O aviso é seguido do alerta de que, no Processo do Alargamento do Ensino Superior, “a quantidade não é sinónimo de qualidade”, pelo que, a proliferação descamba para a criação de “Escolões” e ao risco de diluição. Leccionando no Brasil há quase 30 anos, a cabo-verdiana Eugénia da Luz Silva Foster, “mesmo à distância”, vem acompanhando o Sistema Educativo no Arquipélago, estando focada, presentemente, num Projecto de Pesquisa, que envolve, além de Cabo Verde, o Brasil e a Guiana Francesa, Território que faz fronteira com o Estado onde reside: Amapá.
A NAÇÃO – Acompanha o Sistema Educativo Cabo-Verdiano?
Eugénia da Luz Silva Foster – Como cidadã cabo-verdiana, sempre estive atenta a Cabo Verde, mesmo à distância. Em termos mais específicos venho, desde 2015, aprofundando-me nos
meandros da Educação Cabo-Verdiana – em todos os níveis!, em particular, a Educação Superior, que é o meu campo principal de actuação.
Retomei esse contacto em 2019, com a previsão de retornar em 2020. Porém, a Situação Epidemiológica Mundial de COVID-19 acabou levando à suspensão dos planos de viagem para o exterior…
…e presentemente?
Estou numa fase mais avançada nesse processo, a partir da retomada e estreitamento dos contactos com escolas e universidades, no âmbito do desenvolvimento de um Projecto de Pesquisa, que venho executando e que envolve, além de Cabo Verde, o Brasil e a Guiana Francesa, País que faz fronteira com o Estado onde resido.
Em que consiste esse Projecto?
Embora comece com a Educação Básica, apresenta, entretanto, uma natureza mais ambiciosa, de médio e longo prazo. Eu e a minha Equipa temos trabalhado para que, ao longo dos anos, venhamos a englobar os outros níveis de Ensino até o Superior, passando, especialmente, pela Formação de Professores.
E isso é factível?
Com o apoio que usufruímos da Universidade brasileira e amapaense, com os recursos e infra-estrutura que são colocados à nossa disposição – aqui no Brasil!-, vai ser possível. Além, é claro, de uma Equipa de Trabalho, que envolve outros pesquisadores da área da Educação, que actuam nas universidades envolvidas.
Por outro lado, actualmente, por já estar em nível de progressão funcional mais avançado, além da experiência adquirida ao longo dos anos, no Campo da Educação, permite-me usufruir de algumas licenças, que me possibilitarão estar mais próxima e criar outro tipo de relações com os meus colegas, com o Sistema Educativo cabo-verdiano e maiores intercâmbios com outras instituições de Ensino.
Os dois lados sairão beneficiados nesse diálogo.
Período de Adaptação
Que avaliação faz da Educação em Cabo Verde?
Em todo o Processo de Mudança, realizado em qualquer Sistema Educativo, mesmo em Cabo Verde, a partir das reformas de 1990, mais tarde revistas, precisamos considerar um Período de Adaptação.
Para quê?
É imprescindível haver períodos de ajustamentos, e, não há dúvida, de que em Cabo Verde não seria diferente. Se compararmos a Educação de ontem e de hoje, vejo muitos avanços, embora tenhamos, ainda, um longo caminho pela frente.
O que está faltando?
Para uma Nação com apenas 46 anos de existência, ainda somos um bebé, comparados com o Brasil, por exemplo. Qualquer Política de Educação que adoptarmos e seus reflexos na Qualidade do Ensino, naturalmente, agora é que começará a dar os primeiros frutos. Por outro lado, não podemos esquecer que nossos recursos são limitados e o envolvimento de todos (Estado, Família, Escola, Sociedade) os que participam do Processo, é fundamental para se atingir a Qualidade desejada.
Instabilidade prejudica qualidade…
O que se deve mudar na Formação do Professor, considerada por muitos, anacrónica e desfasada da presente realidade e demandas sociais?
