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Santiago

Stivi Andrade: O cego-telefonista, eterno apaixonado pela rádio

Stivi Andrade, ou simplesmente Stivi, é um filho da Achada Grande Frente, na cidade da Praia, que, aos 53 anos, nunca deu o braço a torcer diante da sua incapacidade de ver o mundo “com os olhos de ver”. Telefonista do Ministério da Justiça há quase 30 anos e locutor da Rádio Comercial há 25, Stivi diz-se profissionalmente realizado e é um orgulho para a família «bengala branca» no país.

Stivi Andrade, como é carinhosamente conhecido dentro e fora da sua comunidade, na Achada Grande Frente, é deficiente visual de nascença, cego, como prefere ser classificado diante da sua condição física, por não gostar da forma politicamente correcta que se encontrou para indivíduos como ele.

Conforme contou ao A NAÇÃO, ainda na infância, na década de 1970, descobriu a sua grande paixão, o fascínio pela rádio. Mais tarde, nos anos 90, foi correspondente da Rádio Nova na Praia e, a partir de 1997, passou para a Rádio Comercial, como locutor muito acarinhado pelos ouvintes, público-alvo e cativo do seu programa “Secção da Música”, aos sábados e domingos, que permanece no ar até hoje.

“Stivi” de Stevie Wonder

Ainda na vertente cultural, desta vez fora da rádio, Stivi Andrade é também conhecido pelas participações em várias edições do “Todo Mundo Canta”, célebre concurso de vozes nos anos 1980, que chegava a encher a arena do Parque 5 de Julho, com milhares de pessoas de todos os bairros da Praia. Aliás, foi dali, naquele ambiente de acesa disputa musical, que nasceu o seu nome artístico.

“O nome artístico que originou o meu nome veio do grande cantor e compositor internacional Stevie Wonder, também cego, como eu. Foi um amigo na altura que me apelidou de Stivi, por saber da minha admiração por Stevie Wonder. A partir dali todos passaram a chamar-me assim. Hoje em dia, poucos sabem que o meu verdadeiro nome é António”, revelou, mais concretamente, “António Carlos de Andrade”.

Homem das paródias

Apesar da sua deficiência, o nosso entrevistado diz que sempre foi um homem de “paródias e noitadas”, na cidade da Praia e nunca teve problemas em circular qualquer que fosse a hora, de dia ou de noite. “Era, é claro, uma Praia diferente da que temos hoje, com assaltos e outras formas de violência”.

Na altura, prossegue, “eu tinha actuações frequentes em determinados espaços, entre os quais, O Poeta, na Achada Santo António. Eram espaços frequentados mais por amizade do que pelo dinheiro que se ganhava, pois a minha actuação não envolvia muito dinheiro…”

E foi também assim, durante essas actuações que acabava por cantar e encantar o público que ia encontrando, com os temas de grandes artistas que admirava. Numa dessas “paródias” acabou por encontrar o trabalhado de telefonista no Ministério da Justiça, cargo que exerce até hoje. 

“Num sábado, durante uma tocatina no Poeta, em conversa com o então ministro Simão Monteiro, ele decidiu interceder por mim oferecendo aquela que viria a ser a minha primeira oportunidade de emprego, o cargo de telefonista no Ministério da Justiça, que até hoje paga as minhas contas. É por isso que eu digo ‘paródia não significa só coisas más’; como tudo na vida, há sempre também coisas boas, positivas”. 

Orgulho de ser telefonista

Stivi diz ter um redobrado orgulho dos seus dois empregos, tanto o “part time” na Rádio Comercial, como o no Ministério da Justiça.

“Quer num quer noutro sempre contei com apoio dos colegas, da mesma forma que eu os apoio quando precisam de mim. Temos uma relação harmoniosa, de regozijar”, diz, realçando que as duas grandes ocupações da sua vida se completam de uma forma que considera interessante.

“Ser telefonista contribui muito para o meu programa na rádio. Durante a semana, de segunda a sexta, consigo fazer contactos com os artistas para o meu programa aos sábados, com reposições aos domingos. Assim posso dizer que o meu dia-a-dia é comunicar quer na rádio, quer como telefonista, duas áreas que combinam muito bem”, explica.

Realizado profissionalmente

Assim, o nosso entrevistado diz estar realizado profissionalmente, realçando que não é o seu caso estar num emprego só pelo sustento financeiro.

“Para mim, a força de vontade e querer fazer é muito importante, conciliando com a resposta muito positiva do público. Muitas pessoas partem à procura do primeiro emprego pensando no que lhes garante o sustento, e com razão. Mas a maior satisfação é estar em uma área que realmente gostamos e que fazemos com maior satisfação e orgulho”, explica,  sublinhando que a sua incapacidade visual não atrapalha em nada nas funções que desempenha.

