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SARS-CoV-2: O vírus das desigualdades sociais

Por: João Serra*

I. Ricos mais ricos, pobres mais pobres e mais pobreza

Segundo diversos estudos realizados recentemente, um mundo mais desigual é o legado imediato da crise económica provocada pela pandemia de Covid-19, nos últimos dois anos.

Por exemplo, de acordo com um macroestudo elaborado pelo “Laboratório da Desigualdade Mundial” (“World Inequality Lab”, no original em inglês), cujas conclusões foram publicadas pela CNN Business a 07 de dezembro de 2021, entre 2020 e 2021 ocorreu uma forte aceleração do processo de concentração dos rendimentos e da riqueza, tornando o mundo ainda mais polarizado. Por um lado, no topo da pirâmide, um reduzido e seleto clube de 500 multimilionários (0,001% da população mundial) viu as suas fortunas crescerem 14%, perfazendo um total de mais de 8,4 biliões de dólares (USD), valor inferior apenas ao PIB dos EUA e da China. Por outro lado, constituindo uma amplíssima base, cerca de 100 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza extrema, elevando o total global para 711 milhões em 2021, conforme uma estimativa do Banco Mundial (BM) citada pela análise.

Ainda mais pessoas teriam caído na pobreza se muitos países desenvolvidos não tivessem realizado esforços de socorro para proteger os seus residentes das consequências financeiras da pandemia de Covid-19

Com a pandemia, os cinco anos de progresso para a erradicação da pobreza global foram perdidos, o que afeta o horizonte da realização do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de, a nível global, erradicar a pobreza extrema e reduzir para metade a pobreza, em todas as suas dimensões, até 2030. Em abono da verdade, é de se dizer que este horizonte já estava comprometido, mesmo antes da crise pandémica.

Ademais, segundo o mesmo estudo, os 10% mais ricos da população global controlavam 76% da riqueza mundial em 2021, contrastando com os 50% mais pobres que possuíam apenas 2%. Por sua vez, os restantes 40% da população, considerados intermediários, detinham 22%.

“A crise de Covid-19 exacerbou as desigualdades entre os muito ricos e o resto da população”, disse Lucas Chancel, principal autor do relatório e codiretor do Laboratório. “No entanto, nos países ricos, a intervenção governamental evitou um aumento maciço da pobreza, o que não aconteceu nos países pobres”.

Por outro, o impacto da pandemia de Covid-19 é altamente desigual. As populações mais afetadas são as que já estavam mais vulneráveis, o que intensifica as desigualdades pré-existentes.

Assim, em 2021, a desigualdade entre “os de cima” e “os de baixo” nunca tinha sido tão grande desde o começo do século XX. Com a pandemia, os ricos ficaram ainda mais ricos, os pobres mais pobres e o número de pobres aumentou.

O que fazer, na perspetiva do FMI?

Face à situação de aumento das desigualdades sociais em resultado da pandemia, o FMI pede aos países que tomem medidas. Para o Fundo, é preciso agir para travar este caminho. Caso contrário, o risco de instabilidade social aumenta, à medida que as populações perdem a confiança nas instituições. Agir significa, entre outras coisas, mais despesa pública e mais progressividade nos impostos. Porém, estas devem ser bem calibradas para evitar a derrapagem financeira e revolta social, avisa.

“Os decisores políticos devem responder ao sentimento público que, como resultado da pandemia, poderá estar a mudar no sentido de exigir políticas mais inclusivas”, lê-se no capítulo analítico do “Fiscal Monitor”, publicado a 01 de abril de 2021, em antecipação à divulgação do documento sobre a evolução orçamental dos países membros.

Compreender as preferências da população sobre a melhor forma de alocar a despesa pública e desenhar o enquadramento fiscal, preferências estas que “provavelmente foram afetadas pela crise da Covid-19”, sublinha o FMI, “será crucial”, indicam os especialistas. “Erros de cálculo podem levar à instabilidade política. Reforçar a confiança no governo é chave para implementar as políticas públicas necessárias, mas é ainda mais desafiante durante uma pandemia”, alertam.

