Estão literalmente presos à máquina. São três sessões de hemodiálise por semana com duração de quatro horas cada. A NAÇÃO conta o drama de quem depende da hemodiálise para sobreviver, em São Vicente. Com a rotina e hábitos comprometidos e a liberdade condicionada, os doentes renais crónicos revelam a angústia e o desejo de um transplante renal que conceda mais liberdade e diminua os condicionalismos impostos pela insuficiência renal.
Segundas, Quartas e Sextas são dias sagrados para Edna Gomes, doente renal crónico de 32 anos. São nestes dias que se submete ao tratamento de hemodiálise, no Centro de Diálise do Hospital Baptista de Sousa, em São Vicente. Tem sido assim desde o ano passado quando iniciou o tratamento que substitui a atividade renal comprometida.
São quatro horas ligada à máquina que remove líquido e substâncias tóxicas do sangue, como se fosse um rim artificial.
Tratamento
Apesar de não ser um choque, a priori, saber que dependeria de uma máquina para sobreviver, Edna teve dificuldades de encarar o tratamento, mas se adaptou algum tempo depois. As marcas e cicatrizes deixadas por todo o processo de hemodiálise, apesar de abalar a autoestima no início, hoje reforçam a luta pela qualidade de vida, mesmo que limitada.
“Recebi o diagnóstico de insuficiência renal em 2020 durante a pandemia. Só em 2021 comecei a hemodiálise. Recebi o diagnóstico de forma normal até porque a doença no meu caso é hereditária. Fiz a cirurgia de fístula e desde então tenho feito o tratamento, apesar de não ter sido fácil no início”, revela Edna.
Longe da família e sonhos interrompidos
A insuficiência renal crónica e a hemodiálise mudaram, por completo, a vida da nossa entrevistada. Natural de Santo Antão, teve de deixar a ilha natal para morar em São Vicente. Para trás deixou o filho, a família e os sonhos interrompidos pela doença renal.
Separada a menos de uma hora de barco da família, nem sempre os consegue visitar, devido à rotina comprometida envolvendo as cansativas sessões de hemodiálise e as restrições alimentares.
Atrasos no subsídio do Governo
No meio de todas as limitações físicas e psicológicas, as dificuldades financeiras são também frequentes, principalmente para aqueles que estão longe de casa, com o Governo a atrasar, frequentemente, o subsídio atribuído aos doentes.
“Eu não consigo trabalhar porque passo a maior parte do meu tempo em hemodiálise ou indisposta. Dependemos do subsídio do Governo que nunca chega a tempo. Há sempre um mês de atraso o que condiciona a nossa estadia aqui e as nossas responsabilidades”, aponta Edna que lembra que o subsídio já chegou a atrasar em três meses, pelo que pede a regularidade nos pagamentos.
Diagnóstico aos 19 anos
Christianni Silva, 22 anos, é a paciente mais jovem do Centro de Diálise do Hospital Baptista de Sousa.
Iniciou a hemodiálise em 2019, aos 19 anos. As frequentes inflamações pelo corpo acenderam o sinal de alerta para a doença renal. Com a insuficiência renal confirmada e a atividade dos rins comprometida, “ligou-se à máquina” para sobreviver.
“A minha vida praticamente parou para dar lugar ao tratamento da insuficiência renal crónica. Por ser muito nova e cheia de sonhos, o diagnóstico não foi fácil. Fiquei deprimida, tive de parar de estudar e morar praticamente no hospital com frequentes internações, devido à rejeição do meu corpo ao cateter”, conta a jovem, natural do Mindelo.
Hoje, três anos depois do início da hemodiálise, Christianni consegue ter uma vida normal, não obstante as limitações.
Conseguiu terminar o 12o ano de escolaridade e sonha cursar direito, trabalhar para ajudar a mãe e ter um novo rim, numa tentativa frenética de voltar a viver com mais saúde e liberdade.
“Já vi muitas pessoas com insuficiência renal morrerem do nada. Aprendi a viver com esta hipótese da incerteza da morte, mas aprendi, acima de tudo, a viver e não deixar morrer os sonhos que alimentam minha vontade de estar viva”, desabafa.
Falta de medicamentos e exames laboratoriais
Companheiro de luta de Christianni e Edna, como chamam os colegas de hemodiálise, Emerson Lima, 37 anos, relata a falta constante de medicamentos e de exames laboratoriais não disponíveis no sistema público de saúde.
Este jovem natural de Santo Antão, em tratamento de hemodiálise desde 2016, cita, por exemplo, a rotura frequente de Calcitriol, Complexo B e outros medicamentos e denuncia a não realização pelo sistema público de saúde do exame de Paratormônio PTH, que regula os níveis de cálcio e fosfato no sangue.
“Há constantes rotura de medicamentos essenciais, mas também de exames laboratoriais. Por exemplo, o exame de paratormônio não é realizado no público, somente no privado e tem um custo de 12.500 escudos. Muitos ficam sem o exame porque não conseguem arcar com o custo”, denuncia.
A denúncia também diz respeito a um outro medicamento que não tem sido disponibilizado pelo público: a Eritropoietina, que segundo diz, custa vinte mil escudos.
“Quando eu estava na Praia, após as sessões de hemodiálise, tomávamos esta medicação que, entretanto, foi suspensa devido ao alto custo. Praticamente ninguém consegue arcar com um custo de vinte mil escudos para um remédio que é essencial no combate à anemia”, conclui.
