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Banimento de opiniões na Televisão de Cabo Verde

Por: Antonio do Espírito Santo*

No passado Domingo, dia 23 de Julho, estive no programa “Domingo à noite” da RTC a comentar as notícias da semana juntamente com o dr. Felisberto Vieira. Preparou-se tudo de novo para o Domingo dia 30. Porém, ao cair da noite do dia 28, o jornalista comunica-me que recebeu ordem para me afastar da participação nesse Programa. Trata-se de uma intervenção autoritária e brutal do Governo, contra o direito de informação e pluralidade de opiniões no nosso País.

Estes factos traduzem a orientação política geral imprimida à Comunicação Social do Estado em Cabo Verde, e não é um mero episódio de violação pontual de regras estabelecidas para o sector.

Pela parte que me cabe, a surpresa só tem a ver com a brutalidade deste episódio. Que os comentários durariam pouco, nunca tive dúvidas.

Agradeço as manifestações de apreço e simpatia que apareceram. A indignação perante a violação de um direito, é salutar e necessária, a qual tem de ser irrigada com a lucidez que vem do antigo lema, “não rir nem chorar, mas compreender”.

Seguindo este lema, vem a pergunta, como se chegou até aqui?

Terá várias respostas numa sociedade plural, e o que segue é o primeiro esboço da minha resposta, na expectativa de que todos os caboverdianos e caboverdianas farão as suas próprias reflexões e formarão as suas próprias convicções. Sim, convicções precisam-se.

Mas a diferença entre um homem ou uma mulher de convicções, e um talibã reside na permanente disponibilidade daqueles primeiros em revisitar as suas ideias à luz de desafios teóricos lançados, de olhar de frente os desafios postos pelas experiências empíricas, de nunca fugir aos problemas, mesmo os mais difíceis que a vida sempre trará. Só os talibãs e candidatos a sanguinários têm a resposta pronta: corta-se a cabeça a quem levantar problemas.

“Celerados na sala”!

Há mais de 20 anos (1999), fiz um discurso (escrito) na Direção Nacional do MPD, com um balanço pouco lisonjeiro das orientações políticas então seguidas no Governo e, nomeadamente, criticando as privatizações. Esse discurso apareceu previamente num órgão da Comunicação Social.

Essa experiência foi a de uma reunião convocada expressamente para me insultar, e durante a qual a violência verbal atingiu níveis absolutamente inesperados. Ficou-se por esta violência, muito pouco ou quase nada abordando os problemas levantados, nada tendo sido dito por exemplo sobre as privatizações que inquietavam, nomeadamente no incipiente sistema bancário e na Telecom. O escândalo ENACOL só apareceria depois!

Alguns encararam a hipótese de me destituir do cargo de Presidente da Assembleia Nacional! Sim, a punição por exprimir opiniões desfavoráveis ao Governo seria a minha destituição do cargo de PAN. Quem teve esta experiência não se pode admirar do banimento hoje, por razões de mera opinião. Diga-se entretanto, que não cedi às pressões para renúncia. Para cumprir a Constituição e em sua defesa, não abdiquei do meu direito à palavra!

Não deixei transparecer o meu estado de espírito no final da reunião a que aludi no começo deste ponto 1, mas, no meu íntimo, latejava de forma quase obsessiva que “Há celerados na sala”.

Manobras espúrias e usurpação de poder

Há dias disse que, pela segunda vez me via confrontado com uma hipótese de usurpação de poder (e de funções) em Cabo Verde (um post FB intitulado “AO CORRER DO DEDO”); a primeira vez ocorreu, segundo a minha leitura política, no verão de 2000, quando Carlos Veiga se auto suspendeu do cargo de Primeiro-Ministro: uma manobra espúria, e queria-se que o Lider Parlamentar de um Partido, no caso o MPD, indicasse ao País (e chegou a fazê-lo na Rádio) quem seria o novo Primeiro Ministro. Mas isto é uma atribuição exclusiva do Presidente da República. Então estava lá eu no meu posto de PAN, donde ajudei a empurrar Veiga para a demissão, o que ele fez e até agora nunca mais voltou ao topo do poder em Cabo Verde!

Nomear o PM continua a ser atribuição exclusiva do PR eleito pelos caboverdianos como quer a Constituição que votei e não de qualquer um num qualquer Partido.

Na sua comunicação de demissão, Veiga aludiu ao papel que tive nesse desfecho, porém sem me nomear. Sei de ginjeira, da frustração ainda hoje reinante entre os “super-veiguistas” de então e sobretudo de hoje (siiiim, sobretudo os actuais) e que irrompe quando menos se espera. É preciso dizer isso, não por estar à procura de explicações psicologistas em política, mas porque a envolvente pode contar tanto ou mais que o próprio Lider, já que é na “entourage” que se “compatibilizam interesses”.

Os interesses e a degenerescência do MPD

Este último ponto, é mais importante que todos os outros atrás, mas exige maior detalhamento, pelo que vai ser necessário mais de um texto, nomeadamente sobre os problemas sectoriais. Espero poder retomá-los. De momento ficam algumas gerais sobre as dinâmicas políticas e económicas que vão corroendo o MPD de forma cada vez mais acelerada.

As forças políticas, sociais e econômicas que nesses mais de vinte anos passados foram corroendo o MPD, entretanto reforçaram-se e os seus (maus) procedimentos alargaram-se. Prosseguem as privatizações e os negócios boca-a boca multiplicam-se; a “catástrofe” transportes marítimos começou com um negócio boca a boca; os transportes aéreos idem; prepara-se para se repetir a dose em sectores como a distribuição de medicamentos (EMPROFAC) e no NOSI; e começa a haver uma tensão entre a saúde como um direito dos cidadãos e o “negócio da saúde” para lucro de alguns.  Neste último caso ainda subsiste a hipótese de haver algum equilíbrio e bom senso.

Politicamente, isto é coerente com um Movimento que se tornou membro da IDC onde pontifica o Partido Popular Europeu, incluindo Partidos de extrema direita, isto é, partidos que defendem e apoiam a perseguição a emigrantes na Europa (que inclui muitos caboverdianos).

Por isso insisto, não se está perante um episódio pontual, mas sim, perante o emergir de um autoritarismo a serviço de interesses socio-económicos dominantes em CV e a construção de um sistema capaz de os esconder, isto é, com processos cada vez menos transparentes.

Reside na transparência, um dos nós da defesa da Democracia e do Estado de Direito em Cabo Verde à volta do qual os caboverdianos, seja qual for o seu partido, vão ter de se unir.

*Engenheiro, ex PAN e fundador do MpD

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 831, de 03 de Agosto de 2023

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