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Sociedade

Revisão do Código Penal: Redução de prazos de prescrição no arquivamento de processos

Alguns processos crimes vêm sendo arquivados na sequência da revisão do Código Penal (CP), de Abril de 2021, que reduz o prazo de prescrição de vários crimes de acordo com as respectivas molduras penais. Há quem considere que essa revisão foi feita à medida, para beneficiar uns quantos, mas um magistrado contactado por A NAÇÃO assegura que “não é bem assim”. Por exemplo, ainda que possa ser arquivado, o processo relacionado com o homicídio de Zezito Denti d’Oru é “imprescritível”.

No regime anterior à revisão do Código Penal (CP), de 2021, havia um prazo de prescrição de 10 anos, quando o crime era punível com pena de prisão e cujo limite máximo fosse superior a um ano e não excedesse 10 anos.

Neste caso, o prazo de prescrição de cinco anos era aplicável aos processos onde o limite máximo da pena de prisão não fosse superior a um ano.

Alteração do Código Penal de Abril de 2021
Com a terceira alteração ao CP, feita em Abril do ano passado, os crimes com moldura penal de um ano e que não excedam a cinco anos, o prazo de prescrição reduz para dois anos, e os puníveis com mais de cinco anos de prisão, o prazo de prescrição foi reduzido de 10 para cinco anos.

Na mesma linha, se a moldura penal for até 10 anos, o prazo de prescrição fica também nos 10 anos. Mas, se a moldura penal exceder 10 anos de prisão, o prazo de prescrição é de 15 anos.

Ou seja, explica a nossa fonte, um magistrado experiente, “com esta terceira alteração no Código Penal, foi introduzido mais um nível de prescrição”, sublinhando que num crime de furto, cujo prazo de prescrição, que era de cinco anos, “passou a ser 10 anos”. Portanto, houve um agravamento, na prática.

Burla de terrenos na Praia
Mas, num caso de furto qualificado, como pode ser tipificado o crime relacionado com a burla de terrenos na cidade da Praia, por exemplo, e que envolve várias personalidades e empresas conhecidas na capital, a pena de prisão varia entre dois e seis anos.

Isso significa que o prazo de prescrição desse crime, agora, é de 10 anos.
Mas o artigo 111º do CP apresenta novos factos que interrompem os prazos de prescrição. Só o facto da constituição de arguido, conforme o nosso interlocutor, interrompe a contagem do prazo de prescrição, assim como a notificação da acusação.

Riscos de prescrição dos processos
“Antes da alteração”, explica, “os factos que interrompiam os prazos de prescrição eram a notificação, o despacho de pronúncia ou despacho materialmente equivalente, que é o despacho que marca a data para o julgamento”, mas, se até lá, não fosse possível emitir o despacho de pronúncia, “o processo corria sérios riscos de prescrição”.

Para o nosso interlocutor, com a revisão do ano passado, o quadro agora mudou: “Basta um indivíduo for constituído arguido num processo, o prazo de prescrição é interrompido automaticamente”.

Ou seja, à medida que o caso for evoluindo, com novas etapas, o prazo de prescrição vai também se prorrogando.

Assim, de acordo com a fonte do A NAÇÃO, a prescrição de um crime terá sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal acrescido de metade.

Ou seja, “significa que, num crime em que o prazo de prescrição é de 10 anos acresce-se cinco anos e se forem ultrapassados 15 anos desde a sua prática, o mesmo pode prescrever. Trata-se de uma prescrição por limite”.

O nosso interlocutor diz não acreditar que essa “prescrição por limite” seja aplicada no caso relacionado com a burla de terrenos na cidade da Praia, tal como tem sido especulado em alguns meios da sociedade cabo-verdiana.

Caso dos terrenos aguarda julgamento

Segundo o Santiago Magazine (SM), os 15 arguidos do megaprocesso relativo à “Máfia de terrenos da Praia”, com destaque para figuras públicas como Arnaldo Silva, Rafael Fernandes, Alfredo Carvalho e a empresa deste, Tecnicil, vão a julgamento, conforme decisão do juiz que os ouviu na Audiência Contraditória Preliminar (ACP), em Dezembro do ano passado.

Conforme aquele online, todos os mencionados estão acusados de burla qualificada, lavagem de capital, associação criminosa, falsificação de documentos e corrupção activa.

A ACP, feita no 3º juízo crime do Tribunal da Praia, decidiu encaminhar todos os arguidos para julgamento do megaprocesso de alegada venda ilegal de terrenos da Praia, em que estão envolvidos pelo menos 15 arguidos.

Juiz manda todos os arguidos a audiência de julgamento

Ainda o SM, durante a ACP, o juiz Alcides Andrade, do 3º juízo-crime, entendeu que a polémica matéria que tinha em mãos só será resolvida em sede de julgamento, pelo que considerou que deveria mandar todos os arguidos a audiência de julgamento.

A ACP, solicitada pelos arguidos, tinha como objectivo chegar a um entendimento com os queixosos de modo a evitar que o processo chegasse às barras do tribunal para julgamento, arriscando condenação a pena de prisão e indemnizações.

Recorde-se que o Ministério Público deduziu acusação contra 15 indivíduos suspeitos da venda ilegal de terrenos da Praia, processo intentado pelos herdeiros de Tavares Homem (Firmina Tavares Homem e António Manuel Tavares Homem), representados pelo advogado Emílio Xavier, que já trabalhava com o malogrado advogado Felisberto Vieira Lopes, principal actor no desvendamento deste e outros casos relacionados com terrenos, alguns dos quais se arrastam desde a década de 1990.