Doentes pedem presença de um Assistente Social
Além do mais, o nosso entrevistado relata a falta de um assistente social no Centro de Diálise de São Vicente para acompanhar os doentes e identificar as reais necessidades porque, como diz, há pessoas a passar por sérias dificuldades.
Emerson Lima já passou pelo Centro de Diálise do Hospital Agostinho Neto, na Praia, e regressou para São Vicente onde mora com a família, em meio a dificuldades. Contudo, não se deixa abalar. É optimista e vive um dia de cada vez com esperança em dias melhores e na melhoria das condições de vida de quem depende da hemodiálise para sobreviver.
Doentes renais sonham com novo rim
Edna, Christianni, Emerson e todos os doentes renais em hemodiálise partilham um sonho: o de ter um novo rim que lhes liberte da máquina, atribui mais saúde, liberdade e independência.
É neste sentido que pedem a urgência na aprovação da legislação para o transplante de órgãos e a criação das condições físicas e materiais para o arranque do transplante de rim no país.
Christianni, com 22 anos, está esperançosa e acredita que vai em breve conseguir um novo rim em Cabo Verde. Já conversou com os familiares e, em caso de compatibilidade, acredita que alguém da sua família estaria disposto a doar.
A expectativa é também compartilhada por Edna Gomes que diz precisar de um novo rim para voltar a sonhar.
Por ter familiares com patologia de insuficiência renal hereditária, Edna não sabe se alguém da sua família estaria apto a fazer uma doação, mas continua a acreditar que o transplante será possível em Cabo Verde e que será uma das beneficiárias.
Medo de “falsas esperanças”
Diferente de Edna e de Christianni, Emerson Lima ainda não tocou no assunto com os familiares. Não só por se tratar de um tema sensível, mas também pelo facto do transplante renal ainda não ser realidade em Cabo Verde e prefere não alimentar falsas esperanças.
“Não cheguei a conversar com os meus familiares sobre a hipótese de fazerem doação de rim em caso de compatibilidade porque o transplante ainda não existe em Cabo Verde. Talvez se existisse este processo, alguém já teria mostrado a vontade de doar”, supõe.
Emerson tem medo da frustração, até porque, como diz, foram recentemente enganados pelo ministro da Saúde.
“Não converso sobre isso. Recentemente tivemos um alarme falso do ministro da Saúde que nos deu esperanças sobre o arranque do transplante, mas depois disse que ainda as condições não estavam reunidas para a transplantação”, justifica Emerson que acredita que boa parte dos doentes em hemodiálise, no momento, não vão ter a oportunidade de receber um novo rim.
No meio disto tudo, os doentes renais apelam a que se agilize todo o processo de transplante renal no país, a começar pela aprovação da proposta de lei de doação, colheita e transplante de órgãos gratuita, entregue ao Parlamento no início de 2022, ainda sem resposta.
Por dificuldades financeiras Maria Andrade pondera desistir da hemodiálise
Em hemodiálise desde Dezembro de 2021, Maria Andrade, de 54 anos, pondera abandonar as sessões de hemodiálise.
Natural de Santo Antão, esta doente renal diz estar a passar por “graves dificuldades” em São Vicente, onde está a residir devido à doença.
Desde que se mudou para a Ilha do Porto Grande para tratamento de hemodiálise, ainda não recebeu o subsídio atribuído aos doentes renais, apesar de já ter dado entrada do pedido “várias vezes”.
Desde então, conforme avançou ao A NAÇÃO, tem passado por dificuldades financeiras e não tem conseguido cobrir os custos de morar longe de casa.
Renda em atraso e sem água para beber
Com a renda da casa onde mora em atraso, as dificuldades financeiras têm-se acentuado ainda mais e atrapalhado o tratamento de Maria.
A nossa entrevistada diz passar até sede por não ter dinheiro para comprar água engarrafada, já que está impedida de beber água corrente devido à patologia renal.
“Estou a passar por muitas dificuldades aqui em São Vicente. Quero ir para a minha casa. Prefiro ficar sem hemodiálise do que passar por estas dificuldades que passo no momento. Nem dinheiro do autocarro tenho para ir ao tratamento. Passo até sede para terem noção do quão grave é minha situação”, expõe Maria que pede a quem de direito que resolva o seu problema e lhe atribui aquilo que tem direito, o subsídio mensal.
Ministério da Saúde aguarda legislação
Da parte do Ministério da Saúde, só se sabe que se está à espera da aprovação da legislação e do apoio técnico de Portugal para arrancar com os implantes de rins no país.
Recentemente, o ministro Arlindo do Rosário confirmou que já estava tudo a postos para o arranque de transplantes renais, mas depois desmentiu a informação.
Para esta reportagem contactámos o Ministério da Saúde, inclusive o ministro Arlindo do Rosário, para saber em que pés anda o processo de arranque de transplante renal no país, bem como saber os custos dos dois centros de hemodiálise para os bolsos do Estado, mas não chegaram respostas.
A NAÇÃO também procurou ouvir os responsáveis do sector de diálise do Hospital Baptista de Sousa, também, sem resultados, apesar de as nossas questões terem sido encaminhadas em tempo útil para esta reportagem.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 789, de 13 de Outubro de 2022