O Banco de Cabo Verde (BCV) nega-se a revelar o memorando de entendimento assinado recentemente com o Governo sobre os Direitos de Saque Especiais disponibilizados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), no valor de três milhões de contos, para mitigar os impactos negativos da crise da covid-19. Do Ministério das Finanças obtivemos a garantia que não há nada a esconder. Mas esta não é a opinião de alguns analistas, que acusam o BCV de estar a financiar de forma encapotada o Estado, o que é ilegal.
Para ajudar os países a enfrentar as dificuldades decorrentes da crise relacionada com a pandemia da covid-19, o Fundo Monetário Internacional (FMI) emitiu 650 mil milhões de dólares em Direitos de Saque Especiais (DSE).
Desse montante, coube a Cabo Verde cerca de três milhões de contos. O dinheiro chegou ao país via Banco de Cabo Verde, enquanto Banco Central, o que por si deveria constar no balanço dessa entidade.
No entender dos críticos, esse procedimento afecta o papel do Banco Central na condução da política monetária, enquanto entidade que, por lei, gere o financiamento da economia e do Estado, no que se inclui o sector privado.
Além disso, o dinheiro não se destina apenas ao Estado de Cabo Verde, mas à toda economia do país, no que se inclui o sector privado, também ele a precisar de oxigénio para não morrer.
Por aquilo que A NAÇÃO pôde apurar, tudo devia passar pelo BCV, conforme o nº2 alínea a) do artigo 8º do Decreto-Lei nº 43/2004, que define a intervenção do BCV nas suas relações com o FMI. Este preceito diz explicitamente que cabe ao Banco Central adquirir os DSE, preceito este que não contempla qualquer atribuição do Estado nesse âmbito.
Contrariamente ao FMI, em relação aos outros credores preferenciais (Banco Mundial e BAD, por exemplo), o serviço da dívida é pago pelo Estado. Se o Estado não tiver dinheiro o problema será do Estado.
Mas, neste caso com o FMI, esta instituição impõe que seja o BCV, em nome do Estado, a assumir as responsabilidades financeiras relacionadas com a detenção dos DSE. Isto significa que ainda que o Estado não tenha dinheiro na conta o BCV é obrigado a assumir todas as responsabilidades financeiras advindas da realização de operações relacionadas com os DSE, o que viola a lei que interdita o financiamento do Estado através do Banco Central.
Financiamentos
Os financiamentos do FMI podem, eventualmente, servir para apoio orçamental, mas teriam de ser através de um programa específico, na lógica do Extended Credit Facility (ECF) no valor de 60 milhões de dólares a serem desembolsados em três anos, aprovado em Junho último pelo Conselho de Administração do FMI.
Neste caso, teriam que incluir compromissos de reformas estruturais que contribuem para a sustentabilidade macroeconómica do país no âmbito do quadro institucional existente, o regime cambial em vigor em Cabo Verde, que exige um mínimo de reservas adequado para garantir transações com exterior e, por isso, existe uma limitação do financiamento interno do défice do Estado, de 3% do PIB, fixado na lei de bases do orçamento. Estranhamente, o BCV se recusa a entregar aos deputados o memorando assinado com o Governo sobre os cerca de três milhões de contos disponibilizados pelo FMI no âmbito dos DSE. Uma situação que se repetiu com este jornal, o que, por sicria várias dúvidas em relação ao destino a dar aos três milhões de contos (ver caixa na página 6).
Carlos Burgo questiona “transparência” da transação
O economista Carlos Burgo, antigo ministro das finanças e ex-governador do Banco de Cabo Verde (BCV), questiona a transação feita com o dinheiro dos Direitos de Saque Especiais (DSE), através de um memorando de entendimento assinado entre o BCV e o Ministério das Finanças.
Burgo deixa claro, num post na sua página do Facebook, que, no quadro institucional existente, os financiamentos do FMI a Cabo Verde “sempre foram contabilizados no balanço do BCV, cabendo a essa instituição pagar o serviço da dívida (amortização do capital e juros)”.
