Por: Arnaldo Delgado
Com o advento da emigração cabo-verdiana para a Holanda, nos meados dos anos 1950, a população de Cabo Verde conheceu uma mudança significativa na sua forma de interagir a nível social, representando tal facto o desabrochar de uma nova era para a maioria dos seus cidadãos e do próprio país que, certamente, se tornou num lugar mais aprazível para se viver.
Contributo da emigração para Holanda na melhoria de vida em Cabo Verde
Mais do que qualquer outra, essa emigração se destacou, sobretudo, por ter contribuído para que a vida em Cabo Verde e do seu povo, de um modo geral, conhecesse um novo paradigma.
À humilhante saga dos contratados para o Sul, nomeadamente, São Tomé e de Angola, como mão de obra escrava, bem como àquela não menos sofrida dos anônimos marinheiros da pesca da baleia que seguiram para a América do Norte, nos séculos 17 e 18, obrigados a enfrentarem os rigores dos mares glaciares do Ártico, seguiram-se-lhes uma alternativa bem distinta, que foi a emigração para a Europa, mais concretamente, para a Holanda.
Aqui o emigrante Cabo-verdiano começaria, finalmente, a desfrutar de melhores condições de vida tanto para si próprio como para os seus familiares, tornando-se num cidadão com direito a trabalho digno e justamente remunerado, conhecendo, enfim, o significado de uma vida cidadã, de facto, com direitos e deveres.
Ainda que fosse por esta única razão, acredito que esse pequeno núcleo de precursores cabo-verdianos (talvez uma quinzena, se tanto), que nos anos 1950 dera início a essa magnífica epopeia pelas terras da Rainha Juliana será ele também, eterno merecedor de todo o carinho e profundo respeito do povo de Cabo Verde, pela sua bravura e patriotismo.
Desse pequeno núcleo sobressai um nome, não só pela sua generosidade e honestidade, como também pela originalidade do empreendimento no qual decidiu investir.
Constantino Romão e o seu “Hotel Delta”
Refiro-me ao intrépido sanvicentino Constantino Romão Delgado que, naquela época, teve a brilhante iniciativa de abrir um pequeno hotel na então longínqua cidade portuária de Roterdão, pomposamente baptizado com o nome de “Hotel Delta”, quando, na realidade, se tratava de uma modesta hospedaria, o qual, pouco tempo depois, viria a se erigir num verdadeiro santuário dos Cabo-verdianos em Roterdão.
O “Delta”, alcunha gentilmente atribuída ao Constantino, albergava, assim, os recém-chegados de todas as ilhas do nosso Arquipélago. Muitos chegavam humildemente trajados, por vezes sem recursos financeiros suficientes que lhes permitissem assumir, na plenitude, as suas despesas com o alojamento e alimentação, isto porque, na sua esmagadora maioria, era gente de origem humilde que, para lá chegar, teve de recorrer a agiotas, ou então, penhorando os escassos bens que possuía, os quais se resumiam, muitas das vezes, numa humilde casinha ou num pedaço de terra de cultivo, que lhe assegurava algum desafogo financeiro para custear a acalentada viagem no trajecto Cabo Verde-Lisboa-Holanda, seu destino final.
Esse candidato a emigrante levava consigo, quiçá, dois inestimáveis recursos: no bolso, um pedaço de papel com o endereço do “Hotel Delta”, de Constantino de Nhô Matijim, na Jan Kruyfstraat, Nº 43, em Roterdão e, no peito, um coração fortemente blindado pela indesmentível coragem do cabo-verdiano, decidido a tudo enfrentar e vencer.
Apoio aos patrícios na obtenção de emprego
Uma vez instalados no Delta, era o Constantino quem diligenciava emprego junto das companhias marítimas holandesas para os seus patrícios que, de ser marinheiro, muitos nada ou pouco entendiam. Mesmo assim, lá estava o “Delta” a ministrar algumas aulas práticas de como encarar o ofício, num ritual, muitas das vezes, envolto naquele clima humorístico genuinamente mindelense, para o deleite da rapaziada. Era uma tarefa da qual ele se desincumbia com o propósito único de demonstrar solidariedade para com o seu povo, de que sempre se orgulhou pertencer.
