A Transinsular, companhia marítima do Grupo ETE, que detém 51% das acções da Cabo Verde Inter-ilhas, ainda não conseguiu cumprir os mínimos estabelecidos no caderno de encargos do concurso de concessão do serviço público de transporte marítimo de passageiros e cargas no país. Por causa disso, o sector mostra-se caótico, imprevisível e estrangulado.
Apar dos transportes aéreos, assunto tratado no número anterior do A NAÇÃO, o sector marítimo de passageiros e cargas entre as ilhas encontra-se também em situação difícil. Viajar internamente, por via marítima, também está longe do desejado. As ligações continuam irregulares, o que tem causado transtornos aos utentes que esperavam ver este problema, pelo menos, resolvido com a entrada em cena da Cabo Verde Inter- -ilhas, companhia luso cabo-verdiana, da qual o grupo português ETE detém 51% do capital social.
O drama dos passageiros
Volta e meia, na comunicação social, surgem noticias dando conta do drama de passageiros em terra, com carga por transportar, e com isso os prejuízos que não são poucos.
As maiores dificuldades colocam-se, sobretudo, nas viagens mais longas, nomeadamente, Santiago-São Vicente, ou então Santiago-Sal, ou São Nicolau e Boa Vista. Na linha São Vicente-Santo Antão, tradicionalmente a mais operativa, o quadro é melhor, diga-se em abono da verdade.
Bonito no papel
As deficiências existentes contrariam, de todo, o contrato de concessão assinado, em Fevereiro de 2019, entre o Governo e a Transinsular, do Grupo ETE.
Depois de um processo eivado de controvérsia, a empresa portuguesa ficou com 51% do capital da Cabo Verde Inter-ilhas e os armadores nacionais com 49%, avançando estes com as embarcações que detinham (ver caixa).
Mas, conforme o caderno de encargos do concurso de concessão do serviço público de transporte marítimo de passageiros e carga inter-ilhas, o vencedor do concurso teria que ter comprovada capacidade para afectar à concessão uma frota de cinco navios ROPAX (misto de passageiros e cargas) com certificação de classe com idade até 15 anos, adequados às características do tráfego e dos portos nacionais.
Incumprimento do contrato de concessão
Para além disso, os navios da frota do adjudicatário, destinados à prestação do serviço concessionado, devem preencher os seguintes requisitos: arvorar a bandeira cabo-verdiana, estarem registados no Registo Convencional de Navios, serem dotados de condições de habitabilidade e comodidade adequadas aos percursos a efectuar e possuírem velocidade não inferior a 15 nós.
Mas, volvidos quase três anos, da assinatura do contrato, os aspectos fundamentais do mesmo ainda não foram cumpridos.
A Transinsular não adquiriu os cinco navios como está estipulado. Em vez disso recorreu a embarcações de outros armadores nacionais que operavam antes dessa concessão. À Fast Ferry foi buscar os navios Kriola, Liberdadi e Praia d’Aguada, à Polar fretou o Inter-ilhas, e, em regime de fretamento, no exterior, mobilizou o Chiquinho BL e o Dona Tututa.
Promessas da Transinsular
No acto da assinatura do contrato de concessão, Luís Figueiredo, presidente da Transinsular, prometeu que os investimentos na concessionada seriam feitos com o objectivo de tornar essa companhia “numa empresa com todas as capacidades e potenciais de crescimento”.
Como disse também na mesma ocasião, em relação aos 20 navios que operavam na altura, que estava previsto o seu abate num futuro próximo, uma vez que “daqui a dois três anos já não vão estar em condições de operar, de acordo com as normas de segurança”. Ou seja, como se depreende, três anos depois, essas embarcações já deveriam estar abatidas ou perto disso.
Avarias e mais avarias nos navios
Com navios velhos e outros que não reúnem as características definidas no contrato de concessão dos transportes marítimos de passageiros e cargas, a CV Inter-ilhas fica, na prática, sem poder cumprir o estabelecido no contrato com o Estado, no que tange à frequência de viagens para a diversas ilhas.
Longe de cumprir as frequências mínimas
O contrato estabelece as sete linhas e as frequências mínimas do serviço público a explorar na concessão, mas a CV Inter-ilhas está longe de cumprir esse plano. As linhas e frequências são as seguintes: São Vicente/Santo Antão/São Vicente, 21 frequências semanais (três viagens por dia);
São Vicente/São Nicolau/Sal/ Boa Vista e volta, duas vezes por semana; São Vicente/Santiago/São Vicente, duas vezes por semana; Brava/Fogo/Santiago e volta com pernoite na Brava, seis vezes por semana; Santiago/Maio/Santiago, três vezes por semana; Santiago/Boa Vista/Sal e volta; duas vezes por semana; Santiago/São Nicolau/Santiago, duas vezes por semana.
