Por: Arsénio Fermino de Pina*
Há uns bons anos, quando regressei a S. Vicente após a independência, escrevi um artigo sobre a ecologia e o saneamento sanitário e lembro-me de Leão Lopes, que nem conhecia, me ter felicitado por ter sido a primeira vez que um patrício escrevia sobre o assunto. Continuei a produzir artigos sobre a matéria pelo interesse que sempre me despertou o assunto. Foi também nessa altura que revisitando, no meu carro, as misérias sanitárias da cidade do Mindelo, na companhia do amigo e ministro da Saúde, Dr. Ireneu Gomes, o levei à lixeira monstra na Ribeira de Julião para o sensibilizar para a necessidade urgente do saneamento da cidade, onde encontrámos duas crianças revolvendo o lixo, assoprando alegremente preservativos como balões.
O saneamento veio a ser solucionado durante a administração de Nelson Atanásio que, sabendo da minha especialidade em Saúde Pública, me pediu apoio, tendo-lhe dito que, quando fui delegado de saúde em 1970, tinha feito uma proposta de saneamento base à Câmara Municipal (CM), que nada deu; sugeri-lhe que procurasse no caixote de antiguidades da CM , dado que ainda não tinha tido tempo para desencaixotar algumas das coisas trazidas de Lisboa, o que fez, encontrando a tal proposta, tendo tido a franqueza de declarar, publicamente, que essa proposta o tinha inspirado para equacionar e realizar o saneamento da cidade. Na minha opinião, Nelson Atanásio foi o melhor Presidente de CM, seguido de Onésimo Silveira, pela sua capacidade de escutar as pessoas e seguir as sugestões viáveis.
Expliquei o motivo da não execução da minha proposta de saneamento básico da cidade num artigo, muito mais tarde, depois de ter consultado o meu processo pidesco na Torre do Tombo em Lisboa. Como houve alguém da Rádio Barlavento que soube da minha proposta e quis entrevistar-me, para o que teve de contactar a Comissão de Censura, esta opôs-se à entrevista por considerar a minha proposta inconveniente, facto de que a CM tomou nota através do seu presidente, também patrício amigo. Pertenciam a essa Comissão pelo menos três patrícios amigos, além de mondrongos, que nada me disseram; com amigos desses, dispensam-se inimigos. Hoje volto à questão ecológica e de poluição do meio ambiente, embora já esteja um tanto céptico quanto à solução das causas do aquecimento global e poluição.
Não há dúvida de que são as acções do homem que vêm deteriorando o meio ambiente, tendo ele, o Homo sapiens, sido dos últimos animais a aparecerem na Terra, milhões de anos depois dos outros, que, alguns (as algas) até criaram condições para a sua existência e de outros seres vivos, ao produzirem oxigénio, que lançaram na atmosfera. Com a sua inteligência, o homem produziu algumas coisas boas, para si próprio, e muitas outras más que atingiram e prejudicavam os seres vivos e o meio ambiente.
O que vamos constatando é que as alterações climáticas e a crise ecológica não provocam subitamente um grande colapso geral, mas pequenas catástrofes sucessivas e graduais em crescendo que são uma dádiva para a lógica ultraliberal, para a chamada “destruição criadora”, de que já tinha referido num dos meus artigos ao falar da escritora e activista Naomi Klein, que designou esse processo como “capitalismo do desastre”.
O aquecimento global e o desastre ecológicos são o resultado da produção e do consumo próprios do capitalismo. Agora estamos a assistir à substituição do capitalismo dos combustíveis fósseis pelo capitalismo verde para diminuir as emissões de carbono (através das energias renováveis), quando, para obtermos os metais raros para as baterias, os painéis solares e os moinhos eléctricos, estamos provocando grandes danos ao meio ambiente e às populações desses locais de extracção desses materiais. Tudo isso é consequência do capitalismo que tem uma capacidade imensa de se metamorfosear, sendo o neoliberalismo uma dessas formas, triunfante em muitos países ricos, pai do populismo e da extrema direita que por aí campeiam.
