Por: Luís Kandjimbo**
Há autores africanos que propiciam leituras fecundas.O contexto das propostas pode ser relativo a dramas vividos no passado.No entanto, na ausência de vigilâncias e suspeitas reflexivas, são dramas que mantêm o potencial para ocorrerem no futuro. É por isso que continuo a ler a obra de Wole Soyinka, esse escritor nigeriano, hoje nos seus 87 anos de idade, cuja obra é o tópico desta conversa. Mas nunca tive a oportunidade de o encontrar pessoalmente. De resto, isso não é relevante. Entretanto, conheci dois dos seus contemporâneos já falecidos, nomeadamente, o ensaísta, filósofo da literatura e crítico literário nigeriano, F. Abiola Irele (1936-2017) e o linguista e filósofo beninense, Olabiyi J. Yai (1939-2020). Do ponto de vista linguístico-civilizacional, os três pertencem à comunidade Yoruba da África Ocidental. Com Abiola Irele e Olabiyi Yai travei conversas e mantive correspondência. Em diferentes ocasiões falámos de Soyinka, da sua dramaturgia, da ensaística e das posições controversas sobre a Negritude.
Por outro lado, pude imaginar as virtualidades performativas das peças de Soyinka, inspiradas nos rituais Yoruba, quando, na homenagem a Chinua Achebe (1930-2013) em Nsukka, assisti à exibição do musical «Óbà Kò Só», uma ópera do reputado dramaturgo nigeriano, Duro Ladipo (1926-1978).
Formação e carreira
Akinwande Oluwole Soyinka, ou simplesmente, Wole Soyinka, nasceu em 1934. De 1952 a 1954, após os estudos na Escola Pública de Ibadan, perto de Abeokuta, sua terra natal, frequentou o Centro Universitário de Ibadan. Em Inglaterra, obteve a Licenciatura em Literatura Inglesa pela Universidade de Leeds, onde iniciou a preparação do seu Mestrado. Durante dois anos, foi «playreader» [leitor e crítico de peças de teatro] do Royal Court Theatre, onde produziu duas peças de sua autoria, «The Lion and Jewel»[O Leão e a Jóia] e «The Swamp Dwellers»» [Os Habitantes de Pântanos]. Regressou à Nigéria em 1959 e desenvolveu pesquisas sobre as artes performativas nigerianas, viajando e proferindo conferências por todo o país. Com a peça «A Dance of the Forests»»[A Dança das Florestas], através da qual já formulava indagações acerca do destino do seu país, venceu o prémio alusivo à independência da Nigéria cuja exibição teve lugar exactamente em Outubro de 1960, no âmbito da celebração desse acontecimento histórico. Seguiu-se um período de intensa actividade e infortúnios.
Prisões, exílio e regresso
Até 1965, tinha publicado o romance «Os Intérpretes» e arrebatado o prémio do Festival da Commonwealth com a peça «The Road» [A Estrada], em Londres, além de ter sido vítima da primeira prisão arbirária. Nos dois anos seguintes, sofreu outra prisão, após a obtenção do prémio no I Festival de Artes e Culturas Negras de Dakar. Dias antes de ser preso, em 1967, ano em que publicou «Idanre and Other Poems»» [Idanre e Outros Poemas], tinha mantido um encontro secreto, na cidade de Enugu, com o líder secessionista do Biafra, o Tenente Coronel Odemegwu Ojukwu. Pretendia demovê-lo da decisão de desencadear a guerra, na sequência da violência étnica contra a comunidade Igbo.
Na prisão, escreveu «The Man Died»» [O Homem Morreu]. Em 1969, o novo governo militar decretou amnistia. Soyinka é restituído à liberdade. Retomou a chefia do Departamento de Artes Dramáticas na Universidade de Ibadan. No ano seguinte, produziu a sua peça de teatro «Madmen and Specialists» »[Loucos e Especialistas], que seria exibida no Eugene O’Neill Memorial Theatre Centre em Connecticut, nos Estados Unidos da América, com um grupo integrado por quinze nigerianos.
