O país está em calamidade. Não há quem não viva do campo que não passe por dificuldades devido à persistente seca que afecta o país há quatro anos. Em Santo Antão, famílias rurais, agricultores pecuaristas, estão aflitos com o cenário de crise e pedem “socorro” para enfrentar as dificuldades económicas causadas pela falta de chuva. Há quem tema a fome.
Do norte ao sul da ilha de Santo Antão a situação é a mesma. Comunidades rurais fazem de tudo para atenuar os efeitos de uma seca rigorosa que anulou, em muitas localidades, a agricultura e pôs os criadores de gado em luta constante, à procura de pasto e, muitas vezes, de água.
Falta de pasto e crise de água em diversas localidades
Nilton Monteiro, agricultor e criador de gado em Lagoa, Planalto Leste, passa por uma situação difícil e aflitiva. Além de enfrentar a falta de pasto para os animais e a aridez do solo, vive uma crise de água frequente, a ponto de escolher entre matar a sede da família ou a dos animais.
“Tenho metade de um galão de água em casa. Desde ontem os animais estão sem beber porque não há água. Infelizmente temos de escolher entre os animais e nós. A quantidade de água que temos disponível não satisfaz as nossas necessidades pessoais e nem tão-pouco a dos animais”, reclama este criador que fala em falta de água constante e do custo elevado que diz ser, o mais barato, dois mil escudos a tonelada.
A falta de água se mistura com a dificuldade de encontrar pasto para sustentar os animais, transformando-se num problema para manter a criação e obter algum lucro.
No caso de Nilton, devido à “alimentação deficiente” que fornece ao gado, a produção de leite é fraca e, consequentemente, não consegue produzir o suficiente para a venda.
Abater para não morrer
A situação torna-se crítica quando se vê obrigado a abater os animais ou então vender o gado ao desbarato, na tentativa de obter algum rendimento e evitar a morte, essencialmente, de cabras. Só no caso de Nilton já morreram 20.
Os vale-cheques parecem não ajudar, como diz o criador João Vitor, também de Lagoa. Além de enfrentarem dificuldades em arranjar o montante para reajustar a quantia de um saco de ração, este suplemento nem sempre está disponível no mercado e não corresponde à demanda.
“Um saco de ração está muito caro. Os vale-cheques de 520$ não ajudam muito. Já estamos a enfrentar dificuldades económicas devido à seca, é difícil arranjar o restante dinheiro para reajustar um saco de ração que custa mais de dois mil escudos. Além disso, quando vamos comprar não encontramos ração disponível porque chegam e acabam no mesmo momento e nós, das comunidades rurais, somos os mais prejudicados porque estamos longe do posto de venda na cidade”, conta ao A NAÇÃO.
A situação repete-se em diversas localidades. Corda, Água das Caldeiras, Chã de Pedra, Ribeira dos Bodes, Ribeira das Patas, Paul e várias outras zonas, principalmente as praticantes de agricultura de sequeiro. Por onde quer que se passe as queixas são as mesmas.
Com a estiagem, o número de agricultores no desemprego cresce e são, cada vez mais, as famílias rurais que têm recorrido, com mais frequência, às lojas para adquirir alimentos que até então cultivavam, aumentando assim, o custo de vida destas famílias.
Sem trabalho e a passar fome
Em Água das Caldeiras, também no Planalto Leste, A NAÇÃO encontrou o agricultor Alfredo Monteiro.
Por sorte ou não, nesse dia, conseguiu algumas horas de trabalho numa pequena obra, mas nem sempre é assim. Com a actividade agrícola interrompida, devido à falta de chuva, Alfredo passa a maior parte do tempo parado, “com vontade de trabalhar”…
Na sua família são dez pessoas, nove desempregados e dependentes de uma mulher chefe de família que ganha 249 escudos por dia no trabalho de conservação da floresta (ler abaixo). Um rendimento irrisório que deixa toda a família em dificuldades sérias.
“Podemos passar um dia sem comer, ou então fazer apenas uma refeição por dia. Não se consegue comprar comida e pagar despesas. As dificuldades são imensas”, faz saber Alfredo ao nosso jornal.