Depois, o agora marinheiro, e já com trabalho garantido na companhia, seguia para longas viagens rumo às sete partidas do mundo: Persian Golf, Estados Unidos da América, Japão, Caraíbas, entre tantos outros destinos, para, só bem mais tarde, no seu regresso à Holanda, vir finalmente regularizar as suas contas com o “Delta”.
Nesta fase, já com os bolsos recheados de florins, o patrício, como todo o bom marinheiro que se preze, aproveitava para também desfrutar da vida. Não existia, de facto, cena mais bonita de se ver, do que a do humilde rocegador de ontem, mal trajado, sem um centavo no bolso e a do marinheiro de hoje, transformado num cidadão seguro de si, devidamente trajado com fato e gravata, com guildas na algibeira, rodeado de lindas mulheres, pagando rodadas nos bares de Roterdão.
Mas, é esse mesmo cidadão que também não deixava de assumir as suas responsabilidades para com os familiares em Cabo Verde, assegurando o regular envio das remessas financeiras, esse quinhão tão benéfico para a economia do país, quanto para a expressiva ascensão social que se registaria no seio das famílias, assegurando, desde logo, uma melhor educação formal dos filhos até ao nível universitário, assim como a aquisição de novas moradias, viaturas e tantos outros.
De toda a evidência, começava-se assim a desenhar uma nova realidade na vida do emigrante cabo-verdiano e do seu país, completamente distinta daquela emigração marginal e sofrida que a nossa gente conhecera anteriormente, nos diversos países e Continentes para os quais a natureza madrasta, com o seu cortejo de fome, miséria e seca, a empurrara.
Retrato fiel da fraternidade e solidariedade
A emigração Cabo-verdiana para a Holanda constituiu, assim, o retrato fiel da fraterna solidariedade que se desenvolveu, naturalmente, entre os já referidos elementos. Uma virtude que, muito embora tenha estado sempre presente no sentir profundo do emigrante Cabo-verdiano, em geral e em todas as latitudes por onde ele se aventurou, mas, acredito eu, de que essa nobreza de espírito faria escola, particularmente, entre esse pequeno mas distinto grupo de Roterdão que, de facto, soube valorizar essa virtude de forma tal, que chega a ser, simplesmente, comovente.
É disso exemplo paradigmático, a instituição da “norma” segundo a qual o patrício recém-chegado de Cabo Verde, que não estivesse devidamente trajado, teria de ser agraciado com indumentária a rigor porque, no dizer dos mesmos, “Cabo-verdiano na Holanda não podia andar mal vestido”. E a “malta” cotizava, voluntariamente, para esse propósito, como se fosse algo de perfeitamente natural.
Estima e respeito das autoridades holandesas
Mais. Naquela época, o digno comportamento social dessa emigração contribuiu imensamente para que ela ganhasse em estima e respeito, tanto por parte das Autoridades Holandesas, quanto pela própria população do país que, e em abono da verdade, sempre a acolheu de forma correcta.
Contudo, e como não podia deixar de ser, registaram-se também alguns episódios hilariantes que foram surgindo naquela fase inicial do relacionamento entre essas duas culturas distintas, devido ao desconhecimento, por parte da nossa gente, de algumas das regras elementares da boa convivência social holandesa, sendo exemplo ilustrativo dessa afirmação, o facto de alguns dos nossos patrícios terem eleito, como forma expedita de curar a sua ressaca, a de “subtrair”, para proveito próprio, as garrafas de leite que os empregados das lojas comerciais depositavam, de manhãzinha, na soleira da porta de casa dos seus clientes.
Era um procedimento normal para os holandeses, mas que os nossos patrícios desconheciam, em absoluto. Acontece que depois das noitadas passadas nos bares de Roterdão, ao regressar para o Hotel a rapaziada se deparava com essas garrafas “abandonadas” à entrada da casa das pessoas. Um cenário incomum que o Cabo-verdiano não estava habituado a ver. Assim, julgando tratar-se de algum “maná caído do céu”, a malta não pensava duas vezes. Se apropriava do seu “maná” e rumava para o Hotel Delta, onde o delito, não doloso, era ali consumido na maior descontra. Foi preciso pôr cobro a essa “sabura”, explicando aos nossos patrícios, como é que as coisas funcionavam nesse país.
