Por: Valdemiro Tolentino
1. Algumas conclusões e recomendações da Averiguação
No artigo anterior procuramos descrever a acção de averiguação do Serviço de Inspecção e Auditoria Autárquica e Inspecção Geral das Finanças.
Procuramos caracterizar essa actuação como algo fazendo parte do roteiro duma peça teatral que só não consideramos de cómica pelas implicações que derivam da sua conclusão e que nos conduzem a uma tragédia institucional, como veremos mais adiante.
A conclusão mais importante da averiguação foi a de que as deliberações da sessão da Câmara realizada a 2 de Janeiro de 2022 não têm efeito legal e apresenta as razões, invocando, nomeadamente, a violação do no. 1 do art.º 121º da Constituição da República e do art.º 9º do Regimento da CMSV.
De realçar ainda o entendimento da Averiguação de que “em relação às reuniões da Câmara durante o ano de 2022, a Câmara não realizou, efectivamente, nenhuma sessão, o que, à luz do art.º 134º do Estatuto dos Municípios, constitui uma ilegalidade grave, susceptível de gerar a dissolução deste órgão municipal nos termos da lei”.
Dando seguimento às suas “recomendações”, propõe a equipa de Averiguação: ponto 4.2 b) Que o Presidente da Câmara, ao abrigo do nº 3 do art.º 91º do Estatuto dos Municípios, conjugado com o n.º 3 do art. º 19 º do Decreto Legislativo n.º 15/97, de 10 de Novembro, com vista à reposição da normalidade no funcionamento da CMSV, convoque uma reunião extraordinária, com o claro objectivo de Declarar a nulidade das deliberações tomadas nas reuniões do dia 2 de Janeiro de 2022, em razão da inobservância do quórum deliberativo exigido no n.º 1 do art.º 121 º da CRCV.
2. GUST CONTRA GUST?
Face aquilo que se descreveu no artigo anterior, ficou claro que os inspectores não quiseram verificar a legalidade do comportamento de Augusto Neves, enquanto Presidente da Câmara, de não exercer adequadamente as por ele muito referidas competências próprias.
Não puseram a nu a sua prática de impor a sua vontade pessoal, fazendo de tudo para evitar que o órgão Câmara Municipal funcione como determinou a vontade dos eleitores mindelenses e determina a Constituição, o Estatuto dos Municípios e as demais leis da República, visto se tratar dum órgão colegial, que delibera por maioria efectiva dos seus membros.
Fizeram o exercício de dar uma no cravo e outra na ferradura, de procurar não desagradar a alguns, e do nosso ponto de vista, não fazer o seu papel de apontar claramente o que estava, no seu entender, errado do ponto de vista legal, mas com indicação de responsabilidades.
Assim, reconheceram a irregularidade da reunião de 2 de Janeiro de 2022 por deliberação não conforme com o que a lei determina.
Mas, isto feito, para “equilibrar” a sua posição, também apontaram a nulidade das deliberações da reunião convocada pelo vereador Anilton Andrade, invocando a ausência do Presidente, mesmo sabendo que o Presidente e três vereadores apresentaram-se e abandonaram a reunião, mal começou.
Os inspectores resolveram ignorar a determinação, diríamos mesmo obstinação, de Augusto Neves de que as coisas, na Camara Municipal, só podem ser dum modo, o seu.
Pedir a Augusto Neves a convocatória duma sessão camarária para anular aquilo que ele tão arduamente procurou ter, com a adoção dum plano pormenorizado e executado em todos os seus detalhes, é pedir demais ao actual Presidente da Câmara de São Vicente.
Isto é pôr Gust contra Gust e isso é um acto contranatura como se pode facilmente deduzir.
Mas não podemos esquecer que o que está em discussão é a deliberação dum órgão colectivo adoptada por uma minoria desse órgão com exclusão assumida da sua maioria.
Bastaria a esse órgão Câmara Municipal reunir-se normalmente, com a totalidade dos seus membros, e a sua maioria deliberar a anulação da deliberação.
