Não é de hoje que o “negócio de bidões”, com roupas e outros produtos, enviados por emigrantes aos seus familiares em Cabo Verde, é uma forma de sustento e de driblar o desemprego por muitas famílias. Um “bom bidão” pode chegar aos 100 mil escudos. Mas, com a crise, esta quadra festiva está longe de se mostrar animador para quem vive da revenda de roupas em segunda mão e outros produtos importados por via dos bidões.
Essencialmente feminino, em tempos não muito remotos, o negócio de bidões era tido como lucrativo, mas que, com a pandemia do covid-19 e a queda do poder de compra dos cabo-verdianos, se tem revelado uma dor de cabeça para aqueles que antes tiravam (e continuam a tirar) o sustento desse negócio.
Bidões que chegam a custar 100 mil escudos
Para Sónia Gonçalves, uma das vendedeiras de roupa do mercado da Ponta Belém, na cidade da Praia, este ano está a revelar-se “de longe” como o “pior dos últimos tempos”. Qual expert no assunto, como refere, vivemos tempos atípicos, por culpa da pandemia, da guerra na Ucrânia e da queda substancial do poder de compra dos cabo-verdianos. E, consequentemente, como é óbvio, os clientes antes habituais privilegiam agora a aquisição dos produtos alimentícios em detrimento de consumos considerados supérfluos, como é o caso das roupas e sapatos.
“Sempre compro os meus bidões em Cabo Verde, mas são provenientes dos Estados Unidos”, afirma, com a mesma desenvoltura. “Prefiro os dos Estados Unidos porque sempre têm mais variedades, as roupas estão em melhor estado, têm cosméticos e normalmente consigo-os a preços bem mais atractivos”.
A entrevistada do A NAÇÃO explica, igualmente, que existe uma diferenciação clara nos bidões que se podem adquirir: os “de primeira”, com roupas novas, podem ser negociados entre os 70 mil e os 100 mil escudos, e os “de segunda” variam entre 30 e 45 mil escudos, sendo que estes apenas contêm roupas usadas.
Sónia diz que actualmente o lucro que tira desse negócio é insuficiente e revela que, em 2019 e 2020, por exemplo, por esta altura, já estava com “boas vendas”, mas que este ano ainda não conseguiu vender quase nada. A covid-19 que chegou a Cabo Verde em Fevereiro de 2020 é, sem dúvida, a grande culpada pela crise que se abateu duramente sobre o sector.
“Pensava comprar mais um bidão para este Natal e final de ano, mas acho que vou desistir. Estou com dois bidões há mais de um mês e até agora não vendi nem a metade. O poder de compra está muito fraco e as pessoas não querem gastar dinheiro com roupas, só pensam em gastos essenciais”, revela.
Uma outra “rabidante”, Maria Madalena Tavares, que tem a sua barraca na Achada Santo António, partilha das mesmas preocupações de Sónia e de outras mulheres que actuam neste ramo de negócios ouvidas pela A NAÇÃO. Como afirmam, do jeito que está a vida, neste momento, “o lucro obtido dos bidões já não compensa”.
Maria Tavares, diferentemente de Sónia, recebe os seus bidões da França, onde tem uma filha e é esta quem prepara os prepara e os envia, periodicamente, à mãe, em Cabo Verde, para revender e com isso levar a vida para frente pois, como afirma, emprego formal e seguro hoje em dia não é para todos.
“Normalmente os meus bidões são muito diversos, com roupas novas e usadas, utensílios de cozinha, produtos de higiene, sapatos, entre outras coisas”, diz-nos, ressaltando que os bidões que traz são avaliados em cerca de 500 euros (60 mil escudos).
Maria, uma “rabidante” com vários anos de experiência, afirma que as coisas estão a piorar, ano após ano, e o que antes vendia em dois a três meses leva agora quase oito, o que torna o negócio quase que insustentável. Este ano, como também revela, afigura-se como o “pior até agora”, lembrando que no ano passado, por esta altura, mesmo com a crise, já sentia um aumento na procura.
“O ano passado foi difícil, a conjuntura estava complicada, mesmo assim, consegui vender alguma coisa, mas este ano está péssimo. Vê-se que as pessoas não querem e nem vão gastar dinheiro com roupas, o que, obviamente, enfraquece o nosso negócio”, afirma.
Questionada sobre quando irá trazer um outro bidão, Maria Tavares responde categoricamente que, por agora, “nem penso nisso”. “Neste momento só desejo que o movimento aumente para que eu possa vender algumas das peças que tenho”, conclui pouco esperançada.
Vestuário, calçado…
Quem quiser ter uma ideia do lugar que essa actividade ocupa na cidade da Praia, principal mercado do país, é só circular aos domingos pela zona do Sucupira, havendo dias em que os vendedores ao longo das duas faixas da avenida Cidade de Lisboa se estendem até perto do Estado Maior das Forças Armadas. Vestuário e calçado são os principais produtos à venda. Mas há também cosméticos, utilidades para a casa, equipamentos tecnológicos, entre outros.
Os dados da Enapor
Em Novembro de 2022, o movimento total de mercadorias nos portos de Cabo Verde foi de 225 806 toneladas, menos 21,6% do que no período homólogo de 2021 e mais 18,61% do que no mês anterior.
Recuando mais no tempo, no 4º trimestre de 2021 a Enapor registou um movimento total de mercadorias de 633 588 toneladas, com maior parte dos movimentos a serem registados no Porto da Praia (Santiago), seguido do Porto Grande (São Vicente) e do Porto da Palmeira (Sal).
Nesse mesmo trimestre de 2021 o expoente máximo deu-se em Dezembro com 248 763 t de movimentos de mercadoria efectuada, após uma ligeira descida no mês de Novembro (190 371 t) em relação a Outubro (191 377 t) daquele ano.
Dos dados disponíveis no site da empresa concessionária geral dos portos de Cabo Verde, o 3º trimestre do corrente ano fechou com um total de 616 530 t de movimento total de mercadorias nos portos do país, mas tem uma variação negativa (-1,2%) em relação ao período homólogo de 2021.
No quadro das estatísticas da empresa verifica-se que o pique da evolução do movimento de mercadorias deu-se no mês de Agosto de 2022 com 250 677 t, mas desceu gradativamente e no final de Setembro registou-se 191 278 t de movimento de mercadorias nos portos de Cabo Verde.
Em Novembro de 2022, o movimento total de mercadorias nos portos de Cabo Verde foi de 225 806 toneladas, menos 21,6% do que no período homólogo de 2021 e mais 18,61% do que no mês anterior.
Contactamos a Enapor para termos números exactos da quantidade de bidões que dão entrada no país nesta quadra festiva, mas até ao fecho desta edição não obtivemos resposta.
Das cargas registadas é de supor que um número importante está na categoria das “pequenas encomendas”, rúbrica onde normalmente se situam os chamados bidões enviados para Cabo Verde com vestuário e outros produtos que são depois reencaminhados para o comércio informal.
Tiago Ribeiro (estagiário)
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 799, de 22 de Dezembro de 2022