Por: Filinto Elisio
Noite (antiquíssima e idêntica, de Álvaro de Campos) que nenhum astro alcança. Aqui e agora, a mágoa veste-se de recato. Noite que me inquietas, a cada sopro de vida, sempre à distância imprecisa dos tempos. Noite. E os sussurros tomados de noite. Por que assim tão precoce?
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Gosto daqueles versos na música “Feijoada Completa”, em que o compositor Chico Buarque sentencia “ponha os pratos no chão/ e o chão está posto”. Gosto que abras a mente, vasculhando o Bashô dentro de ti, e apresentes um haicai único e original, antropofagia de tudo o que és, sem dezassete sílabas japonesas, divididas em três versos de cinco, sete e cinco sílabas, com referência à natureza, etc e tal.
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Poiética e a sua imensa reticência. Essa coisa mais arguta, na fímbria da sensibilidade, de um Corsino Fortes, inteiro haijin, detonando a métrica e a rima, em “Sinos de Silêncio”. Poesia aferrolhada, cartesiana e burra, tenhamos dó dela. A gazetilha que anuncia insegurança alimentar aguda, quando há fome, e a nobre delicadeza de dar as boas-vindas a este dia, aziago e amofinado. E vamos botar água no feijão!
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Vamos recordar o tempo e a ininterrupta excitação de o escrever. Enquanto a vida, estranha e misteriosa, acontece…acontecendo.
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Talvez nada mais haja que a madrugada, sombra de crepitações insones, Madrugada, sem hora exata de alumbramento…rodeiam-me a solidão e a imprecisão – se tudo a fingir tempo ou lugar…
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Terminou a jornada em Santa Maria da 4ª edição do Festival de Literatura-Mundo do Sal, para o reinício da primeira extensão na Cidade da Praia, sempre em homenagem ao poeta cabo-verdiano João Vário e ao filósofo maliano Hampâté Ba. A segunda extensão a ser escrutinada…numa espécie de “educação pela pedra”, como vaticinara em verso o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto.
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As homenagens da 5º edição do FLMSal, em junho de 2023, irão para a linguista e nacionalista cabo-verdiana Dulce Almada Duarte e o escritor e tradutor italiano Antonio Tabucchi. Que nada nos desvie de andar as rotas que são vossas, meu pai Anastácio Filinto, meu irmão Antero Simas. De modo que, sem tardança e com a vossa compreensão, estes caminhos (onde rebentam flores e frutos)…caminhando.
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Sei que te fizeram uma serenata na Rua Pedonal, para o espanto dos turistas, enquanto eu te rezava, sem contrição, num longo poema de Fernando Pessoa e contava à minha sombra da primeira vez que fomos assistir ao “Mr. Gone”, dos Weather Report, em Boston, e tu e o Briam (outro desaparecido em combate), ajuramentados na defesa de que o jazz pode também ser free-form experiments e demais liberdades. Irias ter de convencer ao Senhor Anastácio Filinto que, amante de Sidney Bechet, de Duke Ellington e Louis Armstrong…ciente de que o jazz não poderia sair da escala poética e genealógica do poeta americano Langston Hughes
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Lembranças que o tempo ainda permite, pois a madrugada é proposição de lembranças. Com afeição e serenidade. Com maturidade. Vamos ainda juntos fazer germinar as sementes lançadas dias-há no mundo…e que é futuro, como a tua música. Como naqueles versos da poeta brasileira Adélia Prado (cujo alaranjado brilhante espevita a alma da Márcia) e que nos desafia constantemente amanhecendo. Nada mais haja que a madrugada, meu Pássaro Maior!
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 773, de 23 de Junho de 2022