“O reforço das reservas internacionais através desses financiamentos é um fator na gestão da política monetária, traduzindo-se no financiamento ao Estado e à economia (empresas públicas não financeiras e sector privado)”, elucida.
Financiamentos canalizados diretamente para o Tesouro
Este economista realça ainda que, ultimamente, esses financiamentos vêm sendo canalizados diretamente para o Tesouro. “Foi-se mesmo ao ponto de transferir para o Tesouro o produto da alocação extraordinária de Direitos de Saque Especiais (DSE)”.
E mais: “Pretendeu-se, inicialmente, que esses fluxos não geravam dívida pública. Entretanto, provavelmente, sob pressão da missão do FMI, lá acabaram por ser contabilizados como dívida externa do Estado”.
Burgo explica, igualmente, que “contrariamente” ao que acontece com as outras instituições financeiras internacionais que também têm o estatuto de “preferred creditor” (designadamente o Banco Mundial e o BAD), “o Banco Central comprometeu-se a fazer os pagamentos das prestações do serviço da dívida debitando a conta do Estado”.
“O mais grave é que o Banco Central obrigou-se a efectuar os pagamentos ainda que esteja esgotado o plafond de adiantamento ao Estado autorizado no âmbito da Lei Orgânica do BCV, o que constituiria uma manifesta ilegalidade”, enfatiza. Segundo este especialista, a interdição do financiamento ao Estado pelo BCV, clarificada na Lei Orgânica de 2002 na sequência da derrapagem financeira de 1999/2000, visa garantir a estabilidade monetária e cambial então posta em causa.
“O limitado adiantamento temporário permitido deve ser considerado um backstop, fundamentalmente, destinado à credibilização dos títulos de dívida pública, evitando que eventuais problemas de gestão operacional da tesouraria do Estado possam perturbar o seu reembolso na data de maturidade”.
Conforme a mesma fonte, resulta da transferência directa para o Tesouro dos recursos provenientes do FMI uma diminuição do papel do BCV na gestão monetária, privilegiando o Estado no acesso aos recursos em detrimento do sector privado.
“Ademais, essas operações atentam contra o quadro institucional de gestão das finanças públicas, pois permitem contornar o limite de endividamento interno fixado no Orçamento do Estado de acordo com a Lei de Bases do Orçamento”, alerta.
“Atentam ainda contra a transparência orçamental dado que se está a explorar o facto de o Orçamento do Estado não fixar o limite de endividamento externo. Amiúde, o endividamento externo é usado para o financiamento de pretensas operações financeiras, designadamente, a ‘recapitalização’ de empresas públicas (veja-se o caso da TACV), sem o escrutínio da Assembleia Nacional”.
O antigo governador do BCV diz ainda que, “por ironia”, o FMI impôs como critérios de desempenho do programa no âmbito da Facilidade de Crédito Alargado, que tem como um dos objectivos a melhoria da gestão monetária, o respeito do limite legal de 3% do PIB para o financiamento interno do défice, um tecto para as Outras Responsabilidades Líquidas, para as “operações financeiras”, e como uma meta estrutural a revisão da Lei Orgânica do Banco de Cabo Verde… para reforçar a autonomia, a responsabilidade e a transparência do banco central.
FMI impõe transparência no uso dos seus recursos
Já um outro economista, sob anonimato, realça que “a única coisa estranha” em relação aos DSE disponibilizados pelo FMI, para mitigar os impactos negativos da crise da covid-19, “é a não publicação e/ou divulgação” do memorando de entendimento que regula os moldes da transação entre o BCV e o MF.
Este analista entende que “é claro” que “as regras do FMI permitem um acordo on-lending (retrocessão) entre o BCV e o MF. Esclarece, no entanto, que as questões de contabilidade, quer do lado do BCV, quer do lado do MF “estão reguladas nos respectivos manuais do próprio fundo”.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 779, de 04 de Agosto de 2022