Por: Luís Kandjimbo**
O tópico sobre provérbios, sabedoria e literatura sapiencial das civilizações africanas representa um largo debate que conta com proponentes e oponentes, quer no continente africano e suas diásporas, quer em outras partes do globo. Entre os mais importantes proponentes figuram o ganense Kwame Gyekye (1939-2019) de cuja obra já fiz referências em outras ocasiões e o queniano Gerald J. Wanjohi com o livro «The wisdom and philosophy of the Gikuyu proverbs. An Epistemological Contribution», [A Sabedoria e a Filosofia dos Provérbios Gikuyu.Uma Contribuição Epistemológica]. Entretanto, no caso presente, trata-se do cruzamento de perspectivas de filósofos Africanos e alguma incidência sobre a intervenção de dois filósofos canadianos que se dedicaram e dedicam ao estudo da Filosofia Africana. Do lado dos proponentes está Claude Sumner (1919-2012), na imagem, e no pólo dos oponentes encontra-se Bruce Janz com as propostas que formula no seu livro «Philosophy in an African place»,(2009), [A Filosofia num Lugar Africano].
Harold Bloom e a literatura sapiencial
Ao responder à pergunta, «Onde Encontrar a Sabedoria?», o falecido crítico literário americano e membro da chamada Escola de Yale, Harold Bloom (1930-2019), elaborou um inventário de obras e autores que considerava como fontes de sabedoria na civilização ocidental. Na frase de abertura do texto formulou um pensamento que é curiosamente expressão de um sintoma. A frase é a seguinte: «Todas as culturas do mundo – da Ásia, da África, do Médio Oriente, da Europa, do hemisfério ocidental – preconizam escritos sapienciais».
O carácter sintomático da expressão deve-se ao facto de ser pouco provável que tal afirmação tivesse sido enunciada dez anos antes, quando publicou «O Cânone Ocidental», livro polémico e ostensivamente centrado no Ocidente. Não é a perspectiva que o motivou em 2004, quando publicou «Where Shall Wisdom Be Found?», [Onde Encontrar a Sabedoria?]. Ao pensamento subjacente na referida frase de abertura, Harold Bloom acrescentava uma outra ideia: «Os escritos sapienciais, a meu ver, possuem padrões implícitos de força estética e cognitiva».
Portanto, Harold Bloom acabou por mudar de ideais. Em primeiro lugar, passou a admitir que é possível ensinar, entre outras, a literatura sapiencial africana. Em segundo lugar, reconhece que o potencial de força estética e cognitiva dos escritos sapienciais é universal, existe em toda a parte.
De um modo geral, a literatura sapiencial é conotada com a sabedoria bíblica cujo suporte são os livros como Provérbios, Job e Eclesiastes. Os estudiosos mais conservadores não admitem a possibilidade de aplicar a categorização aos textos da sabedoria egípcia ou de outros povos africanos. A este propósito, antes da sua morte, já não era esta a posição de Harold Bloom.
Provérbios, fonte da filosofia sapiencial
Durante o século XX, a desconstrução dessa visão hegemónica na Filosofia Africana foi realizada por alguns filósofos como o canadiano-etíope, Claude Sumner, que desenvolveu um interessante trabalho de pesquisa, tendo revelado obras e autores da Filosofia Etíope, através de uma série de cinco volumes. Mas é especialmente a literatura filosófica sapiencial Oromo que aqui interessa. O resultado disso é o livro «Ethiopian Wisdom Literature: Oromo Proverbs», [Literatura Sapiencial Etíope: Provérbios Oromo]. À semelhança de outras comunidades africanas, os provérbios Oromo constituem um acervo que merece ser conhecido.
Claude Sumner dedicou uma vida à sistematização do conhecimento da Filosofia clássica Etíope e da sabedoria oral como fonte da filosofia. É o caso das obras escritas em Ge’ez, uma língua da Etiópia: «Metsehafe Felasfa Tebiban», «O Livro dos Sábios Filósofos», [The Book of the Wise Philosophers] e «Zena Skendes Tebib», «The Life and Maxims of Skendes», [A Vida e Máximas de Skendes]. Na primeira, tematiza-se a sabedoria, a moderação e a fé. É um texto filosófico que permite fazer prova do diálogo intercivilizacional. A segunda, comporta instruções morais através das quais se visa a formação do carácter.
Entretanto, a exploração da filosofia sapiencial oral etíope conduziu Claude Sumner ao conhecimento de autores que produziram textos escritos representativos do pensamento filosófico, nomeadamente, o filósofo Zera Yacob e seu discípulo Walda Heywat.
Provérbios não constituem filosofia.
Para Bruce Janz, os provérbios são formas de linguagem que apresentam algumas especificidades e podem ser usados para vários fins. Contrariando assim o que propõem filósofos como Claude Sumner, ele entende que o seu interesse é escasso e o uso filosófico deve ser posto em causa. Do ponto de vista argumentativo, os provérbios são estruturalmente deficitários. Bruce Janz entende que a sua enunciação não permite só por isso identificar razões que lhe estão subjacentes.
