O cemitério de Nhagar, no concelho de Santa Catarina, está a rebentar pelas costuras. Os coveiros dizem que arranjar covas para novos sepultamentos tem sido uma dor de cabeça constante. A Câmara Municipal avança que já está a negociar com a Igreja Católica, que é proprietária dos terrenos à volta do cemitério, no sentido de ampliar o espaço. Até lá, o desafio é gerir o pouco espaço que resta no mais antigo “campo santo” de Santa Catarina.
O cemitério de Santa Catarina, situado na zona de Nhagar, está quase sem espaço para novas sepulturas. Conforme os coveiros ouvidos por esta reportagem, o pouco espaço que resta situa-se em cima de um rochedo e não dá para formar novos côvados.
Falta de espaçamento e desrespeito pelos sepultados
Diante disso, sempre que há um novo sepultamento o desafio passa por encontrar algum espaço entre os túmulos já existentes, o que nem sempre é fácil.
Isto com o agravante de essa situação paliativa andar a criar outros constrangimentos na hora dos funerais e não só.
Isto é, a desorganização, a falta de alinhamento e espaçamento entre as covas têm deixado o “campo santo” de Assomada sem espaço para a circulação de pessoas, daí o espectáculo, por vezes, degradante de ver gente a passar por cima das covas, nos momentos de funerais, sem qualquer respeito pelos sepultados.
Conflitos com coveiros e entre famílias
Por outro lado, a falta de espaço entre as covas tem criado dificuldades e problemas às famílias que queiram construir as suas campas ou até mausoléus.
Conforme os coveiros, por vezes, surgem conflitos entre eles e as famílias, mas também entre famílias diferentes, uma vez que na execução de certas tarefas há quem acabe por danificar a campa do outro.
Problemas antigos: caos e desordem
Manuel Furtuoso da Moura, “Furtuoso”, coveiro há 25 anos, diz que a desordem e o caos no cemitério de Nhagar são males antigos e difíceis de solucionar, tendo em conta o ponto a que a situação chegou.
“Isso ficou assim porque antigamente não havia coveiros fixos a trabalhar no cemitério. Quando alguém morria arranjava-se quatro homens da comunidade para ir fazer a cova para o enterro.
Tradicionalmente, os homens traziam um groguinho para servir de ‘remédio de coragem’ e para limpar a garganta e o nariz de imundícies. E, uma vez embriagados, faziam covas de qualquer maneira, onde lhes apetecia e da forma mais fácil”, explica.
“Cada chefe que entra vem com a sua ordem”
Um outro problema, segundo Furtuoso, tem a ver com os critérios utilizados pelos sucessivos responsáveis do cemitério na gestão do espaço existente.
“Cada chefe que entra vem com a sua ordem. Escolhe a forma de atribuir covas, conforme o grau de amizade com o falecido ou parente do morto. Se o defunto for alguém da zona dele ou pessoa famosa, o chefe procura sempre arranjar cova num local privilegiado, sobretudo mais próximo da porta de entrada, para impressionar os familiares do morto.
O resultado é hoje estarmos quase sem lugar para circular em segurança dentro do cemitério, sobretudo quando transportamos o caixão em funerais com muita gente”, lamenta.
Ampliação do cemitério
Sem grandes formações académicas, mas observador de certas coisas da vida, Furtuoso entende que o problema de falta de espaço no cemitério de Nhagar só se resolve com a sua ampliação e a devida definição da área de ocupação.
Em cima dessa capacidade indica o caminho a seguir, por quem de direito.
“Ainda há algum espaço disponível nas duas laterais do cemitério, mas dizem que o terreno pertence à Igreja Católica. As autoridades devem negociar esses terrenos no sentido de ampliar o cemitério, antes que sejam loteados para a construção de moradias.
Ou então construir um novo cemitério na Achada Falcão para servir a cidade Assomada e as zonas mais próximas. Caso contrário, deve-se suspender a venda de covas, até porque há famílias com duas ou três compradas”.
