Ute e Wolfgang Kehl, casal de médicos dentistas, chegaram à Praia em 2016 e constaram como crianças de sete e oito anos já começam a perder os dentes molares. Em jovens adultos, a falta de higiene oral, ao longo dos anos, levou a situações de perda de quase todos os dentes. O problema, dizem, está na falta de informação dos pais e de hábitos de escovagem diária dos dentes. A solução passa pela educação, a começar mesmo nos jardins e nas escolas primárias.
No centro de saúde da Cidade Velha, Ribeira Grande de Santiago, onde Ute e Wolfgang Kehl se encontram até ao início de Dezembro, são tratadas, diariamente, cerca de vinte pessoas, entre crianças jovens e adultos. Mas aqui, como acontece em casos semelhantes, são as mulheres e não os homens que mais procuram os centros de saúde. O que não quer dizer, adianta Ute, que os seus dentes estejam em melhores condições.
O preço da falta de informação
Aqui, o casal toca no aspecto mais delicado, que é a saúde dentária dos cabo-verdianos. “Posso dizer que Cabo Verde está na situação que a Alemanha se encontrava há quarenta, cinquenta anos, com os mesmos problemas, sobretudo as crianças com os dentes muito estragados e pais que não têm informação sobre higiene oral”, explica Wolgang. O problema, adianta, começa em casa, porque os pais não sabem lavar os dentes e não podem educar e explicar os seus filhos.
“Outro problema, é o preço de uma escova de dentes, à volta de uns três euros, que para gente de salários tão baixos, não é visto como uma prioridade, e que tem de ser substituída com frequência.” Para o médico, a única forma de reverter o problema é fazer o que fizeram na Alemanha, ou seja, educar as crianças e ensiná-las a lavar os dentes desde cedo, desde os jardins.” Para além disso, continua, é o açúcar. “Cá como lá, todas gostam de açúcar e com as bactérias, isso também ajuda a estragar os dentes.”
Uma das situações mais graves que o casal descobriu, em Cabo Verde, são as cáries em crianças de 7, 8 anos, nos molares de ambos os lados. “São os dentes que se seguem aos de leite, ou seja, são já os molares definitivos, permanentes, mas que começam a ficar estragados e já não nascem, não há como os substituir”.
A única solução é as crianças aprenderem a lavar os dentes, através de uma informação intensiva, “como faz a doutora Elizabete Tavares, pelas escolas daqui, porque”, diz Ute, “é muito triste termos de tirar os molares a jovens, ainda na fase de crescimento”.
Com a idade, a situação só piora, pois entre os 20 e os 30 anos, já se atingiram níveis impressionantes de destruição dos dentes. “Na semana passada, na Cidade Velha, tivemos uma jovem de 21 anos com muitas cáries e os molares estragados e foi preciso arrancá-los. Noutro local, outra moça de 32 anos tinha todos os dentes superiores estragados, até às gengivas, mesmo ao nível do osso. Foi preciso tirar 15 dentes… e outro problema, se antes ela não conseguia comer, daqui para a frente só poderá fazê-lo com uma prótese dentária, que para ela é muito caro”.
Em termos de custos, por cada dente arrancado, as pessoas pagam 600 escudos, no centro de saúde, e cada obturação fica por 2000 escudos. Para a moça de 32 anos, o valor a pagar por todos os dentes arrancados ficaria muito elevado para a sua capacidade financeira. Mas, as consultas e o tratamento disponibilizado pela organização de Ute e Wolfgang são feitas de forma gratuita, sem qualquer custo para os pacientes.
Almoço e transporte garantidos
E neste Centro de Saúde da Cidade Velha a equipa alemã recebe crianças, jovens e adultos, inclusive já nos setenta anos, afirmam os nossos dois entrevistados.
E de cada vez que se desloca a Santiago para consultas e tratamento gratuitos à população, dizem os nossos entrevistados, são confrontados com as mesmas burocracias, a mesma papelada para preencher, duas vezes por ano. “Temos de repetir sempre os mesmos trâmites, com dois meses de antecedência.”
A única coisa de que beneficiam é do almoço pago pelo centro de saúde em questão, que sai do orçamento do próprio centro, e o transfer, o transporte da Cidade Velha para a Praia, onde estão alojados. Os pacientes vêm de todo o concelho da Ribeira Grande de Santiago, de Porto Mosquito, Santana, Porto Gouveia.
