Há várias pontas soltas e questões que precisam ser esclarecidas em relação ao contrato de concessão do serviço público aeroportuário estabelecido entre o Governo e a Vinci Airports. A começar, o valor da venda (80 milhões de euros) surge condicionado à consecução dos níveis de tráfego de 2019. Por outro lado, em tempos de crise, quem vende perde mais do que quem compra. Principalmente, quando o comprador é o mesmo a estudar para depois estipular o preço pelo qual quer comprar.
A forma repentina como se soube, através do Boletim Oficial, da atribuição da concessão do serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil ao grupo VINCI Airports SAS, gerou, mais uma vez, algumas dúvidas em relação à transparência na privatização dos activos do Estado.
Estudos deviam ser publicitados antecipadamente
A lei das privatizações contempla o ajuste directo como uma modalidade de privatização, mas manda que, nesses casos, os estudos devem ser antecipadamente publicitados nos jornais mais lidos do país.
Este preceito não foi respeitado no caso da TACV e, agora, volta a não ser respeitado no processo de concessão do serviço público aeroportuário.
Por outro lado, desconhece-se a comissão técnica de preparação e acompanhamento do processo, desde o início, nem a sua qualificação para “tão ingente” missão, face a um pretendente a concessionário com muita expertise e experiente em processos de negociação de concessão e aquisição de aeroportos em vários lugares do mundo.
Condicionamento dos investimentos obrigatórios
“Ao condicionar a realização dos investimentos obrigatórios e o pagamento da segunda tranche à consecução pelos aeroportos de Cabo Verde dos mesmos níveis de tráfego de 2019, parece o Governo estar a confessar que os acordos vêm de longe”, diz uma fonte consultado pelo A NAÇÃO, a propósito.
Uma outra pergunta, de todo inquietante, segundo o nosso interlocutor, é “como vai se reconfigurar o mercado da aviação civil, de transportes aéreos e do turismo no futuro breve e nos próximos 40 anos? Sabe-se muito pouco para se fixar metas e objetivos para 40 anos”, questiona a nossa fonte, sublinhando, por outro lado, que “em tempos de crise, via de regra, quem vende perde mais do que quem compra”.
Ajuste directo
Outro aspecto a ter em conta é que o Governo optou pelo ajuste directo a um operador internacional de referência, quando, segundo a nossa fonte, “não cola a questão de ser o quinto mundial entre todos e o primeiro entre os privados”.
Como afirma, “isso é pura retórica, precisamente porque não existe um ranking, existem vários e todos partindo de pressupostos que nada têm a ver com o operador em concreto), além disso a maioria dos aeroportos no mundo são ainda geridos pelo sector público (Governos nacionais, estaduais, municipais)”.
Também, a opção de não consultar o mercado internacional “não permite ao país conhecer o real interesse do mercado aeroportuário global pelos aeroportos nacionais e não nos permite comparar propostas e visões”.
Duração do contrato
A duração do contrato de concessão é também “muito questionável”, tendo em conta um valor de investimento “tão irrisório” num horizonte tão longo, 40 anos, assim como a “listinha” de investimentos obrigatórios entre 2022 a 2027, um prazo considerado “muito curto”.
Além disso, “parece que os investimentos que vão ser feitos são exactamente os que constam já dos Planos Directores Aeroportuários e dos Planos de Negócios (Investimentos Plurianuais) da ASA”.
Ou seja, “nada que a ASA não tem vindo a fazer sem sobressaltos e assumindo plenamente o financiamento ou a amortização, sem um centavo do erário público e mesmo assim entregando dividendos na ordem de 2.5 a 3 milhões de contos ao Estado, para além dos 80% das receitas da Taxa de Segurança entregues ao Tesouro Público”.
80 milhões de euros em 40 anos
Assim, esses números deitam por terra os 80 milhões de euros que o Governo assume que vai receber pela concessão de 40 anos dos aeroportos de Cabo Verde, dado que dividido esse montante por esse mesmo período significa que o Estado vai receber, anualmente, cerca de 2 milhões de euros. Daí a pergunta, inevitável, vale a pena vender algo que já estava ao alcance do país?
O nosso interlocutor afirma ainda que a média internacional desse tipo de contratos anda entre 20 e 30 anos e nos casos de concessão com construção da infraestrutura concessionada de raiz, vai até 30 e raramente aos 40 anos. “Mais, na maioria dos casos, trata-se da concessão de um aeroporto, não de todos os aeroportos e aeródromos de um país, mormente arquipelágico”, alerta.
