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Economia

Um ano da invasão da Rússia à Ucrânia: Cabo Verde com combustíveis e alimentos mais caros

Completou esta sexta-feira,24, um ano da invasão da Rússia à Ucránia. Além de vidas humanas, os impactos económicos e sociais dessa guerra são avassaladores, incluindo para Cabo Verde. Avelino Bonifácio, economista formado na Ucrânia, alerta para os “efeitos nefastos” desse conflito na economia cabo-verdiana, traduzida no aumento em flecha do preço dos combustíveis e alimentos. A factura maior, a do endividamento público, ainda está por vir.

Não é novidade que, passado um ano, a guerra na Europa, ditada pela invasão Russa à Ucrânia, está a causar fortes impactos económicos e sociais, em todo o mundo, efeitos esses próprios de uma economia global, que vivemos hoje em dia. A guerra que deveria ser resolvida no espaço de um fim de semana está a revelar-se bem mais longa do previsto por Moscovo e seus aliados.

Embora na opinião de Avelino Bonifácio, Cabo Verde não seja dos países que estão a sofrer “os piores” impactos, os efeitos do conflito na economia e na condição social dos cabo-verdianos não deixam de ser “muito fortes”. Especialmente tratando-se de um país que importa praticamente tudo do seu consumo.

“No caso de Cabo Verde, e falando da economia, os sectores que foram mais fortemente impactados são, por um lado, os que mais consomem os combustíveis, nomeadamente, a produção da energia elétrica e a dessalinização da água, e os transportes, bem como as actividades de uso intensivo desses mesmos bens e serviços, como são os casos da indústria de transformação e o turismo”, começa por observar Bonifácio, que foi também estudante de Economia em Kiev, Ucrânia.

Indústria alimentar fortemente penalizada

Por outro lado, aponta, igualmente, os “múltiplos” impactos na indústria alimentar, que usa os cereais e o óleo alimentar como matérias primas.

Quer devido à escassez e aumento de preço de aquisição, quer dos aumentos dos preços dos transportes, quer ainda e, indiretamente, devido à flutuação das taxas de câmbio. “O exemplo pode ser visto na variação do preço do barril do brent (petróleo bruto) que, depois de sofrer aumentos brutais de quase 50% ao longo de 2021 e o ano ter sido fechado a ser vendido por cerca de USD 77,3, subiu para cerca de USD 102 no dia seguinte à invasão à Ucrânia. No pico do preço, o brent chegou a ultrapassar a barreira dos USD 130 em abril. No final de 2022 o preço já havia recuado para cerca de USD 89,9”, exemplifica.

Preocupação com o endividamento público

Entretanto, o entrevistado do A NAÇÃO recorda que, em Cabo Verde, os subsídios concedidos pelo Governo “amorteceram” os impactos dos preços nos consumidores finais de bens e de serviços, que, como explica, “não tiveram que suportar os reais aumentos” e pagar os preços que teriam, de facto, que pagar.

Mas, a “prazo”, a factura será maior e virá a outros níveis. “Os contribuintes terão que arcar com esses custos, quer através do endividamento público, quer através do recuo de investimentos, tanto em infraestruturas públicas, quanto nas medidas de natureza social”, perspectiva.

Insegurança alimentar e aumento da pobreza

Fora isso, como diz também, “o impacto dessa guerra deve ser avaliado, antes de mais, pelo aumento significativo da percentagem da população cabo-verdiana em situação de insegurança alimentar severa (superior a 11%), bem como da taxa da população em risco de insegurança alimentar (superior a 33%), números bem superiores ao período que antecede à guerra”, analisa, alertando que o aumento da taxa da pobreza é “igualmente” um outro indicador a se ter em conta.

A estes factores acrescenta-se um outro “importante” indicador: o aumento da taxa de inflação. “Em 2021 situou-se em cerca de 1,86%, e que subiu para cerca de 8,5% em 2022”, atesta.

Todavia, este especialista, chama atenção que se se tiver em conta a inflação apenas nos bens alimentares, de primeira necessidade, onde a população com menor poder de compra emprega a maior fatia do seu rendimento, a inflação terá sido “de quase 20%”.

Ou seja, como contextualiza, o impacto dessas taxas de inflação na vida das pessoas é “particularmente gravoso”, quando se levar em conta que, excepto para alguns escalões salariais, “não tem havido reposição do poder de compra pela via de aumentos salariais”.