“Desta vez, tentámos trabalhar também em São João Baptista, para encurtar as distâncias, mas dois dias depois informaram-nos de que a coisa não ia funcionar. Havia problemas de abastecimento de água e de combustível. Depois, falaram com a Câmara e esta decidiu pagar o combustível do nosso transfer para a Praia”.
Sete anos depois de terem decidido vir a Cabo Verde, Ute e Wolfgang Kehl sentem-se perfeitamente em casa. E dizem que não lhes passaria pela cabeça deixar de prestar os serviços médicos aos cabo-verdianos, para outra tarefa qualquer. Vêm duas vezes por ano a Santiago, para dar consultas nos centros de saúde da Praia, Ribeira Grande, São Domingos e Assomada. E já são vários milhares de jovens e adultos da ilha de Santiago que se sentaram nas suas cadeiras e viram os seus dentes tratados, gratuitamente.
A descoberta das ilhas
Ute e Wolfgang Kehl reformaram-se em 2015 e começaram a pensar sobre o que fazer da sua vida, depois de muitos anos dedicados à medicina dentária. Até que, certo dia, encontraram um anúncio numa revista médica, de uma organização internacional, do género Federação dos Dentistas Sem fronteiras – Dentists Without Limits Fed, informações sobre a prestação de serviços médicos em países como a Namíbia, a Zâmbia e a África do Sul.
Precisavam de dentistas para trabalhar com eles. Wolfgang, hoje com 81 anos, foi falar com a organização, e no ano seguinte e ele e a esposa, Ute, desembarcavam na Praia. Vieram sem saber praticamente nada do país, muito menos a língua. Apenas a vontade de prestação de serviços na área da saúde dentária. “aproveitámos também para escapar ao frio da Alemanha, durante esse início de Inverno. Demos duas semanas de consultas e fizemos uma semana de férias”, diz Wofgang.
Instalaram-se no bairro do Palmarejo, numa casa pertencente à organização e foram contactados pela doutora Elizabete Tavares, médica dentista local, e coordenadora nacional do Programa de Saúde Oral, do Ministério da Saúde. O primeiro local de trabalho escolhido, para dar consultas à população, foi o Centro de Saúde de Tira-Chapéu, a sua primeira experiência como dentistas, em África.
Desconheciam completamente Cabo Verde, como contam, mas vierem de “espírito aberto, com muita vontade de ver e aprender”. A única coisa que sabiam, desde os tempos dos bancos da faculdade, na Alemanha, explica Wolfgang, é que os africanos têm algumas particularidades, “os ossos do maxilar muito duros e as raízes dos dentes mais profundas”.
As pessoas da ilha espantaram-nos, conta Ute. “São muito simpáticas, gostam muito de abraçar, são calorosas connosco.”
Em 2016, começaram pelas crianças, no Centro de Saúde de Tira-Chapéu e dizem que tiveram muito prazer em fazer esse trabalho, apesar de desconhecerem a língua. E ao regressarem à Alemanha, não tinham dúvidas, informaram a organização de que queriam voltar no próximo ano e a experiência continua até hoje. Aexperiência continua até hoje, com mais de 9000 pessoas já tratadas.
Apesar da idade avançada, Ute e Wolfgang pretendem continuar a trabalhar em Cabo Verde, enquanto a saúde o permitir. “Temos aqui amigos e sentimo-nos em casa. Não nos passa pela cabeça irmos começar algo de novo noutro lugar qualquer, fora daqui”, diz Wofgang.
Gostariam de poder trabalhar com jovens médicos cabo-verdianos, nas ilhas, e esperam que isso venha a ser possível, no futuro. “Mas tal já não faz parte do nosso trabalho”, lastima, tendo em conta os seus 81 anos.
O casal também deu os primeiros passos em obras sociais, financiando, a título pessoal, os custos de renovação de uma cozinha e casas de banho de uma escola, na localidade de Santana, no mesmo concelho, o mesmo em Alto Gouveia, onde financiaram o telhado, e a electrificação, também de uma escola.
Leia a reportagem na íntegra na edição 846 de 16 de Novembro de 2023