Ainda que provisórios, os números do último censo demográfico surpreenderam a generalidade dos cabo-verdianos habituados a lidar com os fenómenos da população. Incompetência do INE?… Manipulação?… A grande pergunta é o que terá acontecido aos mais de 60 mil cidadãos que o quinto Recenseamento Geral da População e Habitação (RGPH-2021) deveria revelar, seguindo uma tendência de crescimento populacional desde 1950.
As expectativas apontavam para uma população acima de 550 mil pessoas no país, mas os dados preliminares do quinto RGPH-2021, feito pelo INE, indicam para uma diminuição de 491.683 habitantes em 2010, para 483.628 em 2021, ou seja, 67 mil indivíduos.
Esse mesmo levantamento permitiu recensear, em quatro unidades estatísticas, 498.063 indivíduos, 145.952 agregados familiares, 150.016 edifícios e 200.979 alojamentos.
Recuo de 70 anos
Contudo, é preciso recuar 70 anos para se verificar uma situação similar de perda de população em Cabo Verde. Nessa altura, a população residente na então colónia portuguesa registou uma diminuição de 171.840 habitantes em 1940, para 149.984 em 1950. Essa redução foi justificada pelas fomes da década de 40, que dizimaram milhares de cabo-verdianos.
Mas entre 2010 e 2021 não houve nenhum fenómeno extraordinário que justificasse a quebra acentuada da população residente indicado pela V RGPH-2021. Pelo contrário, dado o ritmo de crescimento populacional vários documentos, inclusive do próprio INE, além das Nações Unidas e outras entidades, tinham há muito como seguro que a população cabo-verdiana estava acima dos 550 mil indivíduos.
Outro dado relevante é que, pela primeira vez, há mais homens do que mulheres em Cabo Verde, menos nos 9 concelhos de Santiago, onde as mulheres estão em maioria. Em 2010 havia 243.403 (49,5%) homens contra 248.280 (50,5%) mulheres e agora, com os dados de 2021, houve praticamente uma inversão dos números: 243.047 (50,3%) homens e 240.581 (49,7%) mulheres. Ou seja, nesses últimos 11 anos Cabo Verde teve uma redução de 356 indivíduos do sexo masculino e uma diminuição de 7619 do sexo feminino.
Falta de liderança
Esses resultados espelham, segundo especialistas contactados por A NAÇÃO, “uma falta de liderança” no processo. É que por aquilo que se pôde acompanhar na comunicação social, “não se ouviu o presidente do INE a falar sobre este censo”.
Um dos nossos interlocutores diz que, como se faz noutras paragens, o presidente do INE encontrou-se com o chefe de Estado, Jorge Carlos Fonseca, permitindo que este fizesse uma declaração à Nação, quando essa oportunidade deveria ser aproveitada também pelo responsável máximo do INE para tecer algumas considerações sobre o processo.
Porém, quando confrontado pelos jornalistas, Osvaldo Borges disse na ocasião que, por uma questão protocolar, não iria falar.
Entretanto, nesse dia, quem falou foi o vice-primeiro-ministro, Olavo Correia, que discorreu sobre os objectivos do censo.
“O presidente do INE não deveria permitir que o Governo se pronunciasse sobre uma questão que não é política”, porquanto as operações estatísticas “não podem ser politizadas” e “muito menos governamentalizadas”, comenta o nosso interlocutor.
Protagonismo de Olavo Correia
Outrossim, num encontro com os parceiros, a três dias do início do V RGPH-2021, quem também falou à imprensa foi, uma vez mais, o vice-primeiro-ministro e não o presidente do INE.
Esse alegado excesso de protagonismo de um membro de Governo, em detrimento do responsável do INE, na óptica da nossa fonte, terá provocado algumas confusões, entre outros problemas que acabaram por afectar o normal andamento dos trabalhos no terreno.
“Foi possível perceber, através das redes sociais, um certo receio das pessoas em relação ao censo, por pensarem que os dados seriam encaminhados para o Governo ou para o NOSi”, explica um dos especialistas ouvidos pelo A NAÇÃO. Este considera que o INE deixou o Governo liderar o processo, “isso é perigoso e tem as suas consequências”.
Polémica em torno do Cadastro Social Único
“Também tivemos eleições legislativas em Abril e toda gente sabe qual foi a polémica em torno do Cadastro Social Único.
E foi o próprio INE que disse que estavam com problemas na operacionalização do censo, porquanto as pessoas estavam a confundir esse inquérito com o Cadastro Social Único”, enfatiza o nosso interlocutor que afirma que, como isso, “se passou uma mensagem extremamente negativa para as pessoas que ainda não se tinham recenseado”.
Do ponto de vista técnico, um outro especialista contactado por A NAÇÃO diz claramente que não acredita na redução da população em Cabo Verde.
“Há uma omissão no processo de recolha”, afirma, da mesma forma que diz não acreditar na inversão da masculinidade no país. “Até porque foi feito, em 2017 ou em 2018, um inquérito demográfico e de saúde reprodutiva, que, para além de fornecer todos os indicadores demográficos, é um documento fundamental para ajustar a projecção demográfica”, explica o nosso interlocutor afirmando que esse outro inquérito “não mostrou essa tendência de inversão da masculinidade”.
