Os lucros registados pelos bancos comerciais, em 2021, podem ser enganadores. É que os bancos são “obrigados” a contabilizar, nos seus balanços, os juros dos créditos em moratória, decretada na decorrência da pandemia da covid-19. Na verdade, só depois do fim de todas as moratórias, previsto para Setembro, é que as instituições financeiras saberão ao certo se vão reaver a totalidade de 20 milhões de contos em empréstimos concedidos, muitos deles, com o aval do Estado.
Com a publicação, na edição 774 deste Jornal da matéria sobre os lucros dos bancos em 2021, houve quem tivesse ficado admirado com o volume dos resultados líquidos das instituições financeiras que operam no país. Ou seja, com todas as dificuldades que as pessoas vêm passando, “os bancos andaram a lucrar”.
Contudo, um quadro do sector, que prefere não se identificar, disse ao A NAÇÃO que os bancos lucraram “hipoteticamente”, isto, por causa das moratórias e outros mecanismos financeiros que os deixam a esperar pela “prova dos nove”.
“Claro que há um ganho a registar”, reconhece o nosso interlocutor, lembrando, porém, que toda a economia em Cabo Verde, no período em referência, “ficou assente no crédito”.
Isto é, muitas prestações e muitos pagamentos realizados de salários, de contribuições, da Electra, foram com recurso ao crédito. “A banca também deu muito mais crédito nesse período. A banca deixou de receber e acrescentou mais à economia”, diz o nosso analista.
Muito desse crédito foi concedido com garantias do Estado e da Pró-Garante e, por outro lado, durante a pandemia, muitas empresas tiveram a necessidade de se endividar para poderem continuar a manter os postos de trabalho.
E, com isso, “ainda os bancos não sentiram, propriamente, o impacto da pandemia”, realça a nossa fonte, que considera que esse impacto só será sentido no dia em que terminarem todas as moratórias”. “Aí, sim”, adverte, “começaremos a ter complicações”.
Ou seja, na verdade, muitos créditos que estão em moratória terão que renegociar planos de pagamento, quando se sabe que ainda não há uma retoma efectiva da economia. “Há alguns negócios ligados ao turismo, nomeadamente, na ilha do Sal, que ainda não retomaram e há outras que não retomarão as suas actividades”.
Diante de um tal contexto, todo o quadro ligado às moratórias deixa, de certa forma, as instituições financeiras “fragilizadas”, não passando tudo o mais de projecções e conjecturas. “É só a partir de Setembro é que conheceremos a situação real do sistema financeiro”, conclui.
Lucros reais
Perguntado se se pode considerar que os lucros dos bancos, em 2021, são fictícios por causa da não entrada dos juros dos créditos em moratórias, o nosso interlocutor rejeita esta tese. “Esses lucros não são fictícios porque as pessoas estão em dívida. O facto de não pagarem não impede de os bancos de registarem esses juros como um ganho. Cobrar, ou não, já é outra estória”.
Ou seja, o crédito malparado será abatido no dia em que o banco não o poder cobrar. E, com isso também, “o resultado positivo de um ano pode ser abatido nos anos seguintes”. Contudo, no dizer do nosso interlocutor, os bancos têm estado a reforçar imparidades para acautelar situações futuras, dado que “só se regista a imparidade quando o crédito começar a entrar em incumprimento”.
Nos últimos dois anos, principalmente por causa da covid-19, vários créditos entraram em moratória e, estando nessa situação, mesmo não havendo pagamento, os bancos comerciais são “obrigados” a contabilizar os juros em relação a esses empréstimos. Além disso, os juros, que não vêm sendo pagos, são contabilizados “como resultados”.
Por causa disso, segundo uma outra fonte, igualmente ligada a uma instituição financeira, todos os bancos registaram um aumento considerável de resultados (lucros), porquanto o sotck de crédito, que era de um determinado nível, aumentou por causa da pandemia da covid-19 e “os juros vão se acumulando em resultados”.
Porém, com o fim da pandemia e, consequentemente, com o fim de todas as moratórias, previsto para Setembro, “haverá, certamente, muitas situações de incumprimento, que se consubstanciarão em prejuízos que a banca terá que assumir no seu balanço”.
Lucros “expressivos” causam estranheza
Por outro lado, um economista contactado pelo A NAÇÃO, considera que é “um bocado estranho” que, em 2021, um ano de crise, os bancos apresentem resultados líquidos “tão expressivos”. Os lucros que ultrapassaram 3,5 milhões de contos podem, no entanto, estar relacionados com o facto de o Governo ter criado várias linhas de crédito (linhas covid) durante o período da pandemia, para apoiar os créditos em que o Estado assume os juros.
Os bancos aproveitaram desse facto, porquanto são empréstimos com aval do Estado, que, em princípio, “não vão para o malparado” e que também “não implicam a necessidade da criação de qualquer tipo de provisão”. Ou seja, “foi à custa desse tipo de empréstimos que os bancos conseguiram alcançar esses resultados (lucros)”.
O valor das moratórias, conforme a nossa fonte, ascende 22 milhões de contos, o que “é muito”, porquanto constitui mais de 15% do PIB nacional.
Estaremos, com isso, a viver numa bolha financeira? O tempo haverá de responder.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 776, de 14 de Julho de 2022