É preciso desvendar se, na revisão do Código Penal publicada em Fevereiro de 2021, houve intenção ou não de beneficiar determinadas personalidades, alegadamente envolvidas em casos de corrupção e tráfico de influência. Há quem acredite que sim, mas a ministra Joana Rosa escuda-se em “erro material” que se traduziu na redução do prazo de prescrição dos crimes de corrupção passiva, corrupção activa e tráfico de influência de 15 para cinco anos.
O Governo colocou o Parlamento numa corrida contra o relógio, no sentido de evitar que o Código Penal (CP) cause mais danos, depois da sua revisão em Fevereiro de 2021.
Em causa estão os prazos de prescrição do procedimento criminal e das penas, mais concretamente, dos crimes de corrupção passiva, corrupção activa e tráfico de influência.
Mais de um ano após a aprovação da última revisão do Código Penal (CP) e do Código de Processo Penal (CPP), na altura, por unanimidade dos deputados, o Executivo voltou a introduzir, em regime de urgência, no Parlamento, esses dois diplomas para mais uma revisão.
Em causa crimes de corrupção e tráfico de influência
Desta feita para corrigir um alegado “erro material” ou “lapso” que se traduziu na redução do prazo de prescrição do procedimento criminal e das penas, erro esse que apenas foi detectado após a sua publicação no Boletim Oficial.
É que, essa alteração do CP, conforme um magistrado contactado pelo A NAÇÃO, traduziu-se numa “autêntica cirurgia legislativa” e, ao que tudo indica, “não foi obra do acaso”. Nisso, há também quem fale em “acrobacia jurídica” não menos deliberada.
A versão proposta inicial foi submetida a todos os procedimentos legislativos, ou seja, sujeita a todos os pareceres, aprovada no Parlamento e promulgada pelo Presidente da República.
Detectada a anomalia, conforme uma fonte parlamentar, uma das questões de fundo tem a ver, precisamente, com o momento em que o diploma foi adulterado.
“O diploma não foi alterado no Parlamento, nem na discussão na generalidade e nem na discussão na especialidade”, garante a nossa fonte.
“O diploma foi correctamente para a promulgação e foi promulgado, de forma correcta, pelo Presidente da República”.
O nosso interlocutor considera que a alteração terá acontecido com o envio do diploma ao Governo para a publicação. E é por isso, neste âmbito, que se deve apurar a responsabilidade pelo que aconteceu, tendo em conta a gravidade da situação, que deixa o Parlamento, o Governo e o Presidente da República em situação de verdadeiro embaraço.
PAICV pede abertura de processo de averiguação
Aliás, perante isso, o deputado Démis Almeida (PAICV) disse ao A NAÇÃO que será necessário instaurar um processo de averiguação para se saber em que momento, de facto, o diploma foi alterado.
“Todos estávamos convencidos de que os prazos tinham sido aumentados e não reduzidos”, afirma.
Demís Almeida entende, igualmente, que a segunda questão é saber se houve pessoas que beneficiaram com este “erro material”, porquanto “há o princípio da não retroactividade das leis penais, mas há o princípio da retroatividade das leis penais mais favoráveis ao arguido. E a eventual redução do prazo de prescrição de um crime, é uma lei penal mais favorável para o arguido”.
Mas, havendo um erro material, é preciso saber também se isso é susceptível de constituir aos arguidos o direito de avocar o instituto da retroatividade das leis penais mais favoráveis.
“No nosso entendimento, não, porque, de facto, não foi esta a vontade do legislador. Apesar de haver um erro material que se traduziu na letra da lei numa aparente redução do prazo de prescrição, o facto é que isso não era a vontade do legislador”.
Diante da gravidade do assunto, Démis Almeida faz saber que o Grupo Parlamentar do PAICV pediu ao presidente da Assembleia Nacional que levantasse um processo independente de averiguações para saber em que momento o diploma foi adulterado, no sentido de se passar a ideia de que houve uma redução dos prazos de prescrição.
Joana Rosa diz acreditar em “erro material”
Na apresentação da proposta de Lei que procede à quinta alteração ao Código Penal, que foi aprovada na generalidade na sessão plenária deste mês, a ministra da Justiça, Joana Rosa, começou por dizer que a revisão feita no artigo 108º, em Fevereiro de 2021, visava cumprir as disposições internacionais vinculativas do Estado de Cabo Verde, incluindo a tortura entre os crimes imprescritíveis e dos crimes de corrupção ativa, passiva e de tráfico de influência, “evitando-se, deste modo a sua prescrição num curto período de tempo”.
“Acontece que na versão final na proposta encaminhada para a publicação ocorreu um erro material, entendemos nós ser um erro material, não detectado na altura, ditando que o número 6 do artigo 108º excluísse os artigos 363º, 364º e 365º, que se referem à corrupção activa, passiva e tráfico de influência”, admitiu a governante.