Perante este cenário de impacto da pandemia nas desigualdades crescentes, o Fundo recomenda políticas tanto pré-distributivas, como redistributivas. Ou seja, agir no que condiciona o acesso ao mercado de trabalho, por um lado, e nos rendimentos conseguidos pela população, por outro. Nas medidas pré-distributivas, recomenda-se, por exemplo, aumento da despesa pública em educação, saúde e infraestruturas para que os mais pobres tenham mais acesso, e oportunidades iguais.

Além disso, o FMI defende que é preciso promover mercados livres e competitivos e, para isso, as medidas de amparo adoptadas agora durante a pandemia terão de ir progressivamente mudando. “À medida que a pandemia for controlada, as políticas devem gradualmente mudar para proteger as pessoas, em vez dos empregos”, recomenda-se, frisando a importância de apostar nas políticas ativas de emprego, em formação de adultos ou em subsídios aos salários para facilitar a adaptação às novas condições do mercado de trabalho e à mobilidade.

Já as políticas redistributivas devem ter especial atenção à progressividade da carga fiscal. O Fundo defende que os impostos mais progressivos têm a capacidade de reduzir a desigualdade. Isto implica rever as deduções fiscais e alguns países até podem considerar um aumento de impostos para os rendimentos mais elevados.

Taxar juros, dividendos e capitais também aumenta a progressividade, uma vez que estes rendimentos se acumulam mais nas fatias mais ricas da população, argumenta o FMI. Mesmo os impostos sobre o consumo podem ser redistributivos se a receita for alocada a serviços públicos de que os mais pobres beneficiam mais, explicam. Salienta-se que estes impostos são, habitualmente, vistos como menos progressivos, porque nas famílias mais pobres os gastos em bens e serviços essenciais engolem uma fatia maior dos seus rendimentos.

Também os impostos sobre as emissões de carbono podem ser cruciais para facilitar o financiamento da maior necessidade de despesa. Já sobre os impostos sobre a riqueza, o FMI recomenda um debate cauteloso, justificando que têm dificuldades de aplicação por causa da avaliação dos ativos, apesar de se demonstrarem úteis na redução das desigualdades.

II. Cabo Verde: Impacto da pandemia nas desigualdades crescentes e os desafios da reução da pobreza

De um modo geral, Cabo Verde vem, desde a independência do país em 1975, alcançando resultados positivos no combate à pobreza, facto reconhecido e muito apreciado pelos seus parceiros de desenvolvimento. Segundo estes, as conquistas de redução da pobreza de Cabo Verde baseiam-se, basicamente, na estabilidade política e numa gestão dos recursos públicos relativamente boa. Os investimentos em capital humano e na construção de infraestruturas também desempenharam um papel importante.

Com efeito, conforme um estudo publicado pelo INE, em 2018, e intitulado “Perfil da Pobreza Monetária Absoluta 2001/2002, 2007 e 2015”, a incidência da pobreza absoluta passou de 58,8% em 2001, para 45,4% em 2007 e 35,2% em 2015.

De 2001 a 2015, houve, portanto, uma redução da incidência da pobreza em 23,6 pontos percentuais, ou seja, 38%, um feito considerado notável e exemplar pelo BM num estudo intitulado “Como continuar a ser um ‘campeão’ de redução da pobreza: Os desafios de Cabo Verde”, publicado no sítio da instituição a 21 de fevereiro de 2019.

De acordo com os resultados do III Inquérito às Despesas e Receitas Familiares de 2015 (IDRF 2015), existiam em Cabo Verde, em 2015, 179.909 pessoas em situação de pobreza, o que corresponde a 35,2% da população, então estimada, residente no país.

Foram considerados pobres aqueles que viviam em agregados familiares com consumo médio anual por pessoa abaixo do limiar da pobreza, fixado no meio urbano no valor de 95.461 ECV (262 escudos diários) e no meio rural no valor de 81.710 ECV (224 escudos diários).

