Por: Valdemiro Tolentino
1.Introdução
Os acontecimentos, primeiro, na Câmara Municipal de São Vicente, e, depois, na Câmara Municipal da Praia, vieram pôr a nu, por um lado, o desconhecimento quase geral e/ou a interpretação distorcida do papel que cabe ao Presidente da Câmara no funcionamento da autarquia local.
Várias razões contribuem para isso. Uma prática de exercício de poder com maioria na Câmara de apoio “cego ou quase” ao Presidente, levou a que se possa pensar e que ele julgue que é “Senhor Absoluto”, com as derivas que daí decorrem.
Por outro lado, constatamos um evidente desconhecimento do teor dos preceitos legais que devem/deveriam suportar a acção dos eleitos municipais, cada um pretendendo ser o Grande Conhecedor da Lei e da sua aplicação, sendo que para isso também muito contribui uma formulação nem sempre coerente, para não dizer ambígua, dos diplomas legais concernentes.
Mas, acima de tudo, o que se constata é um cada vez maior afastamento do princípio de um exercício colegial que pressupõe a participação efectiva, ampla e inclusiva de todos os eleitos para um exercício de poder pessoal, selectivo e discriminador de uns (os “mais”) em relacção aos outros (os “menos”) e que a Constituição da República e a Legislação Autárquica existente, claramente, contrariam.
Acresce a ausência de acções formadoras e informativas por parte dos Partidos Políticos que atiram os eleitos municipais à sua sorte.
Finalmente, de referir o papel “pouco activo “da Comunicação Social Pública” que, correndo atrás dos acontecimentos e padecendo de insuficiências conhecidas, não contribui para o devido esclarecimento da população cabo-verdiana.
Repare-se que tal tema foi objecto dum único debate “curto” e “enviesado” pela Comunicação Social Pública a 10 de Julho e isso só quando a Câmara da Praia foi “atingida”, sabendo-se que o assunto já corria nos corredores da Câmara de São Vicente, desde finais de Abril.
A questão subjacente e não tratada é a do papel e atitude do Presidente de Câmara no órgão Câmara Municipal.
Pensamos que uma viagem pelo que foi a legislação, do tempo colonial e do pós-independência até o aparecimento do poder local eleito democraticamente, seja conveniente para se entender o momento actual.
2. Papel do presidente da Câmara Municipal no tempo colonial
A 15 de Novembro de 1933, o Governo Colonial, através da Reforma Administrativa Ultramarina, introduziu a figura de corpos administrativos e, dentre eles, a Câmara Municipal.
Na SECÇÃO IV Do funcionamento dos corpos administrativos estabelecia que:
Art. 435 º os corpos administrativos reúnem-se e deliberam nos edifícios e salas especialmente destinados para as suas sessões, salvo o caso de justo impedimento, que será anunciado previamente por editais. Qualquer novo local de reuniões será indicado com uma antecipação nunca inferior a três dias.
Art. 436.º Os corpos administrativos não podem deliberar sem que esteja presente a maioria dos seus membros. As deliberações só podem ser tomadas depois de declarada aberta a sessão e antes de haver sido encerrada.
Art. 437.º As sessões dos corpos administrativos são públicas.
Art. 442.º As deliberações dos corpos administrativos são tomadas por maioria de votos dos vogais presentes.
§ único. No caso de empate o presidente tem voto de qualidade.
Art. 443.º As deliberações são tomadas em votação nominal.
§ 1. º serão tomadas por votação com escrutínio secreto todas as deliberações que envolverem apreciação do mérito de qualquer pessoa e nomeação ou demissão de funcionário ou empregado.
§ 2. Quando haja empate em votação por escrutínio secreto, proceder-se-á imediatamente a nova votação; havendo ainda empate, ficará o assunto adiado para a sessão seguinte; se da primeira votação que nesta se fizer ainda resultar empate, terá o presidente dois votos.
