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A honra das palavras

Por: Germano Almeida

Num texto muito bonito o escritor português Batista Bastos disserta, com muita propriedade e ironia, sobre a honra das palavras. Há muito se perdeu a noção de que as palavras têm honra, escreve ele. Políticos servem-se delas para mentir, ocultar, dissimular a verdade dos factos e as evidências da realidade. Mas também escritores e jornalista (e magistrados, já agora!) as debilitam e as entregam às suas pessoais negligências.

Mas não é somente uma questão de gramática. É sobretudo uma questão de caráter. E a condenação do deputado Amadeu Oliveira a uma pena de sete anos de prisão, em teoria por ter cometido um crime de atentado contra o estado de direito democrático, é o maior atentado ao conteúdo, às normas, ínsitas na formulação dos direitos, liberdades e garantias, cometido neste país desde a independência nacional.

Sete anos de prisão corresponde a mais de 2550 dias na cadeia. Portanto, é uma pena que tem que responder a um crime gravíssimo e marcante e que tenha deixado na sociedade onde foi cometido um rastro de desolação durável. Como o presidente da República disse ainda há poucos dias durante a posse do presidente do Supremo Tribunal, num resumo sábio,  direito é bom senso. Sim, direito é sobretudo bom senso. E essa pena absurda aplicada ao Amadeu Oliveira, demonstra uma absoluta ausência de senso e de decência por parte dos juízes que estiveram reunidos, não para o julgar, mas simplesmente para o condenar.      

  Todos estamos ansiosos pela sentença em papel. Todos estão curiosos por conhecer os “factos” que conduziram à condenação do Amadeu Oliveira a sete anos de prisão. Porque não deverão  ser só palavras. Palavras ele as usou com abundância, mesmo com exagero. Porém elas têm honra, até quando aleivosamente torturadas e deturpadas, elas continuam a gritar a sua integridade e  inocência. E por isso mesmo, é errado, absolutamente errado, dar carta branca aos magistrados em geral. Nunca devemos esquecer que são homens como qualquer de nós, como nós sujeitos ao ódio, à vingança, à mesquinhez. E também a vícios inconfessáveis que perfeitamente podem sujeitá-los à chantagem e conduzi-los a decisões que ficam nos antípodas do que pode ser a justiça. Temos, pois, o direito e até o dever de pôr em causa decisões judiciais como essa que condenou Amadeu Oliveira porque só a mais completa ausência de bom senso pode levar alguém a dizer que se fez justiça na sua condenação. As decisões judiciais não são divinas. E mesmo que fossem! Aprendemos com Voltaire que se permitiu questionar Deus pela infinita maldade que foi destruir Lisboa com o terramoto de 1755.

A fé cega que se tinha nos juízes e nos tribunais que muitas vezes quase chegava à divinização, foi-se paulatinamente esboroando, sem dúvida por exclusiva culpa dos mesmos, e hoje em dia são poucos já os magistrados que acreditam e afirmam o carácter impoluto da magistratura. Aliás, seria interessante fazer-se um inquérito entre os próprios a saber quem não acredita na corrupção dentro da Justiça. Há pouco tempo fez-se um inquérito do tipo em Portugal e as respostas foram surpreendentes, parece que não se contava haver tantos juízes corruptos.

Temos, pois que voltar a honrar as palavras na sua honra. Baptista Bastos diz delas que possuem cores secretas, odores subtis, densidades ignoradas. E por isso mesmo, diz ele, o discurso político nos conduz ao nojo da frase. Isso porque nos seduz e encanta e por momentos acreditamos numa seriedade que afinal não passa de palavras que voam com o vento, porque, como alguém já disse, quando torturadas também as palavras confessam, dizem o que quisermos ouvir.

O coletivo de juízes que julgou o Amadeu escreveu ter formado a “firme convicção” de que ele agiu como deputado “de forma consciente” quando subtraiu um condenado do país, com o firme propósito de impedir a justiça de funcionar. Pode ocorrer uma pergunta: o Amadeu, quando vai à casa de banho, vai como deputado, como advogado ou simples pessoa?

Dizem os juízes ter ficado provado que houve “combinação prévia” entre o Amadeu e o supervisor da Polícia Nacional do aeroporto para tirar o Arlindo Teixeira do país. Porém, a essa “combinação prévia” se chama em direito penal de “cumplicidade”. Devemos pensar que neste caso se trata de uma cumplicidade não punível, ou essa afirmação de “ficar provado” é simples palavreado?

Amadeu cometeu um crime contra o estado de direito, dizem que por ter subtraído um preso das mãos de um Órgão de Soberania, o que pôs em causa valores do estado de direito e da ordem constitucional que ele deveria promover como deputado. E por isso apanhou sete anos de cadeia. E um conselho da juíza Circe: tenha muita fé em Deus!

Essa terá sido certamente a parte mais substancial do acórdão de condenação do Amadeu, essa encomendação ao Divino. Porque sem fé, sem se aceitar o dogma, não diria da infalibilidade dos juízes, digo antes, da sua seriedade inabalável, como poderia o Amadeu e todos nós outros dormir tranquilos?    

Mas o que mais preocupa é que não preocupe a generalidade dos cidadãos ver uma condenação tão insana, e continuarem como se nada fosse. Os nazis proclamavam que ser soberano é ter a prorrogativa de declarar o que é legal e o que não é, e impor a sua vontade burocraticamente. No entanto, pouca gente parece reparar que é o reino do arbítrio que está a instalar-se entre nós, pode-se dizer que numa conspiração maquiavélica que começou com a comissão permanente da Assembleia Nacional entregando ilegalmente o deputado Amadeu ao Ministério Público para o “conter”, como esclareceu o seu presidente, passou por um juiz que o mandou prender sem sorteio do processo e sem ele estar pronunciado, depois pela vergonha nacional que foi o plenário da assembleia nacional ter votado a suspensão do seu mandato mais de um ano depois de ele estar preso na cadeia. E agora condenado sem justiça nem compaixão por um impiedoso coletivo de juízes. E é esse o nosso estado de direito democrático!

Mas já que se faz tanta questão de chamar ao nosso regime político de estado de direito democrático e em nome dele um homem está condenado a mais de 2500 dias de prisão por ter-lhe ofendido, ainda que até agora não se saiba muito bem como foi a ofensa, para dar valor e sentido às palavras, devíamos acrescentar a palavra “arbitrário” ao conjunto: estado de direito democrático-arbitrário! Faria jus ao que estamos a mostrar que somos. Uma chamada democracia que não hesita em aplicar o terror do Estado para silenciar aqueles que considera rebeldes! 

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 794, de 17 de Novembro de 2022

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