Dos 179.909 pobres, estimou-se que 54.395, cerca de 10,6% da população, viviam em extrema pobreza, ou seja, viviam em agregados familiares com rendimentos que permitiam consumos “per capita” anuais abaixo de 49.699 ECV (136 escudos diários), no meio urbano, ou menos de 49.205 ECV (135 escudos diários), no meio rural.

Do total dos pobres, 53% eram mulheres chefes de família, 44% correspondiam a agregados familiares monoparentais e em 61% dos agregados existiam seis ou mais pessoas. O estudo indica ainda que, do total dos pobres, 51% vivia no meio urbano, 58% estava em Santiago e 21% residia na Praia.

O IDRF 2015 revelou, também, que Cabo Verde se tornou, em 2015, um país menos desigual comparativamente a 2007, embora continue sendo um país muito desigual. Entre 2007 e 2015, o coeficiente de GINI (que reflete as diferenças de rendimentos entre todos os grupos populacionais) caiu de 0,53 para 0,47. Não obstante essa diminuição, a concentração dos rendimentos nos mais favorecidos indicia uma desigualdade económica e social, em que 20% da população mais rica concentra 52% do rendimento do país.

Apesar dos avanços feitos em matéria de combate à pobreza extrema e à privação material, a pobreza continua, mesmo antes da pandemia, ainda uma dura realidade no nosso país. A pobreza está intimamente relacionada com a falta de trabalho, comida, habitação e de dinheiro, ao fim ao cabo, com as necessidades básicas da sobrevivência humana.

Por outro, é particularmente preocupante constatar que, em Cabo Verde, a maior taxa de pobreza incide sobre agregados familiares onde há crianças. Normalmente, pobreza entre crianças e jovens significa más condições de habitabilidade e menor acesso à educação e saúde no período mais crítico das suas vidas. E isso, geralmente, reflete-se uma privação “ad infinitum” do acesso a melhores condições de vida. Ademais, implica perpetuar a reprodução intergeracional da pobreza.

Com a pandemia e a crise económica que com ela veio, a situação de pobreza e privação tornou-se, ainda, mais complicada. Na verdade, em 2020, com a recessão histórica de 14,8% do PIB Cabo Verde ficou mais pobre, inclusive do que já era em 2016. Perderam-se, em 2020, cerca de 20.000 empregos e a taxa de desemprego aumentou para 14,5%, não tendo sido maior por causa das medidas de “lay-off”.

Esta realidade, que afeta sobretudo as mulheres chefes de família, inverteu os progressos na redução de pobreza alcançados nas últimas duas décadas, tendo colocado milhares de pessoas na pobreza temporária. Mas, o mais grave em tudo isso é que, de 2016 a 2020, as famílias cabo-verdianas empobreceram, em média e em termos reais, ao ritmo de 1,8 % por ano.

Atualmente, não se sabe qual é a exata situação da pobreza em Cabo Verde, uma vez que, após o IDRF 2015, não foi realizado nenhum outro IDRF, pelo menos que seja do meu conhecimento. Todavia, ao que tudo indicia, Cabo Verde é, hoje, um país com mais desemprego e pobreza. Também, a desigualdade, no país, agravou-se com a pandemia e o risco de pobreza aumentou.

Por outro, receia-se que a crise pandémica se prolongue, com efeitos profundos na coesão social e nas oportunidades geradas para todos. As perspetivas são altamente incertas, com riscos negativos substanciais. As incertezas quanto à duração da pandemia e a velocidade da recuperação global, particularmente no nosso principal parceiro económico, a Europa, ensombram as perspetivas a médio prazo. É por isso uma prioridade nacional a salvaguarda de todos os cidadãos, através de uma estratégia nacional de combate à pobreza.

O BM, no já referido estudo sobre a pobreza em Cabo Verde, identifica cinco principais áreas, que devem merecer atenção urgente, para acelerar o desenvolvimento do país rumo ao progresso económico e social, das quais destaco quatro:

Melhoria do capital humano. Isto exigirá, conforme o documento, combater as causas das taxas relativamente elevadas de abandono escolar e das qualificações e qualificações inadequadas da força de trabalho. Outrossim, o BM recomenda o fortalecimento das oportunidades de participação das mulheres no mercado de trabalho, por exemplo, através de melhores serviços de atendimento e mudança das normas de género em relação às tarefas domésticas e apoio à educação das crianças.

