Os meios públicos de comunicação social têm optado, nos últimos tempos, pela contratação directa de jornalistas que se destacam nos media privados, bem como pela contratação de freelancers, em detrimento do concurso público. Esta modalidade não é bem vista por profissionais da área, que já denunciam a prática à AJOC. A associação, por sua vez, fala de um esvaziamento das redacções privadas e alerta para a prática em empresas do Estado.
Caras novas têm surgido nos órgãos de comunicação social públicos, nos últimos tempos, seja na agência Inforpress, seja na Rádio e na Televisão de Cabo Verde (TCV e RCV), sem que tenham sido feitos concursos públicos para a garantia da igualdade de oportunidades, conforme denunciam profissionais da classe.
A Associação Sindical dos Jornalistas de Cabo Verde (AJOC) tem recebido queixas neste sentido, o que a levou a endereçar cartas à Inforpress e à RTC, chamando a atenção para uma prática que considera antidemocrática e que pode dar lugar a contratos de trabalho precários.
“Ficamos preocupados porque quando se trata de instituições públicas, pressupõe-se que as oportunidades devem ser dadas a todos. Mas, o que tem estado a acontecer é que órgãos públicos vão aos órgãos privados ‘pescar’ os jornalistas que já têm algum nome no mercado e que têm estado a se destacar pelo seu trabalho”, analisa o presidente da AJOC, Geremias Furtado.
Em carta enviada à Inforpress, a AJOC apela que, em caso de necessidade, se “considere a opção de concurso público, uma forma que não apenas assegura a equidade, como também reforça a transparência do processo selectivo”.
Aquele sindicato recorda, ainda, que reconhecendo a importância de garantir estabilidade aos seus colaboradores, a Inforpress aprovou recentemente “o tão esperado” Plano de Cargos Carreiras e Salários (PCCS), o qual, a seu ver, representa um avanço significativo contra a precariedade laboral.
Inforpress lança mãos aos “freelancers”
Contactado o administrador da Inforpress, Jair Fernandes, reconheceu ao A NAÇÃO que a agência tem recrutado novos recursos humanos, porém, numa modalidade diferente. É que, segundo explicou, a agência tem optado pela contratação de freelancers, em função do próprio plano de negócios, enquanto solução que vai ao encontro de boas práticas a nível internacional.
“Estamos a falar de um país arquipelágico, em que há necessidade da presença da Inforpress, enquanto agência, em todas as ilhas e em todos os municípios. Para fazer isso, considerando o contexto e o quadro financeiro, tínhamos que adoptar uma solução que é a contratação de freelancers”, reforçou.
Esta prática, segundo disse, foi adoptada na ilha Brava, em Santiago Norte, Sal, São Nicolau e será também implementada na sede, na Praia.
Felizmente, pontuou Fernandes, o sector do jornalismo permite a autonomia do próprio jornalista. “Podemos ter aqui no mercado um jornalista que trabalha para dois ou três órgãos, nacionais ou internacionais. O facto de este sector permitir ao jornalista não ter um vínculo definitivo com um órgão é um direito, que o leva a trabalhar enquanto profissional autónomo”, sublinhou.
Solução para as licenças sem vencimento
Por outro lado, indicou o nosso interlocutor, a Inforpress tem sentido a necessidade de buscar soluções, em curto prazo, para colmatar os pedidos de licença sem vencimento, que, muitas vezes, não são comunicados no prazo ideal e requerem soluções urgentes.
“Muitas vezes o que acontece é que o profissional que vai de licença sem vencimento não antecipa em três ou seis meses o comunicado à agência. O comunicado num período muito curto esvazia a própria redacção e para fazer face a isso somos obrigados a buscar as soluções que temos mais a mãos, que é contratar pessoas por um tempo determinado, para nos permitir responder da melhor forma possível ao plano da redacção”, acrescentou.
Revisão de contratos precários
A par disso, diz que a Inforpress fez recentemente uma revisão de contratos de jornalistas que estavam sem o devido enquadramento, em situação laboral precária, ao abrigo do próprio PCCS. Isto numa tentativa não só de melhorar a situação salarial desses profissionais, como também de garantir à própria agência uma maior estabilidade do seu quadro de pessoal.
“Exemplo concreto são jornalistas com mais de dez anos de experiência e com um salário abaixo daquilo que recebe um técnico superior. São quase dez jornalistas, alguns que tinham contratos de prestação de serviços que passaram a contrato a termo e outros que tinham contrato a termo e que foram enquadrados no quadro de pessoal”, explicou.
Concurso para 2024
Não obstante, garantiu Jair Fernandes, a Inforpress pretende abrir concursos públicos para o recrutamento de jornalistas no segundo trimestre de 2024, conforme previsto no orçamento para o próximo ano.
“Estamos a implementar o PCCS e queremos ter um quadro claro. Temos também a situação de pessoas que vão para a reforma e cuja saída é preciso colmatar”, indicou, acrescentando, ainda, que haverá também concurso interno para a contratação de correspondentes em Boston e junto da CEDEAO.
