Por: Germano Almeida
O crime verdadeiramente grave pelo qual Amadeu Oliveira está sendo sacrificado no altar dos juízes é o de “atentado ao estado de direito democrático”. É um crime terrível e também temível e do qual todos devem fugir aterrorizados. Tanto mais grave quanto é certo tratar-se um crime absolutamente abstrato, e o acusador ter feito questão de explicitar que não se trata de um crime contra o Estado de Cabo Verde, como, segundo o mesmo, algumas pessoas chegaram a pensar. Diz ele que não, que é antes um crime contra “o estado de direito democrático”.
Quem dera ao Amadeu que fosse um crime contra o Estado de Cabo Verde! É que o Estado de Cabo Verde existe, é concreto, tem leis (muitas que não se respeitam, é verdade, como é o caso da que legitimou a prisão do AO!), tem uma Constituição celebrada com cerimónias diversas, ainda que violada ostensivamente e despudoradamente pelo próprio Parlamento que a aprovou há 30 anos com pompa e circunstância e os deputados do MPD todos expressamente de fato escuro e gravata a mostrar a grave solenidade do ato, e até tem um dia comemorativo: 5 de julho de cada ano.
Mas o crime de que AO está acusado não é contra o Estado de Cabo Verde, é contra o estado de direito democrático. A extrema gravidade desse único crime será certamente melhor intuída por aqueles que já leram O Processo de Kafka: ”Alguém deve ter difamado Joseph K., pois que numa linda manhã foi preso sem ter cometido qualquer crime”. Nunca lhe valeu de nada afirmar a sua inocência, dizer que não tinha cometido crime nenhum. Quando chegou a hora que as autoridades tinham decidido, ele foi levado e esfaqueado no coração. Como um cão, diz Kafka que foram as suas últimas palavras.
É que simplesmente cometer um crime contra o estado de direito, seja ele democrático ou então com arremedos de totalitário, como é o nosso Estado, é a coisa mais simples e banal, ou então a mais impossível, que pode existir.
Quem em consciência poderá responder o que é isso de estado democrático de direito? E quem, após responder em teoria e comparar as práticas de algumas instituições do nosso Estado, dirá ainda que somos um estado de direito democrático que é urgente salvar das diabruras e aventuras de um Amadeu Oliveira?
Alguém com o mínimo de conhecimento de direito pode ignorar, e ainda por cima vangloriar, que antes de seja quem for (seja ele juiz, procurador-geral ou simples oficial de diligências) pedir a suspensão do mandato de um deputado, esse deputado terá primeiro de ter sido PRONUNCIADO por um juiz pela prática de um certo e determinado crime? Relembremos o conceito: “DESPACHO DE PRONÚNCIA é a decisão proferida pelo juiz, quando termina a instrução, (de um processo) pronunciando-se no sentido de o arguido ser submetido a julgamento. O juiz profere despacho de pronúncia quando conclui que foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”.
Quando instituições que deviam ser exemplo, como é a Assembleia Nacional ou os Tribunais, preferem ignorar esse facto elementar, não podemos ter a pretensão de dizer que estamos a viver num estado de direito, quanto mais direito democrático. Os Estados que agem dessa maneira têm a designação de totalitários ou fascistas.
Não obstante a gravidade e destemperança da punição pedida pelo Ministério Público contra o Amadeu, não é possível não se rir diante da absurdidade de certas proposições expendidas pelo digno agente. Por exemplo, que o Amadeu queria expor as fragilidades do sistema judicial e com isso provocar uma reforma no sector da Justiça. Mas convenhamos que essa afirmação, que na verdade não tem ponta por onde se lhe possa pegar, seria uma coisa boa pelo qual o Amadeu deveria ser louvado e não punido, porque se há uma instituição neste país que precisa ser reformado de alto a baixo é o sector da Justiça que está doente desde a independência, com grandes e gravíssimas tromboses nos últimos anos.
“A justiça atravessa hoje, em Cabo Verde, momentos particularmente agitados que são a evidência de uma crise profunda, sem dúvida a mais grave desde a instauração da República”. Honra e glória ao bastonário da Ordem dos Advogados que, ainda que em fim de mandato, teve a coragem deste pronunciamento que certamente o imortalizará.
Tanto o desembargador Simão Santos como o procurador Vital Moeda tiveram a sorte de ter como arguido um homem que infelizmente não aprendeu que somos donos do que calamos e escravos do que dizemos. Assim, é preciso dizer que o AO está a ser vítima da sua própria verborreia. Tivesse ele desde o início ficado calado, e esse processo não chegaria a ter meia dúzia de páginas. Assim, tem, ao que se diz, mil e tantas páginas. Porém, uma montanha de nada, se houver coragem para lhe espremer a verdade. De todo o modo, confirma-se o ditado popular, o peixe morre pela boca.
A estória do AO faz lembrar o mito de Sísifo. Sísifo gostava de atirar pedras contras os deuses. Nunca acertou em nenhum, porém eles tiveram medo que um dia acertasse em algum, e então enviaram um deus polícia propositadamente para o capturar.
Amadeu Oliveira está, pois, condenado. Foi primeiro condenado pelo presidente da instituição a que pertencia enquanto deputado, a Assembleia Nacional, que achou do seu dever “contê-lo” nas acusações que vinha fazendo ao sistema judicial na pessoa de certos magistrados; depois pelo desembargador Simão Santos, que não hesitou em cometer um crime de prevaricação metendo-o e mantendo-o na cadeia; e agora pelo procurador Vital Moedas que, em última instância, pede a continuação da sua prisão porque, solto, há fortes probabilidades de ele continuar na prática dos mesmos crimes, a saber, “ofender os tribunais e seus juízes”.
E assim vai a nossa Justiça! Até quando, Catilinas, abusarão da nossa paciência?, perguntaria Cícero.
Na minha opinião, nem Deus tem já poder suficiente para impedir a condenação de Amadeu Oliveira. Em boa verdade, todos esses dias de espetáculo no tribunal foram perfeitamente inúteis, desde há muito que o Amadeu está condenado. E sequer ele pode aspirar a qualquer tipo de justiça em recurso, na realidade todos os juízes deste país são suspeitos de parcialidade relativamente a ele. Basta ver como até o tribunal constitucional guarda sem despachar um recurso que será impossível não lhe ser favorável, por maiores que sejam os jogos de cintura que sejam tentados.
Amadeu Oliveira foi crucificado para servir de exemplo a quem tenha pretensões de pensar pela sua própria cabeça. Mas esse processo ficará como uma mácula indelével que envergonhará para sempre os nele intervenientes, quer ativa quer passivamente, porque é um processo vingativo que apenas desonra a magistratura nacional porque violenta o sentido de justiça que existe dentro de cada um de nós.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 790, de 20 de Outubro de 2022