Melhores condições de trabalho
Eusébio Fernandes, também coveiro há 25 anos, pede uma melhor atenção por parte das autoridades municipais e das pessoas em particular em relação ao trabalho dos coveiros.
“Eu e o Furtuoso começámos a trabalhar aqui em 1996, juntamente com o Juvino Coveiro, no tempo do presidente Pedro Freire.
Desde então, muita coisa mudou, mas o nosso salário e o subsídio que nos dão, juntos, não chegam aos 20 mil escudos.
Quase todos os que chegam aqui, autoridade ou particular, sentem-se no direito de mandar em nós, ou até de nos injuriar, sem saber das dificuldades que enfrentamos para fazer o nosso trabalho”.
Eusébio pede que a Câmara Municipal de Santa Catarina (CMSC) forneça materiais de trabalho aos coveiros com mais regularidade.
“Precisamos de novos fardamentos completos, nomeadamente fatos de macaco, botas, luvas, máscara de filtro e capas de chuva.
Como é sabido, trabalhamos num local onde podemos facilmente ser contaminados, por isso gostaríamos de não levar a nossa roupa de trabalho suja para casa e com isso colocar a saúde e a vida dos nossos familiares em risco”, alerta.
Iluminação e outra solução para o lixo hospitalar
A iluminação do cemitério é uma outra reivindicação dos coveiros.
“Antes havia iluminação pública, o que nos facilitava os trabalhos à noite, quando somos chamados para enterrar corpos que por vezes aparecem em avançado estado de decomposição.
Mas, sem luz, temos que nos desenrascar com as luzes dos telemóveis”, diz Furtuoso.
Este coveiro pede ainda que seja dado outro tratamento ao lixo hospitalar que é enviado para ser enterrado no cemitério.
“Deve-se escolher uma zona específica para enterrar esses lixos que são perigosos. Muitas vezes, ao fazer covas, encontramos esses lixos que demoraram a decompor. É cada cena que as pessoas não imaginam”.
Venda ilegal de covas
Dos vários problemas existentes, A NAÇÃO conseguiu apurar junto de algumas pessoas que no cemitério Nhagar existe um “esquema” de venda e construção ilegal de covas, que conta com a anuência das sucessivas chefias do cemitério.
“Há muitas covas clandestinas no cemitério que são construídas da noite para o dia. Há pessoas, sobretudo emigrantes, que, às vezes, por falta de conhecimento pagam aos chefes de serviços de cemitérios para obter covas, mas sem nenhum documento da Câmara”, explica uma fonte.
Vladimir Brito, vereador de Santa Catarina Ampliação do cemitério de Nhagar é para este ano
O vereador do Ambiente, Saneamento e Proteção Civil de Santa Catarina, Vladimir Brito, diz que a Câmara Municipal de Santa Catarina (CMSC) tem conhecimento que o cemitério de Nhagar está cheio e que há necessidade de tomar algumas medidas.
“Devo informar que um dos projectos que trazemos do anterior mandato é trabalhar na ampliação do cemitério de Nhagar. Isso ainda não foi feito porque o terreno circundante do cemitério não pertence à Câmara Municipal, mas sim à Igreja Católica”.
Negociações com Igreja Católica
Brito explica que a Câmara já está a negociar com a Igreja no sentido de ampliar o cemitério.
“O plano de urbanização, que a própria igreja fez do seu terreno, contempla a ampliação do cemitério no espaço que fica ao lado da bomba de combustível. Para além de espaços para mais covatos, o projecto prevê espaços para velórios, nomeadamente capela no cemitério. Com isso, deixará de haver a necessidade para cortejos fúnebres no centro da cidade, o que congestiona o trânsito”.