Este tem sido um dos pontos, inclusive, reivindicados pelos sindicatos em diferentes sectores. Posto isto, e conforme o cenário acima descrito, Avelino Bonifácio tem como “certo” que existe uma correlação directa entre a guerra na Europa e o aumento das taxas de pessoas que vivem em situação de insegurança alimentar severa (fome), de pessoas em risco de insegurança alimentar, bem como da pobreza.

“Não se pode, porém, debitar-se tudo à guerra na Ucrânia, lembrando que a situação socioeconómica de qualquer país (e Cabo Verde não é excepção) resulta da combinação de um conjunto de factores mais ou menos identificáveis e mesuráveis, incluindo opções de natureza política e económica”, salvaguarda.

Conjuntura com “pouca folga”

Factores esses que, como explica, vão desde o estado de desenvolvimento em que Cabo Verde se encontra e “os determinantes” desse desenvolvimento. “Dependência do turismo, da importação dos alimentos,
fraco aproveitamento dos recursos hídricos mobilizados e mobilizáveis (ex-barragens, furos, reservatórios, dessalinização, tratamentos de águas residuais,…), da dependência dos combustíveis fósseis,…), o nível de endividamento público, etc.”, enumera.

No fundo, são factores que determinam uma conjuntura econômica “com pouca folga” face às “dificuldades” que as consequências da guerra trouxeram. Instado, enquanto economista, que medidas deviam ser empreendidas para mitigar o impacto negativos dessa guerra, em Cabo Verde, Bonifácio é incisivo ao falar da contenção das despesas.

“A sabedoria popular nos ensina que, em tempos de crise, devemos abdicar dos gastos que, em razão da conjuntura, se possam considerar supérfluos. Porém, a estória da cigarra e da formiga nos ensina que devemos trabalhar e ter o senso da poupança, precavendo para períodos de vacas magras”.

Apoiar os mais fustigados e conter as despesas supérfluas

Assim sendo, defende que a prioridade deve ser “acudir” as camadas da população mais vulneráveis. “Como idosos sem qualquer tipo de pensão, ou beneficiários apenas da pensão social que, entretanto, sofreu forte erosão devido aos aumentos dos preços, desempregados e pessoas que sobrevivem de receitas diárias e incertas de actividades informais”.

Face actual conjuntura, adverte que “certos” investimentos “não essenciais deixam de ser prioritários”, deixando uma mensagem às autoridades. “O Estado continua a ter estruturas e a suportar encargos que não são, nem compatíveis com o país real, nem éticos perante os mais carenciados, na presente conjuntura”.

Tristeza e revolta

Formado em economia, em Kiev, Avelino Bonifácio tem acompanhado com “muita tristeza e alguma revolta”, a evolução da situação na Ucrânia. Especialmente, pela “perda de vidas humanas, sofrimento da
população e muita destruição” de um país que lhe acolheu durante seis anos da sua juventude.

“Na verdade, acompanhei nas últimas décadas e já com bastante estupefação a crispação das relações entre a Rússia e a Ucrânia, sendo de forma mais acentuada, desde a ‘Revolução Maidan’ de 2014, que levou à deposição de um presidente e de um governo pró-Rússia eleitos, seguida da anexação, por esta, da Província da Crimeia”.

Do seu ponto de vista, os russos e os ucranianos são todos povos de “matriz histórico-cultural”, incluindo linguística, e religiosa eslava, com séculos de convivência, embora, como esclarece, “nem sempre pacífica” e com profundas misturas, tanto de um lado como do outro.

“Dos meus conhecimentos dos anos de vivência em Kiev e Odessa, na década de 1980, mas com passagens por várias cidades e regiões, tanto ucranianas, como russas, esta situação era, de todo, inimaginável”, lamenta.

Condenando, de forma frontal e inequívoca, a invasão da Rússia à Ucrânia, Avelino Bonifácio defende que esta guerra “não pode escudar-se em justificações de qualquer natureza para invadir um país soberano e com pleno direito de fazer as suas próprias escolhas”.

Contudo, diz não ter dúvida que a Ucrânia está a acolher no seu território, e os ucranianos a “pagarem com o próprio sangue”, o preço de uma disputa “geoestratégica de que, os próprios, não passam de meros peões”. Como meros peões, esclarece, quer-se referir “apenas aos ucranianos”, não aos russos e explica porquê. “A verdadeira disputa é entre Rússia e o Ocidente, neste caso liderado pelo EUA, pelo domínio da geopolítica mundial, em que essa região tem um papel preponderante”, finaliza.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 808, de 23 de Fevereiro de 2023

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