Colisão do Kriola no cais de Vale dos Cavaleiros
A situação actual de falta de navios para fazer a ligação entre as ilhas se deve a uma avaria do Kriola provocada por uma colisão no cais de Vale dos Cavaleiros (ilha do Fogo); o navio Inter-ilhas embateu duas vezes no cais do Maio e teve umas fracturas e foi obrigado a ir para a doca. Por outro lado, o Liberdadi deve sair dos estaleiros ainda no decurso desta semana para reforçar a frota da CV Interilhas.
Chiquinho BL, está operacional, contudo não se conhece o estado de operabilidade do Dona Tututa, porquanto falhou uma viagem, no início desta semana, para São Nicolau. Com navios “velhos”, conforme o interlocutor do A NAÇÃO, “nunca haverá garantias de ligações marítimas regulares”.
Na prática, e uma vez mais, coloca-se o problema de se saber para que servem os contratos assinados pelo Estado com interlocutores que não cumprem o acordado. Nos transportes aéreos é o que se sabe, e nos transportes marítimos o quadro existente está longe de ser melhor.
Dificuldades no abastecimento e comércio inter-ilhas
Se da parte dos armadores o Governo conseguiu o silêncio tácito, o mesmo não se pode dizer dos utentes dos serviços de cabotagem. Volta e meia surgem, na comunicação social, reclamações de gente que se vê em terra, cargas por transportar, pelas mais diversas razões. Há cargas que são entregues e a empresa não consegue dizer ao certo quando é que chegarão.
Quem vive do comércio inter-ilhas diz não ter a vida fácil. Ainda no passado fim-de-semana, participantes da feira do artesanato em São Vicente (URDI) davam conta à RTC do seu drama de ter que ficar numa ilha por falta de transporte marítimo para o seu lugar de origem.
Eram artesãos de Santiago, Boa Vista, Fogo e São Nicolau. Neste caso, inicialmente, o mau tempo foi apontado como a razão da suspensão da viagem pelo Dona Tututa, mas depois a empresa anunciou uma avaria de ordem mecânica no navio.
Indignada com a situação, uma cidadã, habituada às viagens marítimas, estranha como é que um navio que chegou há pouco tempo ao país, volta e meia, apresenta problemas de avarias mecânicas, daí classificar de “palhaçada” o serviço prestado pela Cabo Verde Inter-ilhas.
Todos calados
Um comandante de marinha mercante disse ao A NAÇÃO que na análise do problema é preciso levar em conta que a CV Inter- -ilhas pertence também a empresas cabo-verdianas que detêm 49% do seu capital, mas, por estarem “amarradas”, diante dos problemas existentes, “ficam todos calados, perante a situação caótica por que que passa a CV- -Inter-ilhas”.
É que, segundo o nosso interlocutor, ao contrário do acordado entre o Estado e os seus parceiros, a Transinsular/CV Inter-ilhas não trouxe nenhum navio depois da assinatura do contrato de concessão.
“Tiveram que se socorrer a navios nacionais, que estavam a arrebentar pelas costuras, porquanto são todos velhos, incluindo os da Fast Ferry, que não dão garantias de qualidade”.
E continua o nosso interlocutor, quando confrontado com o Chiquinho e o Dona Tututa: “Chiquinho não é da CV Inter- -ilhas, é de uma empresa do Grupo ETE que o fretou à essa companhia, o que quer dizer que não é um activo da mesma. E o mesmo procedimento foi feito com o Dona Tututa”.
Quem paga as avarias
A mesma fonte pergunta também, a propósito, quem anda a pagar a reparação desses navios fretados à CV Inter-ilhas (Chiquinho e Dona Tututa), dados os problemas que têm apresentado devido a sua avançada idade e estado de conservação.
“O Dona Tututa, antes de chegar ao país, esteve quatro meses em reparação em Portugal e esteve outros quatro meses de reparação nos estaleiros da Cabnave, em São Vicente. Quem faz o fretamento de casco nu não deve assumir esses custos. Se o faz é porque há outras coisas por trás que nós desconhecemos”, diz a mesma fonte.