Art. 444.º Os vogais dos corpos administrativos não podem assistir à parte das sessões em que forem tratadas questões que lhes digam respeito ou que interessem, quer a pessoas e entidades que dirijam ou representem, quer a seus parentes consanguíneos ou afins até ao terceiro grau.
Art. 445.º Nenhum vogal pode escusar-se de votar ou deliberar em qualquer assunto que em sessão for tratado, salvo caso de impedimento legal.
§ único. Todos os membros dos corpos administrativos podem justificar resumidamente o voto que derem.
No seu artigo 489º Regras gerais sobre a organização e funcionamento estipulava que “As câmaras municipais são compostas por um presidente nomeado pelo Governador Geral ou de colónia e por quatro vogais eleitos.
No seu artigo 491º “Sendo funcionários, os presidentes poderão desempenhar o seu cargo municipal por acumulação com o seu lugar público.
Art. 495 º A câmara municipal remeterá com ofício, à administração do concelho, uma cópia da acta de cada sessão, até três dias depois de aprovada a respectiva minuta, e terá durante oito dias, na sua secretaria, cópia idêntica à disposição de quem a quiser examinar.
Art. 496.º Os membros das câmaras municipais assumem, pelo simples facto da posse, responsabilidade pela gerência dos bens, títulos, valores e rendimentos do município, ficam obrigados a indemnizá-las nos casos de extravio ou dissipação, de falta de arrecadação de rendimentos legalmente criados e de cobrança ilegal de receitas, sempre que haja falta imputável.
No seu artigo 497º As funções das Câmaras municipais distribuem-se em pelouros; a cada um dos vogais da câmara será atribuído seu pelouro próprio, pelo que lhe cumpre executar as deliberações que se tomarem, respeitando-se a competência especial do presidente.
Art. 498 º Ao presidente da câmara municipal pertence executar e fazer executar as deliberações que não deverem ser cumpridas por qualquer pelouro.
A conclusão que se pode extrair da leitura das determinações anteriores é a de que, no tempo colonial, o Presidente da Câmara, que exercia a função em part-time, detinha poderes reduzidos e estava ao serviço da mesma, nunca a “substituindo”, antes pelo contrário. Ele, Presidente da Câmara, sujeitava-se às decisões da mesma e só agia nas áreas não objecto da acção dos vereadores efectivos.
Ao mesmo tempo, sendo as sessões da Câmara públicas e as actas de acesso livre, o exercício da função camarária ganhava em transparência, contrariamente ao quase secretismo que envolve a actuação actual.
3. Papel do presidente da Câmara Municipal no pós independência
No pós-independência, são criados, por Decreto Lei nº 58/75 de 13 de Dezembro, como órgãos de Administração Municipal, um Conselho Deliberativo e um Secretariado Administrativo. Ele estipulava que:
O Conselho Deliberativo era constituído por cidadãos nomeados por despacho do Primeiro Ministro.
Reunia-se, ordinariamente, uma vez em cada quinzena e extraordinariamente sempre que necessário por convocação do Delegado da Administração Interna.
O Conselho Deliberativo não poderá reunir sem que estejam presentes pelo menos dois terços do número legal dos seus membros. Ele decide por maioria simples dos seus membros. As votações são sempre nominais, não sendo permitidas abstenções.
Das reuniões do Conselho Deliberativo serão lavradas actas, redigidas pelo Secretário Administrativo e assinadas por todos os membros. Extractos das actas, contendo deliberações de interesse geral, serão afixados nos locais mais frequentados e divulgados pela imprensa falada e escrita.
No seu art.18º estabelece que “Sob directa superintendência do Delegado da Administração Interna, o Secretariado Administrativo é dirigido pelo respectivo Secretário que coordenará o trabalho das secções e distribuirá tarefas pelos funcionários como for mais conveniente para o eficaz andamento dos serviços.”.
O art. 29º estipula que o Delegado da Administração Interna é responsável perante o Governo e perante o Conselho Deliberativo, que poderá anular ou modificar actos daquele.
O Delegado de Administração Interna é assim o equivalente ao Presidente da Câmara do tempo colonial.