Por outro lado, Bruce Janz critica Wanjohi pelo facto de classificar os provérbios com recurso a categorias filosóficas ocidentais. Mas a afirmação de Janz suscita interrogações, quando refere que no Ocidente os provérbios não são filosofia, mas simplesmente crenças de alguém sobre alguma situação. Além disso, as fraquezas da argumentação de Wanjohi, no dizer de Bruce Janz, residem no facto de o uso das categorias ocidentais ter dado lugar a uma definição suspeita de domínios em que se inscrevem os provérbios, designadamente, a metafísica, a epistemologia e a ética.
Entre os destinatários da crítica Bruce Janz encontramos também Kwame Gyekye. À refutação das teses de Gykye está associado um fundamento. É que o uso dos provérbios pelos filósofos Africanos, acrescenta Bruce Janz, constitui um simples exercício de classificação. Assim, na sua perspectiva, os que defendem o provérbio como veículo de proposições filosóficas operam com um equívoco porque o tratamento a que Gyekye e Wanjohi submetem os provérbios não permite reconhecer que tal exercício configura a prática de um exame racional. Aliás, em seu entender os provérbios não são dispositivos da filosofia. Só se tornam filosóficos quando se associam a questões filosóficas. Bruce Janz vai concluindo o seu pensamento. Por isso, responde à pergunta: Como podem os provérbios ser relevantes para a filosofia?
Bruce Janz reduz à insignificância as propostas de Claude Sumner, Kwame Gyekye e Gerald J. Wanjohi. Afirma que os provérbios constituem repetições mecânicas da sabedoria e, consequentemente, são resistentes à filosofia. Podem servir apenas como fonte para interrpgações sobre a filosofia africana. Por essa razão, sustenta que é indefensável a ideia segundo a qual o uso provérbios permite demonstrar a existência da filosofia na África tradicional.
Literatura e hermenêutica filosófica
O reducionismo de Bruce Janz aplicado ao provérbio, enquanto género literário, faz a apologia da inexistência de uma literatura sapiencial. A este respeito, ele considera que o provérbio é um objecto de estudos da paremiologia, antropologia, semiótica e dos estudos de literatura. Por conseguinte, desqualifica esses domínios disciplinares, na medida em que nenhum deles é filosófico, embora possam tematizar questões filosóficas.
O momento da conversa sugere a avaliação dos contributos de outros autores que abordam esta mesma problemática. O filósofo democrata-congolês, Okolo Okonda W’okelo, situa-se no lado dos proponentes que tematizam o provérbio como filosofia. Ao iniciar a reflexão no seu livro «Pour une Philosophie de Culture et du Developpment. Recherches d’hermenéutique et de praxis africaines», (1984), [Para uma Filosofia da Cultura e do Desenvolvimento. Investigação de Hermenêutica e Práxis Africanas], Okolo W’okelo clarifica a sua posição. Discorre sobre ela e manifesta a sua divergência relativamente a autores como o camaronês Njoh Mouelle e o democrata-congolês Nkombe Oleko que sustentam a perspectiva segundo a qual «os provérbios não são filosofia». Negam o alcance filosófico do provérbio. O filósofo camaronês reconhece apenas que possa haver um pensamento em cada provérbio. Por isso, entende que é abusivo elevar esse pensamento imediatamente ao nível de uma reflexão filosófica, já esta requer uma maior elaboração.
Por sua vez, Okolo Okonda W’okelo considera legítimo abordar o problema da artiulação entre a hermenêutica filosófica dos provérbios e abordagem científica dos provérbios numa perspectiva da praxis, entendida num sentido complexo, reunindo a análise de uma sociedade e a filosofia subjacente. Neste sentido, Okolo Okonda propõe-se «pensar a partir do provérbio», num exercício típico da hermenêutica filosófica. Afirma que entre o provérbio e a filosofia existem vários tipos de nexos e vínculos: 1) relações de contiguidade ou interferência; 2) relações de diferença; 3) relações de identidade.
Portanto, a afirmação segundo a qual no Ocidente não se atribui estatuto filosofico aos provérbios, não pode legitimar a impossibilidade de recorrer às categorias ocidentais.A subjacente visão relativista, assente no princípio segundo o qual cada civilização deve operar com o seu aparato conceptual, confronta-se com um teste de consistência perante a frase lapidar de Harold Bloom: «Todas as culturas do mundo – da Ásia, da África, do Médio Oriente, da Europa, do hemisfério ocidental – preconizam escritos sapienciais». Em síntese, pode dizer-se que a classificação da literatura sapiencial de africana e a sua possível teorização são igualmente utilizáveis em outros continentes.
Afigurando-se necessário prosseguir a reflexão, retomarei o presente tópico na conversa do próximo domingo.
* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 1 de Maio, aqui republicado com a autorização do autor.
** Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia Geral.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 766, de 05 de Maio de 2022