O mais interessante em tudo isto ainda, é que esse pequeno núcleo de emigrantes, era constituído por pessoas cujo nível de formação escolar não ultrapassava a quarta classe do ensino básico, mas a verdade é que essa gente possuía uma fantástica capacidade organizativa e uma visão prática das coisas da vida e do mundo, que era algo impressionante.
Criação da Associação Cabo-verdiana de Roterdão
Por iniciativa própria, esse pessoal viria a criar uma espécie de Mutualidade para a qual todos cotizavam, afim de se entreajudarem, em caso de doença, por exemplo. Mais tarde, pôs-se de pé uma Associação recreativa e cultural denominada “Associação Cabo-verdiana de Roterdão”, a qual viria a estabelecer sólida cooperação com instituições holandesas de cariz social, que passariam a ajudar no financiamento das despesas de funcionamento da referida Associação e de muitas das suas actividades sociais e recreativas, nomeadamente as ligadas ao desporto, aos convívios e bailes, muitos dos quais abrilhantados pelo notável grupo musical Voz de Cabo Verde, constituído por Luís Morais, Morgadim, Frank Cavaquim, Toi de Bibia, Jon da Lomba, Chico Serra, tendo o Bana, como vocalista da banda.
Ainda na segunda metade dos anos sessenta do século passado, estabeleceu-se forte intercâmbio entre a referida Associação e o Grupo de estudantes cabo-verdianos residentes na Bélgica, mais precisamente na Cidade Universitária de Leuven, tanto no domínio desportivo quanto cultural e político.
Criação do jornal “Nôs Vida” e mobilização para luta na Guiné-Bissau
Mas mais. Essa Associação teve também a iniciativa de criar o seu próprio jornal denominado “Nôs Vida”, um boletim informativo que trazia notícias das nossas Ilhas e da sua diáspora, do mundo laboral holandês e dos Movimentos de libertação Nacional das ex-colónias portuguesas, nomeadamente as do PAIGC. Mobilizou-se, ali nessa Associação, gente que seguiu para a luta armada que ora se travava nas matas da Guiné-Bissau, transformando-se, desta feita, num porto seguro para os militantes do PAIGC que, por razões várias, passavam por Roterdão. Ela foi ainda o epicentro dos movimentos oposicionistas ao PAIGC, nomeadamente o Grupo dos Descontentes que, mais tarde, daria origem à UCID, hoje um partido político com assento parlamentar.
Tratou-se, como se depreende, de uma Associação Nacionalista, desde sempre. Sem mais. Para o orgulho e valoração dessa Comunidade.
Legado de simpatia, respeito e seriedade
Diria que essa Emigração deixou um legado de enorme simpatia, respeito e seriedade, inquestionavelmente apreciado pelas Autoridades Holandesas, tendo representado, outrossim, com o advento da Independência Nacional, investimento político útil no relacionamento formal que o Estado de Cabo Verde viria a estabelecer com o Reino da Holanda.
Apesar da enorme diferença de idade existente entre mim e esse selecto grupo de precursores, na medida em que, naquela época, era eu um jovem estudante liceal e eles, gente adulta, muitos dos quais chefes de família, devo dizer, que foi uma grande honra e enorme privilégio ter conhecido e convivido, de perto, com essa gente extraordinária, pela sua valentia, pela sua sabedoria , seu exemplo e pelo seu infinito amor por Cabo Verde, este chão sagrado que Deus nos deu e para o qual temos o dever, não menos sagrado, de defender e fazer prosperar, de geração em geração.
De entre esses valorosos emigrantes destaco o cidadão Constantino Delgado, meu pai, homem ainda robusto e rebelde, apesar dos seus de 96 anos celebrados no passado mês de Outubro e a quem dedico, com imenso carinho, esta pequena crónica sobre a extraordinária epopeia que significou, para a nossa terra e sua gente, a emigração Cabo-verdiana para a Holanda.
Praia, 11 de Novembro de 2022
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 794, de 17 de Novembro de 2022