Os países ricos, capitalistas e neoliberais, consomem produtos produzidos nos países pobres utilizando mão-de-obra barata, bastas vezes através das suas multinacionais aí instaladas nas terras mais produtivos para a agricultura (por exemplo a United Fruit, na América latina) e criação de gado, que exportam para os seus países, levando à emigração das populações autóctones, que deixam de ter terras de cultivo para os seus produtos tradicionais como milho, feijões, milhetes, painço, abóbora e outras culturas comestíveis, substituídas pelas de interesse para os ocupantes – soja, fruta, café, algodão, sisal, que são exportadas. Noutras paragens, que não a América latina e África, como na Indonésia, devastam florestas, substituídas por palmeiras produtoras de óleo de palma utilizado como combustível, destruindo a biodiversidade dessas florestas, sacrificando os orangotangos que aí encontravam o seu nicho ecológico. Também exportam para esses países pobres lixo de toda a espécie a troco de dinheiro que nem beneficia as populações, pelo contrário, prejudica-as gravemente, por esse dinheiro ficar nas mãos de governantes venais que as guardam em bancos e offshores do Ocidente. Em 10 anos, o continente africano aumentou a sua produção em ouro em cerca de 50% (informação colhida no último número de Jeune Afrique), tornando-se o primeiro produtor mundial (27% do mercado); a maior parte do ouro exportado, sobretudo para o Dubai, é de contrabando, o qual, na estimativa da Nações Unidas, é de 10 a 20 toneladas, no valor de 300 a 600 mil milhões de dólares. Em 2020, dos 57 mil milhões de dólares de ouro importado da África, 47% foram para os Emirados Árabes, que já rivalizam com os mercados tradicionais do ouro da Suíça e Londres.
Estranha-se que as populações emigrem para os países que as exploraram, quando, a melhor maneira de prevenir isso, seria ajudar essas populações nos seus países, restituindo-lhes as suas terras, não roubar as suas riquezas naturais, nem proteger os seus governantes cleptocráticos, ajudando-as a reconquistar a auto-suficiência e a progredir.
Há programas estabelecidos por acordos entre países para passarmos gradualmente dos combustíveis fósseis para as energias renováveis ou verdes, mas o seu cumprimento é tão lento que já desconfiamos, para não dizer já estamos cépticos, se vamos a tempo de evitar a catástrofe, ou, como diz a Bíblia, o apocalipse. E isso é assim por haver interesses económicos e financeiros tão grandes ligados às poderosas multinacionais que obstaculizam a adopção de maior rapidez na aplicação dessas medidas climáticas, mesmo sabendo que caminhamos para o desastre não adoptando medidas drásticas que combatam real e eficazmente o agravamento da crise.
A situação é tão grave que já nem se sabe que medidas tomar, tal a complicação do assunto para se reverter o que já foi desencadeado há muitos anos, se já não é tarde de mais, pois desde meados do século XX que havia avisos sobre o aquecimento climático por causa da libertação do dióxido de carbono e de outros gases nocivos à saúde, e ninguém quis ouvir esses avisos. Nos últimos anos deu-se uma aceleração enorme dos efeitos que já estavam em marcha. Segundo o cientista Andreas Malm, em Janeiro de 2016, a temperatura média era de 1,5 graus Celsius mais elevados do que durante o período que vai de 1951 a 1980.
Como dizia o sábio maliano Amadou Hampaté Bá, “não há pequenos fogos, mas sim falta de combustível”, e as poderosas multinacionais têm fornecido esse combustível. Cientistas de alto gabarito mostram que não há progressão linear, tudo se acelera. Claro que os países ricos sofrem menos com os efeitos do aquecimento global, mas já há países que estarão sofrendo duramente os efeitos das secas, inundações, ciclones, subida do nível da água do mar, cujas populações morrem de fome, afogadas nas inundações e a atravessar o Mediterrâneo, ou são obrigadas a emigrar para a Europa e EUA onde nem sempre são bem acolhidas.
Parede, Março de 2022
*Pediatra e sócio honorário da Adeco
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 760, de 24 de Março de 2022