Por: Nuno Flores
A 05 de Janeiro de 2024 completar-se-ão dois anos que, juntamente com os demais membros da Iniciativa Outros Bairros (IOB), cessaram as minhas funções enquanto responsável pelo escritório técnico montado pelo Ministério das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação (MIOTH), no Alto de Bomba. Se durante o período, entre janeiro de 2019 e janeiro de 2022, se pôde realizar uma ação que visava a reabilitação de um lugar, a partir do modo de vida da população local, o Alto de Bomba, no final de 2021 não me cabia outra decisão que não a saída da IOB. Por um lado, porque dos 100 mil contos publicamente anunciados como disponíveis para realizar a IOB, entre 2019 e 2021, apenas foram disponibilizados cerca de 25 mil, por outro lado, porque a tutela não revelava à equipa o montante que seria disponibilizado para a globalidade da ação a partir de 2022, nem quando estaria disponível esse orçamento, justificando a decisão por cortes orçamentais relacionados com impactos da pandemia da Covid19.
Se a IOB sempre pautou a reabilitação urbana a partir do modo de vida da população local, foram muitas as ações que aconteceram e simbolizaram a intenção de construir um processo que exige compreensão, escuta e, sobretudo, a divisão de um dia a dia que, ora trazia a consciência de que é possível construir sentidos, ora nos confrontava com um fracasso, igualmente, possível. Lembro-me de críticas que me chegaram sobre o fim da ação da equipa que remetiam à necessidade da presença do Estado no Alto de Bomba que, sem o escritório local, desmontado no fim de 2021, deixaria de acontecer. Embora entenda que, de facto, desde aí deixou de haver a presença de uma equipa técnica no local, estou de acordo com pensadores reconhecidos internacionalmente na área do urbanismo, como Raquel Rolnik, por exemplo, quando sugerem a possibilidade destes locais se tornarem territórios de reserva. No caso do Alto de Bomba, assim é porque este território, como outros em Cabo Verde, está sujeito, quase em permanência, quer a um bloqueio burocrático constante criado pelo poder municipal que o coloca reservado para futuras operações turísticas ou imobiliárias, quer ao retrocesso trazido pela interrupção de uma reabilitação urbana a partir do modo de vida local, estando este processo agora transformado pelo MIOTH numa obra que apenas executa desenhos técnicos, certamente já desatualizados, realizados para concurso público feito pela IOB, em 2020.
Vivemos num contexto de urbanização planetária e foi por isso que me pareceu relevante e louvável a decisão de, em Cabo Verde, se ter realizado a IOB, embora me pareça que ou não se compreendeu o contexto atual de urbanização em que esta está inserida, ou não se compreendeu que, de facto, a reflexão e o desenho do Chão podem ser um caminho para que ações especificas no espaço público se possam tornar decisões concretas de política pública. Tudo isto, porque foi este mesmo Chão que se tornou no laboratório que banalizou a ideia de uma Era Urbana que valida a afirmação de que mais de metade da população vive em cidades, gerando uma visível confusão entre cidades e processos de urbanização. Ou seja, a cidade, que ao longo do tempo se tornou para muitos metáfora de uma vida melhor e uma palavra de múltiplos sentidos, perante a intensificação do processo contemporâneo de globalização expandiu-se e, à escala global, cresceu de forma praticamente ilimitada. Contudo, quanto à possibilidade de uma urbanização global, não se deve entender que esta denomine um generalizado processo de urbanização ao nível planetário, pelo que é relevante conhecer o inovador conceito de urbanização planetária, defendido pelo reconhecido grupo de investigadores do Urban Theory Lab, bem como, por uma das suas obras mais conhecidas: Implosions / Explosions: Towards a Study of Planetary Urbanization, que defende a existência de um conjunto dos processos sócio-económicos de escala global que produzem efeitos sistémicos contraditórios em vários pontos do planeta.
Voltando ao Alto de Bomba, vi recentemente nas redes sociais uma publicação do sociólogo Redy Lima, conhecedor profundo da realidade concreta dos processos de urbanização de Cabo Verde e, durante 2020, curador do programa Kubaka, que remetia ao facto da IOB, com a qual colaborou e que venceu prémios de arquitetura urbanística no país e no estrangeiro, apesar de descontinuado sem justificação pelo Governo, ter um dos seus espaços exteriores criados com dinheiro público destruído perante a inação da Câmara Municipal de São Vicente (CMSV). A publicação era acompanhada de um vídeo que mostrava duas pessoas a destruir um muro executado durante a segunda obra realizada pela IOB e que, à época, motivou uma interessante conversa sobre o espaço público. O diálogo realizado centrou-se na importância desse espaço, enquanto um lugar público e comum, portanto, que pertence a todas as pessoas que fazem há anos a vida do Alto de Bomba. Deste diálogo decidiu-se que aquele espaço se manteria público, pelo facto de uma moradora, desde sempre, nele fazer uma pequena horta que, em si mesmo, tinha uma contribuição efetiva na sua organização familiar. Relembrando que durante os três anos iniciais, entre 2019 e 2022, a IOB revelou a possibilidade de encontrar práticas que procuraram o diálogo para se poder entender como atuar, importa frisar que esta iniciativa pública, com 25 mil contos, possibilitou reabilitar cerca de 7000 m2 de espaço público que afetaram diretamente 171 habitações; todas as casas ficaram ligadas à rede pública de saneamento básico; 90% delas à rede de abastecimento de água; ou muros, drenage, pavimentos, entre outros, foram executados. Além disso, no que respeita à relacionalidade promovida entre todas as pessoas, pode-se hoje ouvir online o disco Kubaka, depois da realização de uma residência artística sobre hipo-hop que colocou os jovens locais como a centralidade do próprio bairro; encontrar nas ruas do Mindelo as trabalhadoras do grupo de calceteiras Amdjer na Obra que, apesar de agora trabalharem na CMSV, incompreensivelmente nunca conseguiram tornar-se quadros laborais estáveis do mesmo município; ou contabilizar cerca de 60 moradores, até então desempregados, que puderam participar e ter um emprego na construção do próprio bairro.
