Aos 31 anos, Bárbara Varela é engenheira naval sénior e responsável pela área de reparação de Drill Pipe (tubos de perfuração para extracção do petróleo) na única empresa certificada para o efeito na Espanha. De férias em Cabo Verde, conta-nos como, em sete meses, alcançou um grau que normalmente levaria dois anos e como enfrenta a estranheza por ser uma mulher, negra e jovem, a ocupar um lugar que até há pouco tempo estava reservado aos homens de barba rija.
Filha de pai cabo-verdiano, da Assomada, e de mãe brasileira, de Minas Gerais, Bárbara Ferreira Varela nasceu em Portugal e veio para Cabo Verde aos três anos de idade. Apesar da sua tripla nacionalidade (portuguesa, brasileira e cabo-verdiana), afirma-se “cabo-verdiana de gema”, e acredita que o sangue crioulo foi determinante para chegar onde está hoje.
“Em qualquer lugar do Mundo, sinto-me cabo-verdiana. Acredito mesmo que cheguei onde estou por causa do nosso jeito cabo-verdiano. Crescemos juntamente com gentes de várias raças, povos diferentes, e tenho essa vantagem ao lidar com clientes de várias nacionalidades e classes sociais”, declarou a jovem de 31 anos, em entrevista ao A NAÇÃO.
Bárbara saiu de Cabo Verde aos 18 anos, para fazer o ensino superior em Las Palmas, Canárias, onde vive até então, pois, é nesse arquipélago espanhol que tem normalmente a sua base e de onde pode ser chamada, em caso de necessidade, para ir trabalhar noutro lugar. Após dois anos de um curso de arquitetura que não a cativou, saltou para a engenharia naval, dada a sua paixão por barcos e desportos náuticos.
“Hoje em dia não me revejo em nenhum outro curso ou profissão. Sou apaixonada pela minha carreira, trabalho horas e horas, mas isso é algo que eu gosto”, garante.
Sénior em sete meses
Actualmente trabalha na Hidramar, a única empresa certificada, na Espanha, pela NOV Grant Prideco, para fazer reparação naval de roscas de drill pipes, que são os tubos utilizados para fazer perfurações e extrair petróleo a partir de plataformas em alto mar. (A plataforma marítima que há poucos semanas passou por Mindelo e Praia, a caminho da Namíbia, é uma velha conhecida sua.)
A nossa entrevistada é responsável pela área de limpeza, inspecção e reparação naval de “drill pipes”, após ser promovida à categoria sénior em apenas sete meses, num processo que, geralmente, leva dois anos.
Na verdade, Bárbara chegou na empresa para um estágio prático, logo após a conclusão do seu curso. Foi enviada, primeiro, para a Alemanha, onde operou no Mar do Norte, na área de manutenção de turbinas de energias renováveis.
Na vida já passou por vários momentos emocionantes, como trabalhar em momentos de extrema tensão, em que um segundo de distração pode custar a vida do desatento, entre vários outros riscos e desafios.
Após tudo isso, precisou parar de trabalhar por um ano, para concluir o seu projecto final de curso, sendo contratada pela mesma empresa, no final do estágio, tendo em conta o seu desempenho.
“Uma coisa que me orgulha muito é que fiquei sete meses a trabalhar na categoria júnior e depois disso fui promovida a sénior, num processo que normalmente leva dois anos. Em pouco tempo, eu me tornei responsável por toda a área de drill pipes”, avança a jovem.
Bárbara opera, segundo diz, num sector e numa posição muito competitivos, mas sempre teve o apoio dos colegas de trabalho, muitos dos quais também estrangeiros, da América Latina e de África, como ela, operários mas também quadros superiores.
“Estamos sempre tentando puxar os nossos companheiros para a frente. E nisso tive muita ajuda, de gente mais idosa, com mais anos de trabalho. Todos ficaram muito felizes com a minha ascensão, pois, no lugar que agora ocupo, é difícil ver um preto ou africano. Sentiram-se representados, o meu sucesso foi, de certo modo, um sucesso deles também, e isso me enche de orgulho”, explica.
Mulher, negra e muito jovem
Para além de ser um mundo dominado por homens, outro aspecto que se ressalta na posição que Bárbara Varela ocupa é que normalmente é exercida por pessoas com mais experiência e carreira. Sendo jovem, mulher e negra, diz que no início sentiu grande estranheza nas pessoas, e nisso chegou a ser subestimada e hostilizada, chegou a ouvir que o seu lugar, por ser mulher, era na cozinha.