Ainda que profissional a tempo inteiro não lhe competia dirigir a acção prática deste órgão que, por lei, incumbe ao Secretário Administrativo.
Contudo, e aos poucos, os Delegados da Administração Interna foram progressivamente assumindo funções directas no quotidiano do órgão, subalternizando progressivamente o papel do Secretário Administrativo na sua direcção.
As reuniões deixaram de ser públicas, mas a divulgação das suas deliberações era mais efectiva que o actual secretismo das deliberações camarárias.
4. Que enquadramento das competências do presidente da Câmara e da Câmara Municipal?
Feito o percurso legal da competência e da evolução da acção quotidiana da figura Presidente da Câmara no passado, chegamos aos tempos actuais.
As competências do Presidente da Câmara Municipal resultam da sua condição de ser, à partida, por lei, vereador efectivo da Câmara enquanto que os outros vereadores eleitos poderão sê-lo ou não.
Citando Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, ao Presidente de Câmara é atribuída:
a) Função Presidencial: consiste em convocar e presidir às reuniões da Câmara, e em representar o município, em juízo e fora dele
b) Função executiva: cabe-lhe executar as deliberações tomadas pela própria Câmara;
c) Função decisória: compete-lhe dirigir e coordenar os serviços municipais – como superior hierárquico dos respectivos funcionários – e resolver todos os problemas que a lei lhe confie ou a Câmara lhe delegue.
Mas não se pode esquecer que a Câmara Municipal é um órgão colegial executivo a quem está atribuída a gestão permanente dos assuntos municipais, sendo assim o corpo administrativo do município.
Segundo o mesmo autor” a Câmara Municipal está em sessão permanente. A sessão é o período especial em que se efectuam as reuniões; as reuniões são os encontros que em cada dia se verificam”.
As competências ditas “próprias “do Presidente, são competências de caracter individual, ditadas pela lógica organizativa do órgão colectivo que não poderiam ser objecto de decisão, caso a caso, situação a situação, pela Câmara. São competências que, por serem quotidianas, tem que ser realizadas por um executor permanente, no caso, primeiro vereador efectivo, designado Presidente. Em nosso entender tão somente isso.
De notar que no tempo colonial, o Presidente da Câmara não era executivo a tempo inteiro.
O mesmo autor atribui três tipos de funções para a Câmara Municipal:
a) Função preparatória e executiva: a Câmara prepara as deliberações da Assembleia Municipal e, uma vez tomadas, executa-as;
b) Função de gestão: a Câmara gere o pessoal, os dinheiros e o património do município, e dirige os serviços municipais;
c) Função de decisão: a Câmara toma todas as decisões de autoridade que a lei lhe confia, através da prática de actos administrativos definitivos e executórios (licenças, autorizações, adjudicações, etc) e de contratos administrativos (empreitadas, concessões, fornecimentos, etc.).
A forma de exercício da competência da Câmara Municipal que constitui a regra é a do exercício colectivo pela Câmara, reunida em colégio.
Resulta assim claro o quadro de intervenção, quer da Câmara Municipal, quer do Presidente da Câmara.
E isto com o primado do princípio fundamental da democracia que é a decisão da maioria, contrário a pretensões de acção individual, sem qualquer base política e legal.
5. A designação de vereadores profissionais na Câmara Municipal
Quanto à designação de vereadores, o Estatuto dos Municípios (EdM), Artigo 88º (Vereadores em regime de permanência) estabelece que “Quando as necessidades da gestão municipal o justifiquem, poderá a Assembleia Municipal, sob proposta da Câmara, fixar o número de Vereadores que exercem funções a tempo inteiro ou a meio tempo e estabelecer a sua remuneração, que não pode ser, em caso algum, igual ou superior à do Presidente da Câmara.
Como se pode ler é a Assembleia Municipal que fixa. Mas essa fixação é feita mediante proposta da Câmara. Assim sendo, qual é o papel do Presidente da Câmara neste processo?
