Ineida Sena é batucadeira e fundadora do grupo de “Herança di nos Terra”, da comunidade de Lagoa, São Domingos. Fora dos palcos, é agente da Polícia Nacional. Recém-regressada do Brasil, onde esteve a representar o batuco, ao A NAÇÃO conta como é que lida, no seu dia a dia, com esses dois lados da sua vida. “Ser agente da PN não é só opressão… permite também vivenciar o lado artístico”, garante.
Um grupo de batucadeiras do município de São Domingos, interior da ilha de Santiago, participou recentemente num intercâmbio cultural de duas semanas com as quilombolas, de Maceió, Brasil, iniciativa coordenada pelo músico Manuel de Candinho.
Entre as sete mulheres, integrantes de diferentes grupos de São Domingos, chamou atenção a presença de Ineida Sena, uma batucadeira que fora dos palcos é agente da Polícia Nacional.
“Polícia atxan ku batuco”
Representante e fundadora do “Herança di nos Terra”, Ineida Sena conta que, sendo filha de uma batucadeira, aprendeu a cantar e a batucar ainda “na mocidade”. Em 2009, instigada por outras mulheres da sua comunidade, criou o “Herança di nos Terra”, altura em que ainda não era agente da PN. E, por isso, sublinha: “Polícia atxan ku nha batuco”.
“Quando entrei para a PN em 2013, eu já era batucadeira. Depois de criar o grupo em 2009, dei uma pausa porque tive quase quatro anos a trabalhar na ilha do Sal. Depois, regressei para a cidade da Praia, para terminar o curso universitário. Assim que possível, retomei o meu batuco e reactivei o grupo que precisava ser reactivado”, conta.
A nossa entrevistada avança que, até agora, tem conseguido conciliar os dois lados da sua vida, sem que um interfira no outro. “Eu sou uma agente da polícia, mas também sou uma agente cultural. Tento sempre agregar essas duas coisas. Tenho compromisso com o meu trabalho, a minha vida profissional e tenho compromisso com o meu grupo.
Participo das actividades culturais quando é possível e tudo tem dado certo até agora”, explica, salientando que foi no gozo das suas férias, por exemplo, que conseguiu participar com as demais colegas do grupo, de São Domingos, no intercâmbio cultural entre 16 e 30 de Março, no Brasil.
Ineida Sena, de 35 anos, além de batucadeira e PN, também é mãe, dona de casa, agricultora e formadora, acredita que “ser polícia artista não é coisa de outro mundo”.
“Há uma forma de aproximar estas duas áreas. Enquanto autoridade temos também o papel de sensibilizar e podemos fazer isto através da música”, explica.
Temos muitos na PN”
A nossa interlocutora diz que muitas pessoas pensam que a rotina de polícia é fechada, o que é falso. “Temos muitos artistas na nossa profissão. Muitos agentes da PN têm talento para cantar e tocar”, complementa, referindo que até já se pensou em criar uma banda da Polícia Nacional.
“Fiz a proposta para criarmos uma banda musical, semelhante à banda das Forças Armadas que todos conhecemos. Mas não tem sido fácil porque, na Polícia, os trabalhos são por turno e é complicado juntar todos os interessados”, acrescenta. Ineida acredita, inclusive, que este outro lado da Polícia – o artístico-, se for conhecido e melhor explorado, poderá permitir uma maior aproximação com a sociedade.
“Podemos, através da arte, ajudar a desmistificar o conceito das pessoas em relação aos agentes da PN. Muitos pensam que nós actuamos somente na parte de repressão.
Não vêem a parte da sensibilização, da prevenção, da cumplicidadeonde todos podemos ser parceiros na luta por uma sociedade mais segura, justa e respeitada”, explica.
Acrescenta ainda que “a sociedade precisa ver o agente da PN como amigo, vizinho e não só como autoridade”. E que por isso uma banda da Polícia poderia ajudar nesse desiderato, daí esperar que um dia essa ideia seja assumida plenamente pela corporação.
Empoderar outras mulheres
Além de uma vida activa no batuco, Ineida Sena, que trabalha no Gabinete Estratégico de Acção Policial, chefe-secretária e técnica de estatística, costuma ministrar formações sobretudo às mulheres.
“É uma forma que encontrei de ajudar outras mulheres e não só. Partilho com elas temas diversos da nossa sociedade, como autonomia, empoderamento, inteligência emocional e outros temas actuais que lhes permitem gerir tudo à volta delas.
Acredito que a mensagem está a passar e que hoje elas são mais independentes, com melhor autoestima”, conta a jovem que diz estender a capacitação aos integrantes do seu grupo de batuco e às outras mulheres da sua comunidade, em São Domingos.
Os 13 anos pela “Herança di nos Terra”
“Herança di nós Terra”, grupo de batuco de Lagoa, em São Domingos, interior de Santiago, foi fundado por Ineida Sena, em 2009. Hoje, ao fim de 13 anos de estrada, o grupo tem participado em iniciativas ligadas a este género musical, uma das expressões orais mais antigas de Cabo Verde.