“Eu nunca tinha parado para pensar naquilo que representa a minha posição na empresa. Eu não tinha esse olhar. Só agora, em Cabo Verde, com a minha tia sempre a dizer que sou a única cabo-verdiana neste ramo, que eu passei a ter essa consciência. Entretanto, no início, sempre que ia para o barco sentia que as pessoas me estranhavam. Não estavam à espera de uma mulher do cargo de drill pipes, muito menos negra e tão jovem”, precisa.
Entretanto, garante, a estranheza deu lugar ao respeito, tendo em conta a sua forma de se posicionar e se impor no seu trabalho. “Os clientes, no mundo do dinheiro, querem mandar. Estão acostumados a isso. E eu, quando lido com eles, por telefone ou email, coloco cada um no respectivo lugar, no pressuposto de que do assunto eu entendo. E quando me conhecem pessoalmente estranham que eu seja a pessoa que falou com eles anteriormente”, reconhece, humorada.
Amparo na música cabo-verdiana
Segundo Bárbara Varela, uma das coisas que lhe deu forças para não desistir, quando os tempos e agressividade se mostravam difíceis, foi ouvir músicos cabo-verdianos, como Gil Semedo, Mayra Andrade e Élida Almeida.
“Quando diziam que meu lugar era na cozinha, eu ia para o meu quarto e chorava horrores. Depois colocava a música ‘Maria Júlia’, de Gil Semedo, e era como se ela aumentasse de novo a minha autoestima. Voltava ao trabalho com aquilo na cabeça, que ninguém tinha o poder de me colocar para baixo”, recorda.
Outro apoio inconsciente, também de um cabo-verdiano, foi, segundo diz, os vídeos de humor de Carlos Andrade, de nome artístico Artolash. “Eu colocava seus vídeos e ria até não poder mais. Somos um povo muito alegre, cabo-verdiano é um povo sabi”, descreve.
Mais em terra
Após se tornar responsável pela área de “drill pipes”, Bárbara Varela passou a estar mais tempo em terra do que nas plataformas “off shore”.
“Antes passava muitas horas, de barco, no Mar do Norte, mas hoje em dia sou mais dedicada ao controlo, então fico em terra”, afirma, sublinhando que se trata “de um mundo vasto e encantador”, do qual não se vê arredada.
A nova geração precisa ter foco, para além do Tik Tok
Bárbara Varela não romantiza o desafio que é estudar e seguir uma carreira, mormente fora de casa, de Cabo Verde. Diz que qualquer que seja o curso o processo não é fácil, mas que vale a pena, e que os jovens devem ter foco para conseguir os seus objectivos.
“Estudar não é fácil. Perde-se amizades, nem todos compreendem nossos momentos mais fechados, mas no final vale a pena. Os jovens precisam deixar um pouco de lado a vida de estarem toda a hora no Tik Tok”, brinca, revelando-se surpreendida com as prioridades de muitos jovens, nos dias de hoje.
“Eu não sei que assunto falar com a geração mais nova, parece-me que só querem falar de Tik Tok. Compreendo que, assim como havia Facebook no meu tempo, eles também estão perante outras novidades. Mas, para além disso, tínhamos um foco”, reforça a engenheira naval.
Outro aspecto que, segundo diz, foi determinante para o seu sucesso, foi manter uma base familiar forte, a quem recorrer e capaz de a acolher nos momentos mais difíceis.
Igualmente, criar e alimentar amizades consistentes e ter a capacidade de se blindar de influências externas que não contribuem para “o nosso crescimento individual”.
“Temos de nos divertir, mas também não podemos perder o foco. Precisamos blindar a nossa cabeça, ter uma base familiar, pois ela é muito importante para nos acolher nos momentos difíceis. Criar boas amizades”.
De volta a Cabo Verde, após dois anos de ausência, Bárbara Varela diz-se com as energias recarregadas para mais uma maratona de trabalho.
“Graças ao meu trabalho, conheço muitos lugares, lugares incríveis, bonitos, mas como Cabo Verde não há. Quando colocamos os pés aqui, sentimos que chegamos em casa”, diz, um dia antes de dar por fim as férias e regressar a Espanha, Canárias, de volta ao trabalho.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 811, de 16 de Março de 2023