Enaltecer a música tradicional

A nível de rádio, o nosso entrevistado diz que o seu contributo é fazer os ouvintes estarem em contacto com a música tradicional cabo-verdiana, além de temas internacionais de qualidade, através do programa “Secção da Música”, na Rádio Comercial.

O programa traz para a antena artistas nacionais que, apesar de boas músicas, permanecem no anonimato. O programa serve também para relembrar os grandes nomes já falecidos ou esquecidos, casos de Orlando Pantera, Ildo Lobo, Bana, Cesária Évora, entre outros.

Dj’s “fora da rádio”

“Na altura, o que havia nas rádios existentes era onda de DJs em que eu sou 100% contra. O meu argumento é que os Dj’s são para boates e não para a rádio. A rádio é para jornalistas, animadores, locutores e técnicos. Ter Dj’s na antena é uma moda que infelizmente está longe de acabar. Esta é minha opinião, mas ressalvo que não sou contra os DJs em si, mas sim contra a substituição de técnicos, jornalistas, animadores da rádio por Dj’s”.

Instado a pronunciar-se sobre as novas produções musicais, sobretudo as dos jovens, o nosso entrevistado diz que no global está satisfeito, mas que nisso prefere destacar a aposta das mulheres nas músicas tradicionais. “Acho que hoje em dia, pelas músicas que têm surgido, as mulheres estão a apostar mais do que os homens no género tradicional, é algo muito positivo que precisa ser destacado e valorizado, e sempre que posso é o que faço nos meus programas”, considera. 

Rádio, paixão por toda a vida

De uma forma geral, Stivi Andrade diz que encara o seu programa de rádio, a sua paixão pela área, como uma missão, mas também um dever para com a música e a cultura de Cabo Verde que espera poder cumprir até os últimos dias da sua vida. “Enquanto estiver vivo, vou fazer este programa e com orgulho”, finaliza.

 

“Prefiro ser chamado de cego em vez de deficiente visual”

“Não gosto da expressão deficiente visual ou invisual, prefiro ser chamado de cego, pela minha condição”, diz Stivi Andrade, explicando porquê:

“Entendo que as coisas devem ser chamadas como elas são. Cego é cego, e não há nenhum mal nisso. A pessoa é cega ou porque nasceu assim ou porque perdeu a visão em diferentes circunstâncias. Pessoalmente considero ‘cego’ uma palavra muito bonita, não a troco por invisual ou outro nome que decidirem chamar a um cego”.

Aliás, é como cego que Stivi Andrade chama a atenção para as dificuldades que se colocam a pessoas como ele, nomeadamente, no capítulo da mobilidade. “Quando circulo em zonas menos conhecidas, por falta de sinais, preciso de apoio, aliás, a ajuda, para um cego, é algo que nunca é de mais”.

“Normalmente, circulo pela Achada Grande Frente, Achada Santo António, Platô, lugares que tenho menos dificuldades. Costumo dizer aos meus amigos que o pior caminho que existe para os cegos são os passeios da cidade da Praia. Prefiro andar na berma da estrada do que nos passeios, onde tenho de enfrentar vendedeiras, pessoas que param para conversar sem encostar num canto, entre outras insensibilidades com que nos vamos deparando no nosso dia-a-dia”, explica.

 

Dia Internacional de Bengala Branca

A propósito de mais um Dia Internacional de Bengala Branca, 15 de Outubro, Stivi Andrade deixa uma mensagem aos demais companheiros cegos: 

“Este dia é de extrema importância para nós os cegos e as actividades à volta desta efeméride realizadas pela ADEVIC são sempre de grandes reflexões para um Cabo Verde mais inclusivo e sociedade mais sensível para com as pessoas portadoras de deficientes, em particular os cegos”.

Pessoalmente, Stivi diz que nunca precisou usar a bengala branca, apesar de conhecer e reconhecer as suas técnicas. Isto porque, desde pequeno, aprendeu a desenrascar-se sozinho e não quis readaptar ao uso desse instrumento.

 No entanto, diz que sempre incentiva os seus colegas a usarem a bengala branca sobretudo na hora de ultrapassar as barreiras na cidade da Praia. “E porque eu não utilizo bandeira branca, há bem pouco tempo, soube de uma pessoa cega que estava a precisar de uma, na ilha do Fogo, e mandei-lhe a minha”.

Com isso, através do A NAÇÃO, Stivi Andrade deseja a todos os cegos, ou invisuais, um bom Dia Internacional de Bengala Branca.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 789, de 13 de Outubro de 2022

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