Por: Olímpio Tavares
O novo programa de filosofia para o 10º e 11º anos apresenta várias incongruências. O intento desta reflexão é mostrar como o programa está mal concebido de começo ao fim, tomando como exemplo alguns tópicos do mesmo.
Começo esta reflexão com algumas considerações gerais, e, de seguida, apresento tópicos do programa que considero incongruentes com o trabalho filosófico atual.
O novo programa de filosofia, em geral, tem pouco de novo. O que se pode constatar é a retirada de uma parte histórica, mas permanece ainda algum pendor histórico no novo programa, pelo menos na forma como alguns tópicos são descritos (Ex: “o fundamentalismo religioso, origem histórica” (…); “a morna: origem”; “origem do Estado”).
Conceção de filosofia
Outro aspeto que salta à vista no novo programa é a conceção subjacente de filosofia que os autores do programa apresentam. Essa conceção é, por um lado, histórica, como já disse, e, por outro, há uma mistura entre filosofia e as outras ciências sociais e humanas. É uma conceção que vigorou em Portugal, por exemplo, durante muito tempo, mas que foi mudado radicalmente a partir dos anos 90 do século passado, ou seja, sensivelmente há 30 anos.
O programa ora apresentado tem dois problemas graves, a meu ver.
Primeiro, os conteúdos são descritivos, sem pôr a tónica nas questões filosoficamente relevantes (Ex: “conhecer em linhas gerais as caraterísticas da ética aristotélica”; “distingue ética de moral”; “carateriza os regimes democráticos”).
Segundo, há uma omissão completa de lógica, que aparece disfarçada e de forma irrelevante no tema II, do 10ºano, onde se diz “função argumentativa- persuasão e refutação.
Entrando propriamente no programa para analisar, de forma breve, alguns tópicos, começaria por dizer que o programa prevê 23 aulas de 50 minutos cada só para ensinar ao aluno o que é a filosofia, com muitos tópicos irrelevantes (Ex: “filosofar espontâneo e sistemático”; “historicidade e universalidade”; “noção de problema e a sua importância para o filosofar”) que na prática não vai ajudar ao aluno compreender o essencial do trabalho filosófico.
Muitos tópicos do programa, para além de serem irrelevantes, misturam-se com outras áreas do saber, nomeadamente: sociologia, antropologia, ciência política, direito e história.
Tópicos irrelevantes
Vejamos alguns exemplos de tópicos irrelevantes do ponto de vista filosófico.
No tema II do 10º ano, unidade antropológica, encontramos tópicos como: o homem como “ser em construção”; “ser circunstancial”; “produto e produtor da cultura”.
Estes três tópicos têm algo em comum. Primeiro, são demasiado óbvios, o que nos leva a uma pseudodiscussão filosófica. Segundo, são assuntos que se abordam melhor em disciplinas empíricas como sociologia, antropologia e história.
Outro tópico irrelevante é a distinção entre a “ética e moral”.
A distinção entre a ética e moral, apesar de alguns filósofos ainda o fazerem, a verdade é que esta distinção é meramente etimológica, o que acrescenta muito pouco ao sentido em que as duas palavras são usadas atualmente. A maioria dos filósofos, pelo menos desde Kant, utilizam-nas de forma indistinta. Quando se diz, por exemplo, ética kantiana ou moral kantiana está-se a falar da mesma coisa.
Lógica sem capítulo próprio
A lógica não tem um capítulo próprio. Aparece como uma subunidade do capítulo unidade antropológica, com o nome de “função argumentativa-persuasão e refutação”. E nos objetivos da aprendizagem apenas se refere à compreensão da função desses conceitos e a distinção entre eles.
Isto, dito assim, para além de ser muito vago, não mostra a competência de lógica filosófica que um aluno deve dominar para ter uma discussão logicamente disciplinada.
Os outros tópicos dizem respeito aos conteúdos usurpados de outras áreas do saber. Vou citar alguns desses tópicos, mostrando a respetiva área a que pertencem. “Normas que regulam a vida social” (sociologia e direito), “origens do Estado e os seus elementos constituintes” (ciência política), “regimes democráticos – vantagens e desvantagens” (ciência política), “a arte: noção e géneros artísticos” (história da arte), “a criação e a obra de arte” (sociologia da arte), “artes em Cabo Verde: valor cultural” (antropologia cultural e sociologia da arte), “a morna: origem” (história da arte), “secularização: suas causas e seus efeitos na vida social” (sociologia da religião), “a paz mundial e o diálogo inter-religioso” (Sociologia da religião).
O novo programa de filosofia para o 10º e 11º anos deve ser implementado/operacionalizado, segundo os autores e o Ministério da Educação, a título experimental nestes dois anos, a fim de se verificar, no terreno, as incongruências, e, posteriormente, será elaborado uma versão mais consistente do ponto de vista filosófico e didático.
Uma autêntica salada russa
A verdade é que este programa não é um programa de filosofia. É um programa que mistura uma má história da filosofia com as outras ciências sociais. O resultado dessa mistura é uma autêntica salada russa. Então, quais são os possíveis caminhos?
O caminho é alinhar-se pelo que se faz de melhor filosoficamente nos países mais avançados, do qual Portugal, por exemplo, está alinhado há já algum tempo.
Precisamos de um programa onde se vê claramente as competências filosóficas que o aluno deve dominar, tanto para ter uma discussão filosófica sobre um problema filosófico como ser capaz de elaborar um ensaio com substância.
Necessidade de se começar a ensinar lógica
Para isso, é necessário começar a ensinar lógica, nomeadamente os argumentos dedutivos e os argumentos não dedutivos, conhecidos também como lógica formal e lógica informal.
No final do estudo da lógica o aluno terá de ser capaz de distinguir um bom argumento de um mau argumento; de descobrir as falhas que existem nos argumentos, por outras palavras, as falácias; saber aplicar o método de contraexemplos para verificar se uma premissa é verdadeira ou falsa, entre outras competências que o ensino de lógica acarreta.
Depois do ensino da lógica, os próximos temas podem ser organizados do mais prático para o menos prático. Por exemplo, conteúdos como ação humana, axiologia e ética, e política podiam ficar no 10º ano; conhecimento, ciência, religião e arte, podiam ficar para 11º ano. Esses conteúdos devem ser filosoficamente relevantes, e adaptados aos 2 tempos letivos que a filosofia tem neste momento.
Espero que o programa ora aprovado seja alterado de forma profunda nos próximos tempos, para fazer justiça ao que há de melhor em filosofia. Da minha parte, se for chamado, darei o meu contributo como professor de ensino secundário.
*Professor do Ensino Secundário
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 782, de 13 de Outubro de 2022