Brito assegura que a ampliação do cemitério é para este mandato. “No orçamento que vamos apresentar no dia 14 e 15 deste mês de Setembro, o projecto de ampliação e remodelação do cemitério de Nhagar já está contemplado. Os trabalhos vão avançar para dar respostas aos anseios dos filhos de Santa Catarina dentro e fora do país”.
Venda de covas suspensa desde 2016
O vereador assegura que a CMSC vai fazer o mapeamento de todo o cemitério, através de um sistema integrado de gestão, para evitar certos constrangimentos que possam surgir no futuro.
“Sabemos que muitas pessoas têm anseio de ter o covato familiar perpétuo. Antes de fazer a ampliação, vamos fazer um mapeamento para saber quem tem covas compradas no cemitério e onde estão essas covas. Por isso temos a concessão de covas perpétuas suspensas desde 2016 para poder identificar as covas existentes e em que situações se encontram”.
Vladimir Brito assegura que a autarquia tem uma base de dados com todos os alvarás passados pela Câmara Municipal. E revela que a edilidade tem recebido muitos pedidos de venda de covas, principalmente por parte dos emigrantes.
“Neste momento não estamos a fazer concessão perpétua para poder fazer uma melhor gestão. Até porque há uma perceção que existem mais covas compradas do que as que estão por utilizar em domínio público”, admite.
Suspeições sobre covas alegadamente compradas
Entretanto, Brito apela às famílias que pretendam comprar covas para se dirigirem aos serviços da CMSC, nomeadamente à Direcção de Ambiente e Saneamento ou ao Gabinete Técnico, para se informarem sobre o que devem fazer antes de fazer qualquer tipo de negócios ou trabalho.
“Estamos cientes que qualquer actividade humana está sujeita a riscos. Por isso lanço este alerta para fazermos as coisas como devem ser. Isto porque, quando as coisas não correm bem, procura-se culpar a Câmara.
No passado tivemos casos de pessoas que alegaram terem comprado covas, mas não conseguiram provar porque não tiveram documentos emitidos pela Câmara. No meu mandato ainda não tenho conhecimento de nenhum caso do género. Mas se vier a acontecer, as responsabilidades serão assacadas.
Não pactuamos com ilegalidades”, garante. Vladmir Brito assegura que todas as pessoas que possuam covas compradas legalmente possuem alvará e croquis. Documentos estes que devem ser exibidos nos serviços camarários sempre que pretendam fazer algum trabalho nos quatro cemitérios municipais, designadamente em Nhagar, Rincão, Ribeira da Barca e Figueira das Naus.
No que tange aos equipamentos para os funcionários o vereador garante que sempre que possível entrega os equipamentos básicos aos trabalhadores de cemitérios. “A Câmara é consciente da importância do trabalho dos coveiros”, conclui.
Coveiro com orgulho
Manuel Furtuoso da Moura, “Furtuoso”, coveiro há 25 anos, no cemitério de Nhagar, diz-se orgulhoso da sua profissão e por isso procura fazer o seu trabalho com “muito profissionalismo”.
A vida e a profissão ensinaram a este santa-catarinense que até na hora da morte há diferença de tratamento entre as pessoas. Só que, uma vez enterrados, essa diferença deixa de existir.
“Esta não foi a profissão que sonhei, mas é o que faço há 25 anos com dignidade. Com o pouco que ganho sustento os meus filhos”, afirma, quando espicaçado pelo A NAÇÃO.
“Infelizmente, os coveiros e o pessoal de saneamento são classes profissionais menos valorizadas, para não dizer mais desprezados pela nossa sociedade. E, por ironia do destino, as pessoas que se sentem poderosas no momento mais difícil das suas vidas, ou dos seus familiares, vão precisar dos nossos serviços.
Aqui já enterrei ladrão, polícia, médico, professor, agricultor, políticos e até presidentes.
Portanto, se não fosse nós, muitos teriam que despir fatos para enterrar o seu ente-querido. Por isso pedimos mais respeito por aquilo que fazemos”.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 732, de 09 de Setembro de 2021