O EdM estabelece, no Artigo 98º (Competência) 1. Compete ao Presidente da Câmara Municipal como órgão executivo: k) Escolher os Vereadores a tempo inteiro ou a meio tempo e estabelecer as suas competências;
Da conjugação dos artigos 88º e 98º se pode deduzir que, cabe ao Presidente escolher vereadores e fixar as suas competências, mas, tal escolha, tem que ser assumida pela Câmara visto que é ela quem faz a proposta à Assembleia que, por sua vez, fixa, em definitivo, o número e o salário respectivo .
Com suporte de maioria na Câmara Municipal (CM) e na Assembleia Municipal (AM), a proposta inicial do Presidente acaba sendo definitiva.
Mas sem maioria na CM, o Presidente “tem” que, primeiro, conseguir a aprovação na CM. Se não consegue, como é que fica o assunto? Está claro que, para haver vereadores em regime de permanência, isso só se pode verificar, primeiro, com a aprovação da Câmara, o que quer dizer, da sua maioria e, segundo, com deliberação da Assembleia Municipal.
Julgo ser assim claro que o Presidente da Camara não tem o poder absoluto de propor e remover os vereadores a seu belo prazer e …já agora …humor.
Tipo quando se zanga, sai uma desprofissionalização, quando está contente ou quer obter “a graça” dum vereador, sai uma profissionalização.
Temos que aceitar estarmos perante um poder inicial do Presidente que faz a proposta, mas, intermediado pela Câmara Municipal, que a deve aprovar (podendo tal significar a aceitação/alteração/negociação da mesma) para a enviar à aprovação final da Assembleia.
Estamos assim perante um poder de ”iniciativa“ do Presidente, intermediado pelo poder da Câmara e condicionado à aprovação e decisão final da Assembleia Municipal.
Ao fim e ao cabo, estamos perante a questão fundamental do bom senso que deve(ria) primar na gestão da coisa pública, neste caso, das autarquias, as tais “necessidades da gestão municipal” de que fala a lei.
Lamentavelmente, a profissionalização de vereadores tem sido um mero instrumento de troca de apoio político.
6. Papel do presidente da Câmara como Órgão Executivo
O que escrevi no ponto 5. procurou demonstrar o papel “relativo” do Presidente da Câmara Municipal e enquadrar o peso que deve ter na Administração Municipal.
Com o exemplo dos vereadores em regime de permanência, procurei desfazer a narrativa do Presidente Dono e Senhor da Câmara Municipal.
Ao fazer isso, penso que bom será para todos um adequado entendimento das estruturas político-administrativas e seu funcionamento.
Quando se fala do Presidente da Câmara, o Artigo 98º (Competência) diz que 1. Compete ao Presidente da Câmara Municipal como órgão executivo:
a) Representar o Município em juízo e fora dele;
b) Executar as deliberações da Câmara Municipal;
Ou seja, a lei estabelece como segunda competência do Presidente “Executar as deliberações da Câmara Municipal”.
A lei impõe, a nosso ver, um Presidente ao serviço da Câmara,” mandode” pela Câmara e não um Presidente “que manda e dispõe como quer da (e na) Câmara”.
E para aqueles que “esboçam” dúvidas, é ler o Artigo 92º (Competência) 2. Compete à Câmara Municipal, no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços, bem como no da gestão corrente:
d) Nomear, contratar, assalariar, promover, transferir, aposentar e exonerar o pessoal, salvo disposição legal em contrário;
e) Organizar os serviços municipais, fixar os respectivos quadros de pessoal e estabelecer as normas necessárias ao seu bom funcionamento;
q) Ratificar, modificar ou revogar, nos termos da lei, os actos praticados pelo Presidente da Câmara Municipal ou por funcionários ou agentes municipais.
Por isso , se há quem pode tudo na Autarquia Local não é o Presidente da Câmara, mas sim, os seus órgãos representativos indicados pela Constituição da República, a Assembleia Municipal e a Câmara Municipal, no exercício das suas competências legais, através das suas deliberações, adoptadas com a maioria dos votos dos seus membros.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 739, de 28 de Outubro de 2021