Em 1971, renunciou ao cargo que ocupava na Universidade de Ibadan e partiu para um exílio voluntário que durou quatro anos. Foi professsor visitante de Inglês na Universidade de Sheffield, sendo, ao mesmo tempo, bolseiro do Churchill College da Universidade de Cambridge. Regressou à Nigéria cinco anos depois. A guerra civil (1967-1970) tinha terminado. O regime militar de Yakubu Gowon tinha sido derrubado. O General Murtala Mohammed era o novo chefe de Estado.
Wole Soyinka passou a fazer parte do corpo docente da Universidade de Ifé, leccionando Literatura Comparada. Foi nomeado administrador do II Festival Internacional de Artes e Culturas Negras (FESTAC), realizado em 1977, na cidade de Lagos. Alargava o seu activismo político, quando se tornou militante do Partido da Redenção do Povo, em 1979.Tratava-se de um partido social-democrata de cuja liderança faziam parte proeminentes políticos progressistas do Norte e do Sul da Nigéria, contando ainda com membros da esquerda sindical e académica. A cisão interna registada no referido partido levou Soyinka a integrar a ala radical, afastando-se dos conservadores.
Significado do Prémio Nobel
Em 1986, quando os órgãos de comunicação social veicularam notícias sobre o primeiro Nobel de Literatura atribuído a um Africano, há bastante tempo circulava nos meios académicos e culturais a candidatura dos clássicos da chamada Literatura Negro-Africana de Língua Francesa. Um ano antes, o autor destas linhas tinha participado na assembleia geral da Associação para o Estudos das Literaturas Africanas, realizado em Paris. Nessa altura, parecia haver unânime solidariedade com a Associação Internacional de Literatura Comparada que já defendia a nomeação de Léopold Senghor (1906-2001) e Aimé Cèsaire (1913-2008).
Portanto, foi contra a corrente dominante que, em 1986, o Prémio Nobel de Literatura foi atribuído a Wole Soyinka, o «enfant terrible» da literatura nigeriana. Para todos os efeitos, as referências ao seu nome associavam-se a uma dramaturgia africana enraizada nas tradições culturais, a críticas contra a teoria da Negritude e contra o autoritarismo dos regimes políticos pretorianos.
O discurso de Wole Soyinka proferido por ocasião da recepção do prémio é uma apologia da dramaturgia e das artes performativas africanas, em geral. Ele considerava que o código teatral tinha uma forte vocação de perpetuidade. De tal modo que, em seu entender, a tematização dos problemas humanos vividos sob o regime do apartheid na África do Sul, constituía um imperativo que desafiava a definição da condição humana para a liquidação do racismo, a erradicação da desigualdade humana e o desmantelamento de todas as suas estruturas. Por isso, sustentava que o Prémio correspondia à entronização desse esforço que deveria culminar com o sufrágio universal e a paz.
Controvérsias da crítica
Apesar da abundante fortuna crítica sobre a obra de Soyinka, não há unanimidade relativamente à consistência do seu valor estético.Há estudos quantitativos que o inscreviam no topo da lista dos planos curriculares do ensino de Literaturas Africanas nas universidades dos países africanos de língua inglesa, à frente de Ngũgĩ wa Thiong’o e Chinua Achebe. Esta é a conclusão a que chegou Bernth Lindfors, um professor norte-americano de Literaturas Africanas de Língua Inglesa.
Por outro lado, Soyinka integra o grupo de escritores da sua geração literária, tais como John Pepper Clark (1935-2020), Christopher Okigbo (1932-1967) e outros, considerados «titans», no dizer de Biodun Jeyifo, que na década de 80 do século passado foram alvos de uma depreciativa avaliação por parte de três influentes críticos e professores nigerianos, Chinweizu, Onwuchekwa Jemie e Ihechukwu Madubuike, em livro consagrado à descolonização das literaturas africanas.
Kwame Anthony Appiah, um filósofo ganense, é outro crítico de Wole Soyinka, especialmente daquilo a que designa como «o mito da solidariedade metafísica de África». Voltarei aos comentários de Appiah, mais adiante.
A produção dramatúrgica de Wole Soyinka é constituida por mais de dez peças, um romance, vários livros de poesia e ensaios. Em todas elas perpassa o universo cultural Yoruba e a condição africana. Para o leitor que manifestar interesse em conhecer o seu pensamento, facilmente situará no horizonte o ritmo que ele imprime aos registos discursivos da criação literária.