Esse “erro material”, não rectificado no prazo legal de 90 dias, “fez com que a revisão operada andasse em contramão com todas as orientações da convenção das Nações Unidas contra a corrupção”. Segundo Joana Rosa, urge corrigir esse “erro material”, estando o Governo aberto para discutir essa situação, porquanto, “havendo consequências desse erro material na nossa ordem jurídica, juntamente com os deputados, deveremos buscar vias para a resolução desse problema”.
Acrobacia jurídica
Erro material, ou não, há quem suspeite que a alteração introduzida, à socapa, na última revisão do Código Penal, não terá passado de um “esquema fraudulento”, para beneficiar um grupo específico de indivíduos a braços com a justiça.
“Há pessoas, há processos e existem casos públicos que podem beneficiar deste chamado erro material”, afirma um magistrado ouvido pelo A NAÇÃO.
Consequências do alegado “erro material”
Outra coisa, segundo ouvimos também, tem a ver com as consequências desse “erro material”.
Não tendo havido alteração material destas normas pelo órgão de soberania competente (o Parlamento), e, não tendo havido a promulgação desta alteração pelo órgão de soberania competente (Presidente da República), o nosso interlocutor considera que “não há norma” e a redução do prazo de prescrição “é juridicamente inexistente”.
Ou seja, “padece do valor jurídico mais grave que existe e, por conseguinte, ninguém pode ganhar direitos. Não pode haver a possibilidade de alguém ou algum processo se beneficiar de normas penais retroativas mais favoráveis”.
Prazos de prescrição passaram de 15 anos para cinco anos
Com isso, no entender do nosso interlocutor, foi uma “autêntica acrobacia legislativa” na hora de enviar o diploma para a publicação: um “pseudo legislador”, à socapa, apostando na distração dos vários sujeitos legislativos, resolveu “adulterar” a versão aprovada no Parlamento e promulgada pelo PR.
Com isso, os prazos de prescrição dos crimes de corrupção activa, passiva e de tráfico de influência, que deveriam ser de 15 anos, passaram para cinco anos.
“Ora, à primeira vista poderíamos pensar que teríamos aqui um clássico problema de aplicação da lei no tempo, a ser resolvido pelo artigo 2º do CP que manda aplicar a lei mais favorável ao arguido e, nesse caso, seria a lei que estabelece um prazo de prescrição mais curto, ou seja, a versão publicada da lei”, afirma o jurista que considera, no entanto, que, neste caso, seria um raciocínio demasiado “simplista”, que encontraria um óbice “inultrapassável”.
“A versão publicada não corresponde àquela que foi aprovada pelo Parlamento e promulgada pelo PR”, portanto, “a versão publicada não foi aprovada e promulgada e a sanção jurídica para a falta de promulgação dos atos legislativos é a inexistência jurídica, conforme o artigo 138º, 1, da Constituição da República”.
Mexidas na lei para “beneficiar grupo bem identificado”
De acordo com um documento de um jurista, que A NAÇÃO teve acesso e que foi endereçado ao presidente da Assembleia Nacional, o autor diz ter discorrido toda a nota preambular da citada Lei nº 117/IX/2021, de 11 de Fevereiro, que introduziu as alterações ao Código Penal, e que dessa leitura não se deparou “com uma única referência à alteração dos prazos de prescrição do procedimento criminal e das penas dos identificados crimes de corrupção passiva, artº 363º, corrupção ativa, artº 364º e tráfico de influência, artº 365º, facto este que foi confirmado por um dos elementos que integravam a comissão de revisão ao Código Penal que não houve qualquer alteração neste sentido”.
Suspeições sobre comissão de revisão do Código Penal
“Como é do conhecimento público”, lê-se também na mesma denúncia, “encontra-se pendente um processo crime com muita repercussão nos órgãos da comunicação social nacional e internacional, no qual figuram como arguidos várias figuras públicas eminentes, incluindo políticos, empresários, funcionários públicos, etc. aos quais são imputados um acervo de crimes graves, entre os quais, corrupção passiva e corrupção ativa, sendo certo que integrava o leque de arguidos a pessoa que presidiu a comissão de revisão do Código Penal e, concomitantemente, figurava como advogado de um dos arguidos no mesmo processo”.
Segundo a mesma fonte, os crimes de corrupção passiva, corrupção activa e tráfico de influência, independentemente da moldura penal abstracta, o prazo de prescrição do procedimento criminal e da pena era de 15 anos.
Arguidos já não serão julgados pelos crimes de corrupção
Porém, com as alterações introduzidas pela Lei no 117/IX/2021, de 11 de Fevereiro, os prazos reduzem-se para 10 e 5, atendendo à moldura penal abstracta.
“As alterações introduzidas, cirurgicamente, aos prazos de prescrição do procedimento criminal e da pena visam claramente beneficiar determinadas pessoas, sendo certo que nenhum dos arguidos acusados e pronunciados no supramencionado processo será julgado pelos crimes de corrupção passiva e corrupção ativa, por prescrição do procedimento criminal, porque no caso da corrupção ativa o prazo de prescrição é de cinco anos e na corrupção passiva é de 10 anos, mas em ambos os casos estes prazos já decorreram”, alega.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 764, de 21 de Abril de 2022