Os discursos prescritivos são perigosos…
Porquê?
Porque podem resvalar para saudosismos e comparações do tipo: “no meu tempo era melhor”; ou, ainda: “aqui é melhor do que aí”. Posições que são sempre parciais e que podem nos fazer perder a dimensão dos contornos históricos e do próprio contexto.
Por pior que, eventualmente, esteja hoje a Educação em Cabo Verde, por mais críticas de um suposto anacronismo que receba, não podemos comparar com o Período Colonial. Avançamos e muito. Em termos de défice formativo, o Sistema Educativo cabo-verdiano vem desenvolvendo mecanismos para sanar o problema, bem como buscando condições para contemplar as demandas sociais nos currículos. Obviamente, são mecanismos que vão se aprimorando ao longo do tempo.
Na sua Radiografia, a instabilidade docente compromete a qualidade do Ensino?
No caso de Cabo Verde, precisamos considerar as contingências que temos. Temos que olhar a nossa realidade e aquilatar as condições que o Estado oferece, em termos de vínculos mais efectivos e contratos permanentes.
Ao mesmo tempo, exige-se maior engajamento da Sociedade Civil no desenvolvimento de um Projecto de Nação, de consciência de Classe, de defesa de valores relativos à Cidadania.
O que quer dizer com isso?
Que sou plenamente favorável à luta por direitos como os de estabilidade e o reforço ao vínculo funcional, que garanta aos profissionais da Educação a tranquilidade necessária, para levar adiante um projeto de educação.
A falta de estabilidade e os contratos precários provocam descontinuidade e podem, sim, reflectir na Qualidade do Ensino.
“Risco de diluição”
Há vozes criticando uma alegada proliferação de Instituições do Ensino Superior em Cabo Verde. Qual a sua leitura
É uma dinâmica que venho percebendo, não só em Cabo Verde.
Pelo menos por aqui, vemos que a proliferação de instituições de Ensino Superior, nos mostra que nem sempre quantidade é sinônimo de qualidade. Porém, cada caso é um caso.
O que fazer, face a esta realidade?
Requer um Sistema com recursos apropriados, investimentos fortes, inclusive na qualificação de professores. O risco de diluição é que, ao invés de se fortalecer aquelas que já existem, que muitas vezes lidam com problemas históricos e ainda não solucionados, acaba-se fragmentando e comprometendo o desenvolvimento da pesquisa, da extensão do Ensino em nível de graduação e pós-graduação, além da produção científica que são os pilares da Educação Superior.
Caso não se fizer a opção que aponta, quais os malefícios?
Acabamos criando “Grandes Escolas”, os famosos “Escolões”, como são conhecidos no Brasil. O avanço do Processo de Mercantilização da Educação é assustador e nos preocupa, sobremaneira, tendo em vista as nossas realidades.
Um País com parcos recursos como o nosso e com uma população cuja renda familiar é também limitada, que condições essa população teria de arcar com os custos da Educação Superior?
E está em condições?
Tenho minhas dúvidas. Cabe um debate mais amplo sobre o assunto. É nossa obrigação debatê-lo.
Inspiração
O Modelo Brasileiro de Educação, principalmente, dos Estados do Amapá e de outros, por onde já passou, podem servir de inspiração a Cabo Verde?
Naturalmente, há elementos que podem servir de inspiração, em termos de uma experiência exitosa ou outras iniciativas diversas…
Entretanto, não esqueçamos que há um abismo profundo entre o Sistema Educacional brasileiro e amapaense em particular, e o cabo-verdiano. Essas diferenças se devem a vários factores, dentre os quais, as dimensões continentais do Brasil, que tem uma população gigantesca, na casa de mais de 200 milhões de pessoas, um Sistema cuja grandiosidade é comparável a países do mesmo porte.
Fica difícil estabelecer comparações e/ou buscar inspirações. Aposto no intercâmbio de experiências e no diálogo.
Isso, sim, seria benéfico para ambas partes.