As suas composições retratam, segundo a sua responsável, Ineida Sena, a realidade, as preocupações e outras coisas mais do dia a dia da sua comunidade e da sociedade cabo-verdiana no geral.
“Cantamos tudo o que chama a nossa atenção, acreditando ser agentes de mudança da sociedade”, conta Ineida Sena, referindo que a música mais recente do grupo (antes desta ida ao Brasil que lhes inspirou uma nova composição), foi sobre a covid-19.
Além de iniciativas nacionais, festivais de batuco a nível de Santiago, shows no Quintal da Música, Seven, Alquimist, entre outras participações, o grupo já vivenciou experiências internacionais.
Intercâmbio cultural no Brasil foi “gratificante”
Recentemente, três elementos de “Herança di nos terra” participaram da iniciativa do músico Manuel de Candinho em parceria com o músico-educador, compositor e pesquisador brasileiro Naldinho Freire. A deslocação deveu-se a um intercâmbio cultural com a comunidade dos quilombolas de Maceió.
Quilombo são zonas no Brasil, formadas por descendentes de antigos escravos africanos, que desta forma procuraram fugir à escravatura. Quilombolas são o que restam desse período da história do Brasil. Algumas práticas antigas, oriundas de África, são conservadas até hoje, por via da transmissão oral, de pais para filhos.
A ideia, segundo Manuel de Candinho, é que esta «convivência» entre o batuco (Cabo Verde) e os quilombolas (Brasil) resulte num documentário para ser apresentado ainda neste ano de 2023. Isto além de promover a criação de um grupo de batuco das quilombolas e que posteriormente poderá vir para Cabo Verde actuar, retribuindo a visita das cabo-verdianas.
Afinal, o intercâmbio entre os dois lados do Atlântico permitiu às batucadeiras ensinar batuco e outras tradições do interior de Santiago às suas colegas quilombolas e adquirir também alguma experiência cultural.
“Foi uma experiência boa que não sei descrever”, conta Ineida Sena que esteve a representar o seu grupo. “Foi de grande satisfação poder levar o batuco, expressão oral do nosso país que quase caiu em esquecimento, a um outro continente para ser apreciado”.
Novos convites
De regresso a Cabo Verde o grupo diz estar de volta aos palcos nacionais, mas já de olhos em outras oportunidades além fronteiras.
“Temos um convite para comemorar o 5 de Julho– Independência de Cabo Verde no Senegal. O convite partiu da nossa comunidade em Dakar, especificamente do grupo de batuco ‘Estrela Cadente’. Neste momento estamos à procura de apoios para ajudar com as despesas, sobretudo as passagens, já que só temos o convite e o custo é por nossa conta”, adianta a nossa entrevistada.
“Batuco precisa ser incentivado e valorizado”
Ineida Sena diz que depois da experiência vivenciada no Brasil, ficou mais claro que o batuco não está a ser valorizado como deveria, no seu próprio país. “Por duas semanas, o batuco foi muito bem acolhido no Brasil. Ali, vimos o valor que não é dado a este género em Cabo Verde”, conta a nossa interlocutora. “É triste ver como é que o batuco está a ser eliminado, aos poucos, dos palcos de grandes eventos a nível nacional”.
“Se não for nos poucos festivais de batuco que acontecem a nível de Santiago, as nossas actuações se resumem nos pequenos convites, de vez em quando, para actuar em alguns espaços culturais. Do resto, são alguns convites privados para participar de casamentos e aniversários”, acrescenta, lamentando o facto que os festivais de música realizados nos diversos concelhos tenham espaço para MCs e não para batucadeiras.
Para uma melhor valorização, além da aposta das autoridades e de promotores de eventos, Ineida Sena acredita que o caminho é, primeiramente, mudar o paradigma de que batuco é uma actividade para mulheres “desocupadas”.
“Muita gente pensa que estar no batuco é sinónimo de não ter o que fazer. Eu sou ‹estudada›, tenho licenciatura, vários cursos, tenho minha profissão, mas estou no batuco assim como outras mulheres que têm suas profissões mas que também abraçam este gênero.
Por isso, hoje em dia, este pensamento de que batuco é para as mulheres desocupadas e analfabetas do interior já não faz sentido”, sublinha.
Mais homens no batuco, precisa-se E tem mais: “Batuco não é só para mulheres. É tradição do povo e povo inclui homens e mulheres. Mas, os homens estão ainda um pouco retraídos em relação a este género. Fiz muitos convites a vários homens para entrarem no grupo, mas sempre recusam”.
Até agora, Ineida só conseguiu convencer um homem a integrar o seu grupo: “Com muita insistência acabei por conseguir convencê-lo. Ele é bombeiro e tem muito talento no batuco”, refere-se à única presença masculina no meio de 14 mulheres que dão vida ao “Herança di nos Terra”.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 816, de 20 de Março de 2023