Se o cenário fosse outro, com mais chuva, como diz este nosso entrevistado, a família toda estaria empregada, mesmo que temporário, mas a seca acentuou o desemprego vivido nesta zona e em todas as outras rurais e até mesmo do centro urbano.
“Presidente da Amupal alerta para “situação crítica”
Em Água das Caldeiras e em todas as outras, também praticantes da agricultura de sequeiro, a situação é crítica, como alerta a presidente da Associação das Mulheres do Planalto Leste (Amupal), Josefa Sousa.
Esta líder comunitária diz que a seca tem tido um “impacto forte” nas famílias, com algumas a passarem fome, como é o caso das mulheres chefes de família e desempregadas.
A própria associação ressente-se da seca e ainda dos impactos da pandemia da covid-19.
Constituída por 13 mulheres, a Amupal dedica-se à transformação de frutas e ao turismo de terraço. Com a seca, a produção de frutos locais desapareceu e os grupos de turistas são cada vez menores devido ao impacto da pandemia.
“A situação está difícil. Todos os produtos de agricultura estão caros, muito caros! Devido a esta seca estamos sem transformação de frutas locais. Temos comprado frutas de outras localidades, mas a um preço muito alto e o ganho é quase nada. De vez em quando recebemos um grupo de turistas, mas não compensa”, expõe Josefa.
Todas estas dificuldades têm impossibilitado a associação de ajudar as mulheres chefes de famílias beneficiárias em Água das Caldeiras, para a tristeza da presidente da Amupal que sente na pele o sofrimento de chefes de família em desespero.
Medo da fome
A subida dos preços dos bens de primeira necessidade veio piorar tudo na já por si difícil vida de quem vive nas zonas rurais de Santo Antão.
O que já estava difícil tornou-se mais difícil. É o exemplo das mulheres que trabalham na conservação do perímetro florestal do Planalto Leste. A NAÇÃO conversou com duas.
Joana Baptista e Francisca dos Santos ganham por dia 249 escudos do Ministério da Agricultura e Ambiente.
Se já com azágua garantida, o rendimento não ajudava, em tempos de seca e de crise global, torna-se numa vergonha, como diz uma delas.
“O meu rendimento é uma vergonha. Não serve de muita coisa. Somos dez em uma casa e apenas eu trabalho. É quase impossível sustentar a família com este rendimento”, diz Francisca dos Santos, de 55 anos.
Francisca tem medo da fome. O rendimento mensal de cerca de cinco mil escudos, caso for trabalhar todos os dias, mal dá para comprar um saco de arroz, óleo e temperos e ainda custear a electricidade, água e transporte escolar. As dificuldades de levar a panela ao lume nunca foram tantas.
“Quando chove sempre conseguimos uma renda extra, mas a seca piorou tudo. Às vezes não há o que cozinhar. Temos diminuído o que já era pouco, muitas vezes com apenas uma refeição ao dia”, conta.
Joana Baptista, 59 anos, também passa pelas mesmas dificuldades. Faça sol, chuva ou vento, continua a trabalhar para garantir os 249 escudos diários, pois, caso contrário, como diz, passa fome.
“Tenho de garantir, pelo menos, o arroz. Desde que tenha sal, enganamos a fome”, conta à nossa reportagem.
Associações preocupadas
A situação de chefes de famílias afectadas pela seca em Santo Antão preocupa as associações comunitárias da ilha.
A Associação Ponta de Cinta de Corda e Luz Viva de Lagoa, ambas no Planalto Leste, alertam para o desemprego massificado, falta de água e um crescente número de famílias a viver na pobreza.
Com a agricultura e criação de gado condicionadas, a solução tem sido vender ao desbarato o gado.
Na zona de Corda, uma vaca que custava 100 mil escudos, passou a custar até 30 mil escudos, como aponta a Associação Ponta de Cinta.
Os líderes associativos e todas as comunidades rurais pedem medidas mais assertivas – do Governo e da Câmara Municipal – para socorrer as famílias e para que estas possam sentir, na prática, os impactos dos planos de emergência.
Este pedido de socorro, como sublinha Josefa Sousa, da Amupal, abrange principalmente as chefes de família das comunidades rurais.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 761, de 31 de Março de 2022