Actualmente, desenvolve um Estudo no marco do Segundo Estágio de pós-Doutorado, sobre Políticas de Educação Anti-Racistas, buscando compreender as realidades de três países nessa questão, nomeadamente: Brasil, Cabo Verde e Guiana Francesa. Já obteve algumas luzes?
Bem, esse Projecto é amplo e surge, justamente, nesse Movimento de Aproximação maior com o contexto da nossa Educação.
Nesta primeira fase, procuramos focar nossa atenção na Educação Básica, no que diz respeito às questões que vão repercutindo na Escola e, nem sempre, devidamente considerados na sua complexidade, a partir da intensificação da Imigração para o arquipélago, no caso de Cabo Verde.
Tem recebido algumas reações e/ou convites das Autoridades cabo-verdianas, em ordem a melhor aproveitarem dos seus saberes, conhecimentos e vivências?
Até agora, não. Porém, o importante é deixar claro a minha abertura para o diálogo inter institucional e reforçar que, como cidadã cabo-verdiana, meu País está sempre nos meus projectos de vida e profissionais.
E que, mesmo na Diáspora, nossos laços permanecem firmes. Como bem assinalou o premiado escritor nigeriano Chinua Achebe, sobre sua relação com a Nigéria: “Eu e a minha terra, às vezes, trocamos palavras duras. No entanto, isso não quer dizer que haja uma relação de amor e ódio, e sim, talvez, apenas uma relação de amor ansioso”.
Desafio às meninas
A Pandemia Global de COVID-19 afectou ou potenciou as suas acções?
Afectou profundamente; em todos os sentidos. Psicologicamente estamos, uns mais e outros menos, abalados com a quantidade de mortos e com um medo meio irracional que se instalou, insidiosamente, na nossa alma.
Aos poucos estamos retomando o entusiasmo anterior, nossos projectos que tinham ficado meio-suspensos estão sendo retomados…
Estamos voltando, paulatinamente, à vida! Entretanto, o nosso trabalho permanece em formato remoto, o que nos induz a uma carga maior, considerando que estamos em casa, e, teoricamente, sempre disponíveis…
Que repto deixa?
Minha mensagem vai para os nossos jovens, especialmente para as meninas. Definam objectivos e metas a serem alcançados e façam valer os sonhos daquelas gerações que muito lutaram, às vezes, em condições muito precárias, para que vocês tivessem o que usufruem hoje. Que apostem alto e…sigam em frente!
“Djeny” da Luz: Uma “cabo-verdiana orgulhosa” da sua origem
Eugénia da Luz Silva Foster, de nominha “Djeny”, nasceu em Mindelo, na Ilha de São Vicente (em Cabo Verde). Fez os seus Estudos Primários na “Escola Camões” e Secundário no Liceu “Ludgero Lima,” em Mindelo.
“Djeny” faz parte de uma geração de estudantes cabo-verdianos, alguns mais velhos e outros mais novos, que saíram de Cabo Verde, poucos anos após a Independência, para fazer estudos superiores em universidades estrangeiras.
Presentemente, é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF); e pós-Doutorada em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Lecciona há 25 anos, na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), na Graduação e na pós-Graduação.
Ocupa os seus tempos livres com leituras diversas de romances de escritores latino-americanos, africanos e portugueses.
“Como cabo-verdiana orgulhosa de minha origem, agradeço, primeiramente, ao meu País, ao Brasil, em especial ao Amapá e à UNIFAP, pela acolhida generosa e pelos valiosos ensinamentos. Aos meus colegas e alunos, motivos de minha inspiração profissional, meus sinceros agradecimentos.
O que sou hoje, devo muito à minha Família e a eles. O Brasil ensinou-me a me ver como uma Mulher Negra, a lutar pelo meu espaço e por respeito na Sociedade e a adentrar nos meandros da Questão Racial, que é Mundial, apesar das especificidades locais”, remata Da Luz Silva Foster.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 727, de 05 de Agosto de 2021