De referir que os navios que deveriam ser adquiridos pela CV Inter-ilhas, segundo o contrato, tinham que ter até 15 anos e alcançar a velocidade de 15 nós e “as embarcações que foram trazidas não reúnem essas condições”.
Aliás, diz a mesma fonte, “a CV Inter-ilhas, no âmbito do contrato de concessão, deveria apresentar ao Governo um plano de aquisição dos cinco navios com essas características. Já se passaram quase três anos da data da assinatura do contrato e ainda esse plano não existe”.
Mas a Transinsular não investe por considerar que se o fizer, a outra parte que detém os 49% da CV Inter-ilhas teria também que fazer o mesmo, nem que fosse através de um aval do Estado. “Sem activos, o dia em que a Transinsular resolver ir embora ficaremos a ver navios, ou seja, teremos que ir fretar novas embarcações para garantir as ligações de cabotagem”, alerta a fonte do A NAÇÃO.
Problema “praticamente resolvido”
As dificuldades em matéria de ligações marítimas regulares entre as diversas ilhas, com destaque para São Nicolau, Maio, Fogo e Brava, “já estão a ser ultrapassadas” assegurou ao A NAÇÃO o director de comunicação da CV Inter-ilhas, Carlos Dias.
O mesmo garantiu que os navios Dona Tututa e Inter- -ilhas estão a navegar desde segunda-feira.
“Temos o Praia d’Aguada e o Kriola em doca. O Kriola teve uma avaria por acidente e o Praia d’Aguada teve uma avaria na máquina, mas, entretanto, tem que fazer uma inspecção. Pretendemos que o navio Liberdadi faça a substituição do Kriola, mas aguardamos a certificação do Instituto Marítimo Portuário (IMP)”.
Perguntado quando é que será resolvido esse problema de ligações marítimas, Carlos Dias afirmou que “neste momento está praticamente resolvido e o problema da Brava e do Maio ficou resolvido com a reparação do navio Inter- -ilhas”.
A vetustez da frota é apontada como uma das principais razões da situação de interrupção das ligações marítimas.
Carlos Dias admite, também, que esse é um dos principais problemas da CV Inter-ilhas, mas escusou-se a comentar sobre a necessidade de se cumprir o contrato de concessão dos transportes marítimos de passageiros e cargas, no que tange à aquisição de embarcações com menos de 15 anos e que possam alcançar uma velocidade de 15 nós.
“Os navios, sendo novos ou velhos, precisam de manutenção contínua. É normal haver uma avaria ou outra”.
Mas, sobre a renovação da frota, preferiu não falar, alegando que trata-se de uma questão mais estratégica da empresa. Tentamos contactar o PCA da CV Inter-ilhas, Jorge Maurício, mas este não atendeu o nosso telefonema e nem retornou a chamada.
Concurso atribulado
O Governo lançou, a 30 de Janeiro de 2018, um Concurso Público Internacional, por prévia qualificação, com o objectivo de seleccionar um parceiro estratégico, com know-how comprovado no sector dos transportes marítimos, para fazer a gestão e exploração do Serviço Público de Transporte Marítimo de Passageiros e Carga Inter- -Ilhas.
A 5 de Março, a Unidade de Acompanhamento do Sector Empresarial do Estado (UASE) recebeu oito processos de empresas nacionais e internacionais manifestando interesse no concurso.
Para esta fase, manifestaram interesse oito empresas e consórcios: Palm Shipping Lines/Tschudi Ship Management; Moura Company; Polaris; CV Line Transporte Marítimo; Transinsular SA/ Transinsular Cabo Verde; Lobal Kings International Consulting/ China Marine Service Company; West África Shipping Line/ANEC Lines SA/ Marlow Navigation CO; Cabo Verde Fast Ferry.
Foram, no entanto, excluídas quatro empresas interessadas, por parte do júri: a Palm Shipping Li- nes/Tschudi Ship Management e a Polaris, a Cabo Verde Fast Ferry e China Marine Service Company.
Envolto em polémica desde o início, o concurso público internacional ganho pela Transinsular chegou a ser alvo de tentativas de impugnação por parte de empresas que também estavam interessadas no serviço.
A concessão que inicialmente era em regime de exclusividade, depois de muita polémica, passou a ser aberta. Isto permitiu a participação de oito armadores nacionais no capital social da CV Inter-ilhas.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 745, de 09 de Dezembro de 2021