Arguidos do megaprocesso relativo à “Máfia de terrenos da Praia”

São eles: o antigo governante e ex-bastonário Arnaldo Silva, o ex-vereador Rafael Fernandes, o empresário Alfredo Carvalho, a Tecnicil, Armindo Silva (ex-topógrafo da CMP), Maria Helena Oliveira e Sousa (filha de Fernando de Sousa), Maria Albertina Duarte (Ex- director geral de Registo e Notariado), Rita Martins (Notária-Conservadora dos Registos), Elsa Silva (empresária angolana), Victor Oliveira e Sousa (filho de Fernando Sousa), Maria Leonor Pinto Balsemão Sousa (portuguesa), José Manuel Oliveira Sousa (filho de Fernando Sousa), Ivone Brilhante (portuguesa), Maria do Céu Monteiro e Wanderley Oliveira e Sousa (filho de Fernando Sousa).

A lista de réus, para os quais o MP tinha pedido julgamento de tribunal colectivo, inclui ainda uma carta rogatória enviada pelo 3º juizo-crime do Tribunal da Praia às autoridades judiciais portuguesas a fim de notificarem a família dos ofendidos. São cerca de 40 testemunhas que vão prestar declarações no tribunal.

O despacho de acusação do Ministério Público, de 90 páginas, considera que esse grupo agiu “de forma criminosa e altamente prejudicial para o Estado, para a Justiça, para a Autoridade do Estado e para a sociedade em geral, com danos avultadíssimos aos legítimos proprietários”. 

Caso “Zezito Denti d´Oru” não corre risco de prescrição

Ainda que possa ser arquivado, o processo relacionado com o homicídio de Zezito Denti d’Oru é “imprescritível”, assegura a fonte do A NAÇÃO.

Com efeito, uma cláusula de “imprescritibilidade”, introduzida no artigo 108 do Código Penal, impede que crimes de homicídio doloso sejam arquivados por causa do prazo de prescrição.

Este é, pois, o caso do assassinato de Zezito Denti d´Oru, ocorrido em Outubro de 2014, e que tem como um dos supostos implicados o ministro da Administração Interna, Paulo Rocha.

Crimes imprescritíveis

“De uma forma geral, as alterações feitas no Código Penal foram no sentido de dificultar a prescrição”, advoga o magistrado ouvido pelo A NAÇÃO, explicando que, de acordo com a lei, são imprescritíveis os crimes de guerra, genocídio, contra a humanidade, tortura, tratamento degradante e desumano e, por fim, os crimes dolosos contra a vida.

À luz da lei, o homicídio de Zezito Denti d´Oru se enquadra num crime doloso contra a vida, daí a sua “imprescritibilidade”.

O facto de se estar a mais de sete anos da data do cometimento desse crime, sem que o Ministério Público tenha constituído qualquer arguido, como atesta um comunicado recente da Procuradoria Geral da República (PGR), não significa que esse processo venha a ser arquivado por prescrição.

Caso “Zezito Denti d´Oru” a decorrer na Comarca da Praia

Nesse comunicado, emitido no dia 30 de Dezembro, o Ministério Público esclareceu que, relativamente à morte do referido cidadão, na Cidadela, na noite de 13 de Outubro de 2014, está a correr os seus termos na Comarca da Praia e que ninguém foi ainda constituído arguido.

“Não obstante as diligências realizadas, até à data, o Ministério Público não constituiu ninguém arguido nem notificou o atual ministro da Administração Interna [Paulo Rocha] para prestar qualquer declaração nos mencionados autos, nem mesmo na qualidade de testemunha”, lê-se no comunicado.

O assassinato do referido cidadão, de 39 anos, José Lopes Cabral (Zezito Denti d’Oru), ocorreu no âmbito de uma “operação policial promovida pela Polícia Judiciária”. Ou seja, ainda que possa ser arquivado, o processo relacionado com o homicídio de Zezito Denti D´ Oru é “imprescritível”. Isto é, mesmo que arquivado, poderá ser reaberto mediante novas e melhores provas. 

Arquivamentos em massa

Com a conhecida morosidade da justiça em Cabo Verde, é bem provável que haja arquivamentos em massa de processos crime, na sequência da redução de prazos de prescrição introduzida na alteração do Código Penal, em Abril do ano passado.

Um despacho de arquivamento do Ministério Público, de Novembro de 2021, que A NAÇÃO teve acesso, vem precisamente demonstrar o “abatimento” de processos pendentes por via da prescrição.

Por exemplo, em relação a um facto ocorrido em Agosto de 2016, aquele despacho recorda que o artigo 108º, nº 2, alínea b) do CP, então vigente, sob a epigrafe “Prazos de prescrição”, dispunha que o procedimento criminal extinguia, por efeito de prescrição logo que sobre a prática do facto punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 1 ano, mas que não exceda 10 anos.

Entretanto, segundo o referido documento, a 12 de Maio de 2021 entrou em vigor a Lei 117/IX/2021, que alterou o artigo 108º, nº 2, alínea c) do CP, que reduziu para metade (5 anos), quando se tratar de infração punível com pena de prisão igual ou superior a 1 ano e que não exceda 5 anos. Portanto, com a revisão, o caso corre agora o risco de ir parar ao cesto dos processos arquivados.

Entretanto, com a prescrição em massa, é de supor que centenas, para não dizer milhares de casos, venham a ser “abatidos”, aliviando, assim, o sistema judicial do número de casos à espera de solução final. 

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 756, de 24 de Janeiro de 2022

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