mantém esse preço, continuando a embalagem a ter o mesmo aspeto. Todavia, em vez de conter um quilo de arroz, passa a ter apenas 800 gramas. Não obstante não haver um aumento do preço da embalagem, o produto fica mais caro. E isso acontece com vários produtos, nomeadamente pão, produtos pesados e embalados previamente, etc., muitas vezes sem que o consumidor se aperceba.
Se a inflação alta tem sido um tormento para os cabo-verdianos, já para os cofres do Estado ela tem sido benéfica. Ou seja, quanto mais elevada for a inflação e a inflação em cima de inflação, mais dinheiro entra nos cofres públicos, por via dos impostos indiretos, sobretudo do IVA, uma vez que a taxa legal deste imposto passa a recair sobre preços mais elevados. Com efeito, as receitas do Estado aumentaram 29,2% até fevereiro, em termos homólogos, para mais de 8.470 milhões ecv, impulsionado pelo crescimento dos impostos arrecadados, indicam dados oficiais. Nos impostos indiretos, o IVA rendeu, nos primeiros dois meses do ano, quase 3.206 milhões ecv, aumentando 34,2% face ao ano anterior.
Pelos cálculos feitos, estimo que cerca de 30% do aumento das receitas fiscais, em 2022 e nos primeiros dois meses de 2023, resulta da inflação elevada.
Com a folga orçamental proporcionada pela inflação, o Governo devia proteger, sobretudo, os mais vulneráveis dos efeitos dos preços elevados, que incidem sobre os bens essenciais, nomeadamente a alimentação. É uma obrigação do Estado fazê-lo, e o Governo, infelizmente, tarda em tomar medidas de transferência de rendimentos compensatórios mais abrangentes e vigorosas às famílias mais vulneráveis, utilizando para o efeito a parte incremental da arrecadação fiscal resultante da inflação alta, estimada em 30%.
Está-se a falar, especialmente, das cerca de 73.000 pessoas que se estima estarem a viver na situação de extrema pobreza, bem como das cerca de 46 mil pessoas que se acredita estarem em situação de crise relativamente à insegurança alimentar, segundo os dados oficiais. Mas também, importa ver para as pessoas consideradas pobres, na medida em que os valores considerados, em 2015, para o limiar da pobreza (inferiores a 8 mil escudos/mês) hoje, seguramente, não chegam para comprar a cesta básica de bens alimentares (estimada a partir das quilocalorias mínimas que cobre as necessidades mínimas de energia recomendadas para se sobreviver), quanto mais para as outras despesas essenciais, mormente com a habitação.
Termino, dizendo que não sou favorável à eliminação “tout court” do IVA sobre os alimentos não isentos, uma vez que me parece não ser a medida adequada às condições de Cabo Verde. E isso, por causa das dificuldades que haveria no que diz respeito a acordos com o comércio e à fiscalização da sua aplicação, o que comprometeria o efeito pretendido. Para mim, fazem sentido, por um lado, medidas seletivas, mas fortes e robustas de apoio ao rendimento das famílias mais desfavorecidas que estão a ter maiores dificuldades com os preços da alimentação. E, por outro lado, medidas mais transversais, como a redução da carga fiscal para determinados escalões do IRPS, fazendo com que as pessoas abrangidas tenham mais rendimentos disponíveis.
Praia, 23 de abril de 2023
*Doutor em Economia