Coisa que a maioria dos vereadores da UCID e PAICV tentou fazer, quer nas reuniões convocadas pelo presidente da Câmara durante 2022, quer na reunião de 19 de Abril que a equipa de inspectores considerou nula, tentativas essas que as manobras e artimanhas decididas de Augusto Neves conseguiu impedir.
Assim sendo, o que se pode esperar que se vai passar?
3. GUST IGUAL A GUST
Este exercício de equilibrismo em nada agradou a Augusto Neves, que, igual a si mesmo, e habituado como está de só fazer o que bem entende, não irá cumprir algo que não lhe compraze e muito menos quando, de algum modo, se sente “mandado”.
E ainda por cima por uns meros inspectores, pessoal superior da Administração Pública, sim, mas sem qualquer peso para “impressionar” Augusto Neves, apesar da assinatura de concordância aposta pela sra. Ministra da Coesão Territorial nas conclusões e recomendações do Relatório.
Todos temos de relembrar a sua famosa frase, proferida em sessão distante da Câmara Municipal de São Vicente, de que ele não é um Presidente qualquer, que só cumpre as leis que quiser.
O caminho do Tribunal é a via que Augusto Neves facilmente aponta aos que contestam as suas atitudes, ciente de que a via judicial para o comum do cidadão é um caminho que, uma vez começado, não se sabe como e quando acaba. Ou seja, não é solução para quem deseja uma rápida resposta aos seus problemas com a Administração Pública, Câmara Municipal incluída.
E se a equipa dos inspectores entendeu por bem definir um prazo de dez dias para cumprimento, tal acabou por ser olimpicamente ignorado por Neves.
Ele chegou a convocar uma reunião ordinária da Câmara nesse período e não incluiu a recomendação de declarar a nulidade das deliberações da reunião de 2 de Janeiro para provar a sua posição deliberada de ignorar a recomendação dos inspectores.
Mas como Gust é igual a Gust, com a experiência adquirida no exercício do cargo de Presidente por mais de doze anos sempre se lembrou de contestar os fundamentos da recomendação, numa clara manobra para ganhar tempo e disfarçar a sua atitude de não acatar as indicações formuladas pela Averiguação.
E com isso devolveu o assunto ao Ministério da Coesão Territorial, tipo vamos ver o que agora vocês vão fazer.
E chegados a este ponto, somos obrigados a retomar a afirmação inicial de que estávamos perante uma peça teatral com roteiro bem definido pelo seu autor, Ministério da Coesão Territorial, vulgo Tutela.
4. QUE TUTELA TEMOS?
A tutela que temos, infelizmente, foi reduzida a uma mera formalidade institucional devido a uma deliberada deriva do entendimento do papel do Estado.
A função inspectiva do Estado passou a ser mero dispositivo legal que, infelizmente, vem sendo usado com fins partidários.
Vejamos este caso concreto. Perante a realidade conhecida da CMSV, desde o seu começo, a tutela não se dispôs a agir de modo próprio, mesmo perante as insistentes denúncias da sociedade civil e política.
Só o fez quando já não poderia escudar-se a tal, porque, como diz o ditado popular, demais faz mal, já se tornava escandaloso não o fazer.
Quando vem ao terreno, com postura de grande Autoridade, assume não só o que se lhe pediu, debruçar-se sobre a situação da Câmara Municipal, mas logo afirmou, que chamava a si olhar também sobre a acção da Assembleia Municipal.
Ao se debruçar sobre a Câmara Municipal, fá-lo, só e unicamente naquilo que poderia logicamente fazer, ou seja, a legalidade das suas deliberações, que neste caso, se resumem a duas:
1.Uma deliberação de 2 de Janeiro de 2022 que a AVERIGUAÇÃO considera como ilegal por contrariar a Constituição da República e o Regimento da Câmara Municipal e que, por isso, considera nula.
2.Outra deliberação de 19 de Abril de 2022 que a AVERIGUAÇÃO considera como ilegal por contrariar o Estatuto dos Municípios, mas que tem como conteúdo a anulação das deliberações de 2 de Janeiro, o que coincide com a posição da AVERIGUAÇÃO.
(continua)
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 794, de 17 de Novembro de 2022