A propósito do que pode ser referido como pensamento crítico, estético e moral, Biodun Jeyifo, o especialista da obra de Wole Soyinka, identifica três momentos distintos: a) Discurso universal e cosmopolita de crítica da Negritude, considerada como forma essencialista e racializada do nacionalismo cultural; b) Período da neo-negritude que consiste na revalorização da herança cultural e racial perante o confronto histórico com as heranças cristãs ocidentais e árabo-islâmicas; c) Fase da maturidade pós-negritude no contexto da exploração dos diferentes universos da criatividade ao nível global.
Leituras de Kwame Appiah
Uma das mais importantes temáticas da obra de Soyinka consiste na tríade: escritor, cultura e Estado, em África. Comprovam-no as suas colectâneas de ensaios, «Myth, Literature and the African World», 1976, [ Mito, Literatura e o Mundo Africano] e «Art, Dialogue and Outrage», 1988, [Arte, Diálogo e Indignação] e «Climate of Fear.The Quest for Destiny in a Dehumanized World», 2004 [Clima de Medo. A Busca do Destino num Mundo Desumanizado]. Uma boa parte dos dois primeiros foram escritos nas décadas de 60 e 70. No segundo livro, importa destacar o terceiro capítulo «The Writer in a Modern African State», [O Escritor no Estado Moderno em África].
Ora, num dos capítulos do livro organizado por Biodun Jeyifo, «Perspectives on Wole Soyinka. Freedom and Complexity», 2001, [Perspectivas sobre Wole Soyinka.Liberdade e Complexidade], Kwame Anthony Appiah aborda o pensamento de Soyinka, através da leitura de um dos dois livros mencionados, «Mito, Literatura e o Mundo Africano». Identifica aí uma tensão dialéctica entre o eu-como-todo e o eu-como-parte. Para Kwame Anthony Appiah trata-se de uma tematização dialéctica que emana do «mito da solidariedade metafísica de África». Soyinka é visto por Appiah como se fosse «um homem de letras europeu», que pugna por uma narrativa endógena africana tipicamente romântica. O problema suscitado por Appiah pode ser analisado em duas vertentes: a) Existência de uma visão africana do mundo em que se funda um consenso metafísico; b) Predominância de uma pluralidade de cosmologias, visões étnicas, não consensuais na perspectiva comunitarista.
Para Appiah, a visão africana do mundo é uma abstracção. No seu entender, a metafísica comunitarista pan-africana das literaturas africanas proposta por Soyinka é indefensável, na medida em que a sua obra dramatúrgica é dominada pelos recursos da cosmologia Yoruba, não podendo a essa experiência colectiva, de uma parte do continente, ser atribuido um estatuto imperial. Isto é, às narrativas, concepções metafisicas e míticas de diferentes comunidades africanas não deve ser reconhecida qualquer hegemonia.
O conjunto de problemas comuns em que se fundam as Literaturas Africanas e o consenso metafísico defendido por Soyinka, no dizer de Appiah, têm a sua base na situação histórica dos escritores Africanos e suas respectivas singularidades. Mas o seu último fundamento, acrescenta Appiah, é exógeno.Assenta na experiência do colonialismo, nas teorias raciais e preconceitos da Europa, nas línguas e na prática da escrita literária do texto.
Em última instância, os problemas que Kwame Anthony Appiah levanta inscrevem-se no domínio da justificação legitimadora do Estudos Literários Africanos, das Literaturas Africanas, enquanto objecto de uma disciplinarização académica. Este é um tópico que remete para desacordos já resolvidos com os debates sobre a definição do campo de investigação das Literaturas Africanas e da Filosofia Africana.
Como se vê, as questões suscitadas por Appiah exigem o alargamento do debate. Revela-se necessário convocar propostas filosóficas de outros autores, tais como Abiola Irele, Mary Stella C. Okolo, Mwayila Tshiyembe e Théophile Obenga.
*Texto publicado na edição do Jornal de Angola de dia 26 de Março, aqui republicado com autorização do autor.
**Ensaísta e professor universitário.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 761, de 31 de Março de 2022