Outros factores
Para além da questão da governamentalização, outros factores terão contribuído para o alegado insucesso do V RGPH-2021. Um dos quais o facto de as pessoas terem considerado que o censo foi “invasivo”, principalmente em relação ao nome que era solicitado aos inquiridos.
Nisso houve quem tivesse perguntado se a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) tinha conhecimento desse aspecto e se essa instituição tinha dado aval ao INE para esse fim.
Diante disso, só no dia 2 de Julho, logo após o fim do prazo da realização do censo, é que o presidente da CNPD, Faustino Varela, e o presidente do INE, Osvaldo Borges, vieram a público, numa conferência de imprensa, tranquilizar os cidadãos a esse respeito.
“Não se pode fazer um censo de forma reactiva”, realça o nosso interlocutor que considera que deve haver uma estratégia de sensibilização e comunicação, que “tem de ser implementada com muita antecedência em relação à data da realização do censo”. “Claramente, a comunicação não funcionou”, conclui.
Mas o nosso interlocutor ressalva que na busca das razões há que ter em conta o facto de se ter realizado um censo, pela primeira vez, em contexto de pandemia.
“Acredito que a questão da pandemia terá afectado, igualmente, o INE no processo de recolha de dados”.
Silêncio do INE
Para esclarecer estas e outras constatações, além de questões laborais, este jornal tentou ouvir o presidente do INE, Osvaldo Borges, não atendeu os nossos telefonemas e tão-pouco respondeu à nossa mensagem.
Instabilidade interna afecta INE Quadros colocados na prateleira
Como é do conhecimento público, o INE tem passado por situações de instabilidade por causa de questões laborais.
Recentemente, os trabalhadores endereçaram uma carta ao ministro Olavo Correia solicitando a demissão dos membros da administração do INE, “por incapacidade e outras coisas”.
Nesse meio tempo houve, também, três manifestações, além de duas greves, duas reuniões de conciliação na Direcção Geral do Trabalho e, na última reunião, quem participou foi a ministra da Administração Pública, Edna Oliveira, “quando, na verdade, as questões relacionadas com o PCCS requerem uma liderança da instituição.
Não é o Governo que vai defender o INE nas questões do PCCS, é a administração da instituição”, disse uma fonte ao A NAÇÃO.
Também, de acordo com as fontes deste jornal, tendo em conta o clima de instabilidade laboral, “foi criada uma equipa praticamente paralela onde os técnicos experientes do INE, entre os quais demógrafos e estatísticos, que foram deixados de fora do processo, com receio de os mesmo promoverem uma manifestação à última hora e que pudesse bloquear o censo”.
Ainda de acordo com um técnico do INE, nas vésperas do arranque do RGPH-2021, o director de Métodos e Gestão de Informação, Carlos Mendes, “pediu demissão” e a directora de Estatísticas Demográficas e Sociais, Noemi Rute, “foi demitida” no decorrer do censo.
“Desaparecimento” de jovens entre 20 e 24 anos
A coordenadora técnica do Censo 2021, Maria de Lurdes, afirmou que, “globalmente”, a diminuição muito grande da população de 20 a 24 anos em relação a 2010 “pode ser devido a mortalidade por causas violentas ou saída de jovens para o exterior para estudos ou à procura de trabalho”.
Mas, como a própria admitiu também, “tudo isso são hipóteses”, a serem confirmadas, depois, pelo INE.
Da mesma forma, “nota-se no topo da pirâmide um ligeiro aumento da população idosa em relação a 2010, que pode também ter a ver com o retorno da população idosa para Cabo Verde”.
O censo dá conta ainda do aumento de número de barracas em relação a 2010, principalmente em São Vicente, Sal, Boa Vista e Praia.
De modo geral, o quinto recenseamento aponta para a existência de 150.016 edifícios e 200.979 alojamentos, 145.952 agregados.
Os dados oficiais do INE sobre o RGPH-2021 indicam que a população residente em Cabo Verde diminuiu de 491.683 habitantes em 2010, para 483.628 em 2021. Este inquérito permitiu recensear 145.952 agregados familiares, 150.016 edifícios e 200.979 alojamentos.
O concelho da Praia tem 29,4% da população residente (142.009 pessoas), São Vicente 15,3% (74.016), Santa Catarina 7,7% (37.472) e Sal 6,9% (33.347). No total, 73,9% reside no meio urbano e 26,1% no meio rural e a taxa de urbanização passou de 61,8% em 2010 para 73,9% em 2021.
Sal e Boa Vista foram os que mais população ganharam nesta última década (mais 2,4% e 2,9%, respectivamente). Praia teve um crescimento de 0,7% e, em sentido contrário, Santo Antão foi a ilha que, percentualmente, mais população perdeu, com Ribeira Grande a ter menos 2,1% de pessoas, quando comparado com 2010 e Paul a ter menos 1,9%. São Miguel, em Santiago, foi o terceiro concelho que perdeu mais habitantes, menos 1,7%.
Os resultados definitivos do censo 2021 estão previstos para finais de Dezembro deste ano ou início de Janeiro de 2022.
Tentamos ouvir o presidente do INE sobre essas constatações de alguns especialistas em relação aos resultados do RGPH-2021, mas Osvaldo Borges não atendeu os nossos telefonemas e nem respondeu a nossa mensagem.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 730, de 26 de Agosto de 2021