“Televisão contrata o profissional que conhece”
No caso da Rádio e Televisão de Cabo Verde, a administradora Margarida Fontes explicou que a contratação directa é uma via “normal” em rádio e televisão, uma vez que, pelas especificidades e exigências destes meios, muitas vezes contrata-se profissionais cuja capacidade é já comprovada em outros órgãos.
“A contratação não por via do concurso é uma via muito praticada, principalmente nos órgãos audiovisuais. A rádio e a televisão contratam quando conhecem o profissional. Quando contrata um talento, contrata um talento que é conhecido e reconhecido”, indica a administradora.
São profissionais que, segundo explicou, já trabalham há anos tanto na rádio como na televisão, dominam as técnicas e os formatos e que a empresa sabe que podem rapidamente executar as suas tarefas sem dificuldades.
Nos últimos tempos, reiterou Margarida Fontes, a RTC teve duas modalidades de recrutamento. Por um lado, o recrutamento de jornalistas com experiência para colmatar a saída de quadros e, por outro, a contratação de estagiários que passaram pelas empresas e deram provas de qualidade e capacidade para agregar valor à RTC.
Margarida Fontes indica ainda que os concursos públicos nem sempre respondem às expectativas da rádio e da televisão.
“Já houve outros momentos em que nós fizemos concurso público e não correu da forma como esperávamos. Não se conhece a pessoa, as pessoas passaram no concurso e depois o resultado não foi aquilo que se esperava”, sublinhou.
Esvaziamento de competências nos privados
Para lá da questão da igualdade de oportunidades na contratação de jornalistas pelos media públicos, a AJOC manifesta-se igualmente preocupada com um alegado esvaziamento das redacções privadas. No entender de Geremias Furtado, esse tipo de procedimento vai em clara contramão da propalada intenção do Estado em empoderar os órgãos privados de comunicação social.
“Entendemos da nossa parte que a conversa de empoderamento e de criar condições para os órgãos privados precisa sair dos discursos e ser colocada em prática. Há mais de dois anos assistimos o senhor secretário de Estado a dizer que o Governo vai criar as condições para os órgãos privados, mas não passa de conversa”, pontua Geremias Furtado, para quem continua-se a assistir ao “empoderamento” dos órgãos públicos, enquanto os privados continuam a “ver navios e a nada em mares de dificuldades”.
“Com isso não conseguem pagar salários, não conseguem dar grandes condições e os jornalistas sentem-se aliciados pelas condições oferecidas nos órgãos públicos, como melhor salário e menor carga de trabalho”, acrescenta.
Esta é, aliás, uma das preocupações que também têm sido manifestadas pela Associação dos Medias Privados de Cabo Verde.
Neste quesito, o administrador da Inforpress reconhece a preocupação da AJOC e dos meios privados, entendendo, por outro lado, que se trata da “lei do mercado”.
“É lógico que o público, considerando as condições que tem, não pode concorrer com o privado. Mas também temos de ver na perspectiva do jornalista, que tem a possibilidade de escolher aquilo que é melhor para a sua vida”, indica Jair Fernandes para quem está em jogo, também, o livre arbítrio do profissional.
Ainda assim, diz ser uma preocupação “sumamente importante”, que merece uma discussão conjunta, envolvendo a própria AJOC, na procura de uma solução.
“Estamos abertos a ser parte da solução. Há necessidade de uma reflexão conjunta, sobre a real necessidade que temos de estimular esta área. É preciso criar nos privados um mecanismo de compensação financeira e laboral”, sugere Fernandes.
Carência de jornalistas no mercado
Outra questão que, no entender de Jair Fernandes, merece preocupação é a carência enorme de jornalistas no mercado de trabalho.
“É algo que gostaria que a AJOC e os órgãos privados nos ajudassem a analisar o porquê e para juntos criarmos as soluções. Se temos quatro ou cinco universidades que dão curso de jornalismo, para onde estão a ir os formados? Isso é um trabalho que deve ser feito em conjunto e em articulação com as universidades”, encorajou o administrador.
Na mesma linha, a administradora da RTC, Margarida Fontes, sublinha que quando se fala em jornalistas é preciso pensar também nos meios e suas especificidades.
“Há jornalistas que podem ser bons para o jornal e podem não se adaptar à rádio ou televisão. Portanto, há essas particularidades e quando olhamos para essas exigências percebemos que temos uma grande carência, não temos muito por onde trazer. É um risco você ir contratar um jornalista que não conhece e quando chega há um constrangimento”, indica.
A NAÇÃO tentou ouvir também a Agência Reguladora para a Comunicação Social (ARC), na pessoa da sua presidente Arminda Barros, porém esta fez saber que as atribuições da ARC se cingem ao conteúdo jornalístico. “Esta é uma questão de direito laboral e direito laboral é com a Direcção Geral do Trabalho”, rematou.