Isto numa transação em que, mesmo os investimentos obrigatórios, deixam de o ser “se os níveis de tráfego e volume de negócio projectados não forem alcançados”. Ou seja, “então para quê um parceiro internacional de referência, escolhido por ajuste direto, com base num Plano de Negócios e de Desenvolvimento dos Hubs nacionais e internacional?”
Truques para desbastar caminho à Vinci
O Governo, em 2019, abriu o caminho para facilitar e viabilizar o negócio com a Vinci. Para isso, alterou a legislação existente, ajustando a lei, para a solução anunciada na semana passada, como sendo de “grande valor” para Cabo Verde.
Além disso, um outro desimpedimento passou por retirar da legislação então em vigor, qualquer referência aos períodos máximos para a concessão da lei, deixando essa matéria para ser livremente decidida pelo Conselho de Ministros.
E, para isso também, conforme a fonte do A NAÇÃO, “retirou poderes de intervenção da AAC no processo Ex Ante, enquanto regulador, passando a poder intervir apenas Ex Post.”
Trocado por miúdos, “a intervenção prévia da Autoridade da Aviação Civil pode ajudar o Governo a negociar e a preparar-se melhor e cometer menos erros no processo negocial. Se a negociação for mal feita e os contratos e cadernos de encargos mal elaborados, falhos e lacunares, o regulador nada pode fazer ex post”.
O Governo também, segundo a nossa fonte, alterou o modelo regulatório de Single Till para Dual Till, “apesar de todos os avisos, chamadas de atenção e parecer negativo da AAC (aliás a partir do momento em que o público tomou conhecimento do parecer desfavorável da AAC, o executivo alterou o Código Aeronáutico retirando quase todo o poder de regulação ex Ante à AAC, mesmo no que diz respeito às tarifas aéreas do mercado doméstico”.
Mas o “abrir do caminho” à Vinci contemplou outros aspectos. Um dos quais o modelo de privatização por Ajuste Directo, o que levou o Executivo, também aqui, a alterar “o modelo de Concessão Geral dos Aeroportos à ASA e de Subconcessão dos Aeroportos, através da Concessionária Geral e Airport Authority, passando a ser o Ministro das Finanças e o de Transportes a conduzir todo o processo, apoiado por uma Comissão Técnica de Acompanhamento e Aconselhamento (CTAA) competente que devia ser criada, no mínimo, por Portaria, e que ninguém conhece”.
Na prática, além de ter alterado a legislação em todos os aspectos de modo a coadunar-se às condições já vinculadas com o ‘Parceiro de Referência”, o Governo, através do vice-primeiro-ministro, Olavo Correia, pôde aparecer, na semana passada, perante os cabo-verdianos, a dizer que cumpriu a lei e que todos os documentos relativos a esta operação a favor da Vinci serão tornados públicos.
O que afinal foi concessionado e a quem?
O Decreto-Lei atribui a concessão dos aeroportos ao Grupo VINCI, a certa altura, fala de 33% adquirido pela ANA Aeroportos, que é essencialmente uma marca da Vinci Aeroportos de Portugal, e diz que a concessionária criará uma entidade de direito cabo-verdiano para gerir em nome desse grupo a concessão dos Aeroportos de Cabo Verde.
Novo modelo adoptado pelo Governo
Tudo isso porque o novo modelo adoptado pelo Governo e a forma de condução do processo não permitiu alguns passos que deveriam/poderiam ser dados por uma questão de rigor, lisura e transparência do processo.
Alteração dos estatutos da ASA
“Os estatutos da ASA poderiam ter sido já alterados clarificando quais as actividades e os activos, trabalhadores e responsabilidades contratuais e laborais a se manterem no escopo da empresa gestora de navegação aérea. Navegação aérea não pode ser privatizada, porque trata-se de questão de soberania e o corredor aéreo é uma outorga/atribuição da ICAO ao Estado de Cabo Verde e não pode ser privatizado”, diz a fonte ouvida pelo A NAÇÃO.
Lista dos bens a serem concessionados
Esse especialista considera ainda que a lista dos bens afectos à concessão aeroportuária poderia estar já devidamente elaborada, se a administração da ASA estivesse a trabalhar “convenientemente”, pois, “em 2014 foram elaborados todos os anexos e formatos para o efeito. Neste momento, não se sabe bem o que será incluído na lista dos bens a serem concessionados”.