Reforço da conectividade. Para o BM é urgente o reforço da infraestrutura de transportes (especialmente do transporte aéreo e do transporte marítimo) através de parcerias público-privadas. Também são necessários melhores serviços de tecnologia da informação e comunicação, bem como uma melhor gestão do setor de energia.

Redução da elevada dívida pública. Neste particular, o estudo recomenda melhoria na eficiência técnica e operacional das empresas estatais por forma a reduzir as grandes perdas que o Governo teve que cobrir com o Orçamento de Estado. Por outro, um envolvimento melhor e mais sistemático da diáspora no investimento no país também poderia ajudar a mobilizar recursos.

Tornar o setor público mais eficaz. Para o efeito, o estudo identifica várias medidas concretas, designadamente: i) melhorar as normas e procedimentos administrativos antiquados; ii) fortalecer a coordenação entre os serviços públicos; iii) mudar a ênfase do processo para os resultados; iv) melhorar o acompanhamento de desempenho e avaliar os principais programas que exigem melhor acesso aos microdados; e v) melhorar o relacionamento entre o setor público e o setor privado.

III. Sobre os conceitos e a medição de pobreza

Para melhor compreensão da problemática da pobreza, convém, referir que existem dois conceitos de pobreza: a pobreza absoluta e a pobreza relativa.

O conceito da pobreza absoluta

A pobreza absoluta refere-se a um nível que é consistente ao longo do tempo e entre países. Um exemplo de um indicador de pobreza absoluta é a percentagem de pessoas com um consumo diário de calorias inferior ao mínimo necessário estabelecido internacionalmente (aproximadamente 2.000/2.500 quilocalorias).

O limiar da pobreza é um valor monetário com o qual se comparam as despesas médias de consumo anual por pessoa, de um agregado, para determinar o seu estatuto perante a pobreza. Um individuo é considerado em situação de pobreza absoluta quando os seus recursos são insuficientes para cobrir, sem sacrifício, as necessidades básicas alimentares e não alimentares, ou seja, quando o total da sua despesa média anual é inferior a um montante mínimo determinado e que se designa de limiar da pobreza.

Se um individuo é forçado a sacrificar parte das suas necessidades alimentares para cobrir as necessidades não alimentares, considera-se que está em extrema pobreza.

Atualmente, nos países de rendimento médio-baixo (como é o caso de Cabo Verde), considera-se pobres as pessoas que devem subsistir com menos de 3,2 USD por dia, e muito pobres as pessoas que vivem com menos de 1,25 USD por dia. Já nos países de rendimento médio-alto, 5,5 USD por dia é a quantia limite para a situação de pobreza absoluta

Segundo um estudo do BM intitulado “A pobreza e a prosperidade compartilhada 2018”, cerca de 3,4 mil milhões de pessoas (aproximadamente metade da população mundial) viviam, em 2015, com menos de 5,5 USD por dia, o que representava enormes dificuldades para que pudessem satisfazer as suas necessidades básicas.  Desses, cerca de dois mil milhões, ou seja, 26,2%, viviam com menos de 3,2 USD por dia.

No entanto, ainda de acordo com a mesma fonte, a proporção da população global que vive na pobreza extrema caiu de 36% em 1990 para 10% em 2015, em parte graças à globalização.

O conceito da pobreza relativa

Já a pobreza relativa é vista como uma forma de desigualdade, principalmente em países desenvolvidos. Uma pessoa é pobre quando o nível de vida desta é muito inferior ao nível de vida das outras famílias em estudo. Assim, o conceito de pobreza relativa não considera os aspetos de privação absoluta como a subnutrição, nem garante que o valor do limiar seja suficiente para que se possa satisfazer as necessidades básicas de alimentação, habitação, educação, saúde, etc.

Praia, 16 de janeiro de 2022

*Doutor em Economia

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 751, de 20 de Janeiro de 2022

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