Por: Rocca Vera-Cruz
Agora que se convencionou chamar outra coisa à fome, lembrei-me de uma senhora que conheci há uns anos, à porta de um barracão miserável, corpo marcado pela pobreza, cara corroída pelo acido sulfúrico da necessidade, olhar de quem já não pede, mas implora.
Passei por ela quando me preparava para o arranque do desfile de ‘enterro de mandinga’, estava ela se aguentando numa meia-porta que, noutros tempos, deve ter sido castanha, uma roupa preta, pano amarrado na cintura, ‘canhote de mon-ftxode’ que ia cuspindo sem vontade por uma boca sem dentes, diretamente para o chão de terra.
Nunca soube a idade da senhora, mas vim a saber depois que era mãe de 9 filhos, (5 machos e 4 fêmeas) que quase nunca a visitavam. Aliás, já nem se lembravam dela, quase todos comidos por pelo crack, base ou pedra, eles, ou pelo desespero de ‘um café barote’, elas.
Deitei um rápido olhar para dentre do quarto, vi um prego com um calendário de diaza, publicitando uma agência funerária que deve ter se esquecido de a ir buscar, muitos anos de atraso, de certeza. Vi também um alguidar azul com uma caneca de litro, no chão de terra uns farrapos onde ela dormia, uma flor de plástico cuja cor não consegui distinguir tão cheia de pó ela estava, e uma foto dela com um sorriso fingido. Já há três anos – quando a vi – não acreditava que durasse muito, mas acredito que na altura da foto, uns trinta anos antes, não fosse muito diferente. A sua velhice já é muito velha! Mas, é a tal coisa, quanto mais mal se passa, menos vontade temos de ir embora… Há muitos anos talvez ela ainda sorrisse. Não vi cozinha, também, para que serviria se nem condições para comprar um bife de caneca ela tinha? A senhora comia (quando comia), em cima de uma ‘motxinha’, o que lhe davam, vizinhos e amigos.
Volta a escarrar, um cuspe amarelo do ‘mon ftxode’ que quase atinge um gato faminto que ia passando, ele também à procura de restos, sem se importar minimamente com o barulho das pessoas que vão para o carnaval. Dá um lento passo em frente, atraída por uns jovens que cantam e nem notam a sua presença severa. Olho e pergunto-me para onde vai. Para encostada à parede, como que a dizer-me que não vai como nunca foi a lado algum. Mas olha para as pessoas que passam como que tentando se certificar que ainda continuava viva, depois de tantos e tantos anos de miséria que, traduzidos em vidas, dá seculos em cima de seculos de sofrimento. Nunca soube do que falava com os jovens, ela com aquele ar severo de chefe de secretaria na reforma, mas de certeza que não era de coisas alegres. Ainda cheguei a ouvir:
(Manera, nha tia, bocê ta ôraite?)
‘Remediod nhas fidj’, responde com aquela vozinha quase por completo comida pela ‘dublidade’, pelos gestos deve querer dizer que anda a tomar injeções que, no entanto, devem fazer menos efeito do que um qualquer pedaço de pão tomado fiado numa esquina de Ilhaus.
O ar que esta senhora respira não pode ser leve mas tem essa alegria e tristeza inocentes e espontâneas que lhe permitem tratar tudo levemente (ia escrever levianamente). Vida e morte, fome e cadeia, sessão e igreja, ‘tud é bada’ e ‘bá devagar’, os dois novos santos de Soncente. Novos santos que nos auxiliam na desgraça, na preguiça, no mascadjon e na malandragem e nos levam a não reclamar de nada, muito menos de coisas banais como o chefe que não nos atende porque foi tomar um cafezinho e nunca mais volta. A ela, no entanto, chega-lhe saber que tem nas mãos os 20 escudos que lhe deram há pouco e com os quais ela comprará um ‘calcin’ e uma bolacha que lhe permitirão adiar a morte até amanhã, sabendo que nunca irá conhecer a outra parte desta cidade, a parte que guarda mistérios, esconde segredos e é comandada por mil forças secretas, a parte que come arroz de marisco e arrota bacalhau e lagosta.
É por isso que, disfarçadamente, a senhora olha para a mão a certificar-se que a moeda ainda lá está, como se temesse não ter dinheiro para um grogue, tropeçar e cair diretamente dentro de uma cova.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 774, de 30 de Junho de 2022