É, por isso, importante refletir sobre o processo da IOB. Um processo que, como referi no artigo que escrevi com o meu colega Ângelo Lopes e que foi apresentado no Congresso Mundial dos Arquitetos, em 2021, se abre à comunidade que irá receber a intervenção, passa por uma mudança radical do projeto autoral – que pré-define um programa e um conjunto de soluções – para uma suspensão dessa concepção do arquiteto, no sentido de uma abertura à cosmovisão da população residente no bairro, bem como às soluções que o seu próprio quotidiano foi desenhando ao longo do tempo no espaço comum. Desta forma, o processo demonstra, constrói um passo a passo que, por vezes, exige voltar atrás para se poder decidir ou, noutras tantas vezes, reconhecer erros que são inerentes à difícil mas fulcral compreensão de um modo de urbanização que se desconhece e que, por isso, claramente invalida a possibilidade de desenho, decisão ou solução prévias à ação. Só assim é possível trabalhar de uma forma que se considere as contradições vindas de efeitos que traduzem as diferentes faces da urbanização associadas ao capitalismo global: o extrativismo (minério, água, recursos alimentares, etc.), os sistemas sócio-técnicos (das telecomunicações aos sistemas de mobilidade de pessoas, mercadorias, informação, energia), as zonas económicas especiais, a concentração de trabalhadores precários nas várias geografias da urbanização da pobreza; o investimento imobiliário, etc. No caso de Cabo Verde, país com uma economia frágil e endividada, os efeitos da globalização são ainda mais marcantes e reproduzem fenómenos de dependência e de desenvolvimento desigual.
Mas se na publicação de Redy Lima se aponta o reconhecimento nacional e internacional da IOB e neste texto já discorri sobre a necessidade de contruir um passo a passo que permite a compreensão do território, várias razões podem justificar a degradação de um processo que teve este reconhecimento e se dispôs, como já aconteceu noutros países, a discutir essa já longa confusão entre cidade e processos de urbanização. Desde a distância atual das entidades públicas ao local, sobretudo devido à alteração do método de trabalho levada a cabo pelo MIOTH que implicou pensar-se possível a realização deste trabalho a partir de um desenho prévio; à inação já sumamente conhecida da CMSV; a algum erro de compreensão da nossa equipa, face a necessidades atuais que possam agora existir; ou a qualquer outra razão que, existindo agora, ainda não a saibamos compreender.
Só que, se hoje já se sabe, como fez a IOB, que é preciso encontrar as práticas que procuram o diálogo para se poder entender como atuar, espanta, isso sim, perceber-se o descaso em que foi deixado este processo e como, em Cabo Verde, se está a olhar para a habitação e para a urbanização. Por um lado, porque apesar das experiências já conhecidas como o Programa Casa Para Todos (CPT), no recente PLANAH 2021-30, atual Plano Nacional de Habitação do país, o ponto que remete à regeneração do habitat define a ação no enquadramento deste plano com caráter finito, se estagnada a proliferação das construções e dos bairros clandestinos, sem qualquer reflexão sobre o facto de, no mundo e em Cabo Verde, ser o contrário que está a acontecer. Por outro lado, porque se ao muro que se destruiu no Alto de Bomba tudo pode acontecer, inclusive, a sua reconstrução, o atual entendimento político sobre a IOB e sobre o processo de urbanização atual é, em si mesmo, mais do que um muro. É um abandono da população que só poderá ser contrariado com uma reflexão – alargada a técnicos da IOB, técnicos do MIOTH, técnicos da CMSV e a classe política local e central – que permitirá discutir e capitalizar o que a IOB realizou e que, no país e fora dele, tanto se reconheceu e falou. Só derrubando esse muro ideológico, que separa e exclui a sociedade de participar na construção de políticas públicas a partir de ações concretas realizadas nos lugares, só assim, se poderá repor à população do Alto de Bomba e, já agora, de Covada de Bruxa e Fernão de Pó a quem tudo também se prometeu e onde praticamente nada aconteceu, a possibilidade do exercício da cidadania que, entre 2019 e 2022, transformou Alto de Bomba, através de uma ação coletiva construtora de um entendimento político do atual processo de urbanização que acontece em Cabo Verde e no mundo.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 832, de 10 de Agosto de 2023