Por: Redy Wilson Lima
Na última semana de janeiro, na cidade portuguesa do Porto, no âmbito da IV Conferência sobre o Ativismo em África, coordenei com o arquiteto Nuno Flores um painel de discussão sobre os processos urbanos em África e a emergência da construção de novas epistemologias da cidade.
As propostas urbanísticas desenvolvidas no âmbito da iniciativa Outros Bairros em Alto Bomba, em São Vicente, no programa de arte urbana do projeto Xalabas, em Achada Grande Frente e o desenvolvimento e implementação da ferramenta MAPAurbe, em Safende, estendido posteriormente, em parceria com Rede das Associações Comunitárias e Movimentos Sociais, a mais 15 bairros da cidade da Praia, foram o mote da discussão.
Estas experiências suscitaram uma profunda reflexão epistemológica sobre as cidades cabo-verdianas e sobre os discursos políticos com foco na transformação dos principais centros urbanos do arquipélago em cidades promotores-empreendedores, norteadas pela aplicação e gestão dos seus recursos estratégicos em projetos que garantam eficiência e sustentabilidade socioeconómica.
Assente numa visão urbanista neoliberal, o que se pressupõe com estes discursos é a transformação das partes centrais e emblemáticas da cidade, bem como as de potencialidade turística, numa grande montra urbanística futurista e faraónica no contexto da globalização.
A cidade da Praia, capital do país, bem como as cidades do Mindelo, em São Vicente, Santa Maria, no Sal e Sal Rei, na Boa Vista, surgem, assim, como importantes recursos nacionais estratégicos com vista a transformar o arquipélago num dos pólos de excelência do sistema urbano transnacional.
Não sendo nova a pretensão de tornar Cabo Verde numa plataforma de circulação de serviços, a retoma do discurso colonial do século XIX tem como objetivo buscar estabelecer novas relações emergentes de integração periférica no sistema capitalista que não são aparentemente nem ocidentais nem indígenas.
Os discursos políticos introduzidos na primeira metade dos anos de 2000 de se fazer da Praia um Japão ou Dubai de África ou uma espécie de Paris ou Lisboa, enquadram-se nessa lógica, em que se procura conceder à cidade uma nova dimensão atlântica que associa o relançamento da economia local e a melhoria da oferta e das condições de vida dos habitantes à constituição de uma cidade global de pequeno porte nos diferentes domínios de atividade. É de ressaltar que esta pretensão urbanística conquistou nos anos de 1990 o imaginário político africano, o que levou Jean-Fabien Steck a falar de síndrome de Dubai e Ben Wilson do sonho em construir no continente de uma espécie de Xangai africana.
A integração do empreendimento Cape Verde Integrate Resort & Casino no projeto Gamboa Frente Marítima veio reforçar este sonho e ao ser apresentado como uma condição essencial de dinamização económica e criação do emprego, com exceção do movimento Korrenti Ativizta, foi acriticamente abraçada pela sociedade civil em geral, uma vez que como salientou a arquiteta Andréia Moassab, representa para o imaginário social praiense uma grande oportunidade de se entrar no “primeiro mundo”.
Em cima da mesa estava a construção de um empreendimento de luxo de grande envergadura no ilhéu de Santa Maria que, para além da construção do hotel e do casino, previa a edificação de uma cidade cultural que se esperasse funcionar como centro de promoção de negócios e de eventos culturais. Contudo, quase 10 anos depois da apresentação do referido empreendimento urbano-turístico, orçamentado em cerca de 250 milhões de euros, como escreve o jornal A Nação, na edição n. 805, publicado no mês passado, “a incerteza à volta do megaprojeto turístico da Gamboa e ilhéu de Santa Maria, na cidade da Praia, adensa-se, cada vez mais”.
Face a esse impasse, a questão que se põe é: e se ao invés do Cape Verde Integrate Resort & Casino, se optasse pela construção do Marina Praia? O primeiro-Ministro, que ao que tudo indica, até estaria mais voltado para o projeto Marina Praia, embora não fizesse o suficiente para o defender, tem-se mostrado indignado com a não execução da obra e a sociedade civil (ou servil), outrora fervorosa defensora do projeto macaense, tem-se sentido traído.
A comunicação social, por sua vez, quiçá espelho de uma sociedade com défice de memória, na retoma do debate ignorou o fato de que em cima da mesa estiverem dois projetos opostos: de um lado, a Marina Praia, um empreendimento urbanístico e turístico inclusivo e amigo do ambiente e de outro, o da Macau Legend Development, um pseudo-espaço público elitista e excludente.
O projeto Marina Praia, promovido pelo mesmo investidor da Marina Mindelo, previa a construção de uma infraestrutura com capacidade de cerca de 300 iates e barcos de recreio, um parque infantil de grande dimensão com piscina de água salgada, uma área para concertos, um restaurante com capacidade para 180 pessoas, a restauração da ruína existente em Santa Maria (marco da história urbana da cidade) e 2 esplanadas, uma delas edificadas no topo do ilhéu.
Todo o conceito (mais os estudos de impacto financeiro e ambiental) foi desenvolvido entre os anos de 2012 e 2014 e a inauguração estava previsto para 2016, estipulado após a assinatura com o Governo de Cabo Verde do memorando de entendimento.
Não obstante a assinatura desse documento tinha como finalidade evitar posteriores negociações com quaisquer outros promotores ou investidores, num país de rabidância institucional, sem qualquer agenda política urbana própria, quiçá com ganhos particulares de alguns trocos dos milhões prometidos, não foi de se estranhar que tal tivesse sido rasgado, dando excelentes exemplos de lealdade empresarial a demais empresários que de forma legal pretendam investir nas ilhas.
No processo, a meu ver, em vez de efetivar um projeto que poderia consolidar o tão falado urbanismo de coesão social, optou-se por um urbanismo de propaganda desenvolvimentista enquadrado naquilo que Alain Bourdin denominou de urbanismo bling-bling.
O projeto Mariana Praia, por exemplo, tinha aberto a possibilidade de construir na outra parte do ilhéu uma pequena marina para barcos de pescas dos pescadores que tem na praia de Gamboa o seu sustento familiar e tinha como base uma filosofia empresarial assente num modelo de negócio voltado para a dinamização da economia da cidade, contrário da lógica económica extrativista neocolonial que se vê na maioria dos grandes investimentos turísticos nas ilhas do Sal e Boa Vista.
O que fica é que o lançamento nos anos de 2000 da primeira pedra para a construção do propagandeado Praia Towers, que marcaria o início da transformação da Praia, menina do Mar, numa espécie de Japão ou Dubai de África (parte do projeto Gamboa Frente Marítima), como lembra Andréia Moassab, por ser um projeto faustoso e fantasmagórico, economicamente inviável e de impacto económico e social duvidoso, a par de muitos outros empreendimentos projetados no arquipélago, nasceu com a morte anunciada.
Hoje, a tal da Gamboa Frente Marítima se resume a uma baía descaraterizada, em construção lenta (ou parada) e um laboratório de demonstração dos efeitos da gentrificação e turistificação da orla marítima. Por fim, o que há a dizer é que pensada como uma forma de potencializar obras estruturantes e impactantes que poderiam resolver o desequilíbrio urbanístico da cidade, a baía da Gamboa é o retrato mais fiel da desorganização e delinquência urbanística que tem caraterizado a paisagem urbana praiense.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 808, de 23 de Fevereiro de 2023