Serviços partilhados e situação dos trabalhadores
Alguns serviços da ASA são serviços partilhados entre o negócio de navegação aérea e o negócio aeroportuário.
“Como se processará essa divisão ou já está feita e nem os sindicatos nem os trabalhadores foram consultados e chamados à negociação?”, pergunta.
Uma outra pergunta é que trabalhadores dos serviços partilhados vão transitar para a Nova ASA, apenas prestadora de serviços de segurança e navegação aérea e as que serão alocadas à nova empresa gestora dos aeroportos.
“Quais são os critérios predefinidos e acordados com a concessionária para se falar já em 306 trabalhadores a transitar?”, acrescenta.
Ou, então, “que serviços a Nova Empresa de Aeroportos vai prestar à ASA Navegação Aérea e vice-versa para se poder perceber se não há casos de subsídios cruzados ocultos?”
E, por fim, “qual é a racionalidade do Estado/Governo assumir todas as responsabilidades pelas questões e encargos resultantes de conflitos ou reivindicações laborais que envolvam os trabalhadores que transitam para a nova concessionária, até um período de 2 anos? Como intervirá o Estado nas questões laborais e sindicais de trabalhadores que pertencem a uma sociedade privada? Haverá grupos profissionais atuais que serão dispensados ou alvo de despedimento coletivo”.
Crónica de uma privatização anunciada: Vinci faz estudo e estipula preço de compra
A atribuição dos aeroportos de Cabo Verde à Vinci começou a ser desenhada em 2017, ano em que o Governo de Ulisses Correia e Silva e esse grupo francês acertaram a realização de um estudo sobre o sector, numa perspectiva privada.
Vinci, a mesma entidade que efectuou os estudos
Disso acabou por resultaque a mesma entidade que efectuou os estudos para a gestão dos aeroportos nacionais surgir agora, cinco nos depois, como a contemplada, ainda por cima, num quadro de ajuste directo.
Com efeito, o memorando para a realização do referido estudo foi assinado em Outubro de 2017 entre o Governo representado pelo vice-primeiro-ministro, Olavo Correia, e a Vinci, representada José Luís Arnaut, presidente da Assembleia Geral da ANA, empresa portuguesa que foi parcialmente adquirida pelo grupo francês, em 2013.
Arnaut, diga-se, é um alto dirigente do PSD, partido da mesma família política do MpD, que integrou o governo de Pedro Passos Coelho. Aliás, o facto de após a sua saída do governo aparecer como gestor da Vinci, depois de o mesmo governo do qual fez parte, ter realizado a privatização da ANA, mereceu críticas dos seus adversários políticos em Portugal.
Olavo Correia: “Cabo Verde precisa de escala e de mercado”
Olavo Correia justificou, na altura (2017), que Cabo Verde “precisa de escala e de mercado” para que se “consiga desenvolver o país e se alcancem os 7% de crescimento”.
Por isso, sublinhou, com a parceria com a Vinci abria-se uma possibilidade de “diálogo para podermos ter uma proposta sobre o modelo de governação dos aeroportos em Cabo Verde”.
Também, nessa ocasião, José Luís Arnaut fez o seu charme apontando os benefícios da compra, ainda que parcial, da ANA, empresa até então pública que fazia a gestão dos aeroportos portugueses, pela Vinci: “Portugal passou a contar com 302 rotas contra as 277 que tinha em 2013, o tráfico de passageiros passou de 22 milhões para 44 e, só pelo aeroporto de Lisboa, passaram, em 2016, 22 milhões de pessoas”.
Arnaut frisou igualmente que a atracção das companhias aéreas low cost é essencial para a gestão de qualquer aeroporto.
Da parte da Vinci, Benoit Trochu, director de desenvolvimento de negócios, assumiu, também na mesma altura, que Cabo Verde foi identificado “como uma oportunidade interessante de investimento”.
Parceiro “estratégico relevante”, diz Olavo Correia
Cinco anos depois, ao explicar, na semana passada, os meandros do contrato de concessão do serviço púbico aeroportuário, o vice-primeiro-ministro garantiu que Cabo Verde vai receber, até ao primeiro trimestre de 2025, 80 milhões de euros com a adjudicação da concessão do serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil ao grupo Vinci Airports.
Assegurou, igualmente, que após 40 anos de concessão todas as infra-estruturas colocadas à disposição do grupo Vinci Airports irão voltar para o Estado de Cabo Verde.
“Com o início da concessão receberemos 35 milhões de euros, que deverá acontecer no prazo previsível de seis meses, e depois mais 45 milhões no momento em que registe a recuperação do tráfego aéreo, o que na pior das hipóteses pode acontecer no primeiro trimestre de 2025”, precisou.
Para além disso, acrescentou o governante, o Estado terá o direito a receber, de 2022 a 2041, 2,5 por cento das receitas brutas, de 2042 a 2051 vai encaixar 3,5 % e de 2052 a 2061 receberá 7,0% das receitas brutas.
“Caso as receitas ultrapassem as previstas ao nível do plano estabelecido, a concessionária terá de partilhar as receitas adicionais com o Estado de Cabo Verde”, realçou.
Momento oportuno para se avançar
Contrariando a tese de que em tempos de crise não se deve fazer negócios do género, Olavo Correia que justifica a decisão com a necessidade de executar a visão estratégica de construir e edificar uma zona económica especial ancorada nos serviços aeroportuários a partir da ilha do Sal, sublinhou que o momento que estamos a viver é oportuno para se avançar com esta operação porque temos a necessidade de diversificar a economia (…) através dos serviços aeroportuários”.
O VPM considerou ainda que, para a concessão dos serviços aeroportuários, Cabo Verde conseguiu um parceiro “estratégico relevante”, que “mesmo num contexto de crise manteve o seu interesse por Cabo Verde o que demonstra que o país ainda goza de uma reputação importante à escala global”.
Oposição acusa PM de “deslealdade”
O líder da UCID disse, ontem, no Mindelo, ter sido apanhado de surpresa com a publicação, no Boletim Oficial, do decreto que atribuiu a concessão de serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil à VINCI Airports SAS, porquanto esse assunto na foi abordado na reunião que manteve com o primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, no dia 27 de Abril.
João Santos Luís acusou, na conferência de imprensa para reagir a essa decisão, o chefe do PM de “deslealdade”, por considerar que, se tratando de um assunto público, as decisões devem ser tomadas “da melhor maneira possível”, com “transparência e rigor”, respeitando as leis, “sem secretismos e sem confidencialismos exacerbados”.
João Santos Luís: concessão “não oportuna”
João Santos Luís, que afirma que o seu partido não é contra privatizações, ressalvou, no entanto, que a concessão dos aeroportos e aeródromos “não é oportuna”, por causas das diversas crises vividas e que o Governo ao optar pelo ajuste direto, que deveria ser uma exceção, “não teve em conta a melhor oportunidade nem para a economia e nem para a empresa”.
Na mesma conferência de imprensa, no Mindelo, o presidente da UCID exortou o Governo a ter mais ponderação nas próximas privatizações e apontou os exemplos da Enapor e da Emprofac, esta última a quem o Estado “deve 1,200 mil contos” e que agora “está a ser asfixiada para se encontrar motivos para a sua privatização”.
PAICV: processos de privatizações de “forma intransparente”
O PAICV, por seu lado, acusou o Governo de conduzir os processos de privatizações de “forma intransparente” e com “muita falta de rigor”.
Rui Semedo, líder dessa formação, afirmou também, mal a notícia foi tornada pública, que o executivo tem “atropelado a lei das privatizações” e de parceria público-privado, “gerando conflitos de interesse” na elaboração dos estudos prévios, na fixação dos cadernos de encargos relativamente a investimentos, nas rendas e compensações de exploração, entre outros.
Conforme Rui Semedo, o Decreto-Lei publicado, atribui a concessão de serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil, mas é por demais “lacónico” no que respeita à fixação de instrumentos legais fundamentais para a operacionalização da concessão, designadamente, o contrato de concessão e a concessionária.
Diante disso, afiançou, o PAICV “vai fazer tudo” para ter acesso a toda a documentação de suporte a essa concessão, analisar pormenorizadamente os processos e procedimentos e “recorrer a todos os meios disponíveis para evitar” que os cabo-verdianos venham a assistir, com esse processo, à repetição do “cenário duramente vivido” da privatização da TACV e outras.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 767, de 12 de Maio de 2022