Por: Elsa Fontes
Instalada estava a implementação da República em Portugal em 1910 e em Cabo Verde que fez 45 anos de independência, foi Angola que acolheu colonos em 1968 e depois retornado em Portugal em 1975, com diferentes ideologias. Do colonialismo ao fascismo seguiu-se a Revolução dos Cravos e com ela a Democracia.
O pensamento e a ciência são republicanos, porque o génio criador vive de liberdade e só a República pode ser verdadeiramente livre […]. O trabalho e a indústria são republicanos, porque a actividade criadora quer segurança e estabilidade e só a República […] é estável e segura […]. A República é, no Estado, liberdade […]; na indústria, produção; no trabalho, segurança; na nação, força e independência. Para todos, riqueza; para todos, igualdade; para todos, luz.”
Antero de Quental, in República,11-05-1870
Ao fazer depender o renascimento nacional do fim da monarquia, o Partido Republicano conseguiu demarcar-se do Partido Socialista Português, que defendia a colaboração com o regime em troca de regalias para a classe operária, e atraiu em torno de si a simpatia dos descontentes.O movimento revolucionário de 5 de outubro de 1910 deu-se na sequência da ação doutrinária e política que, desde que foi criado em 1876, o Partido Republicano Português (PRP) foi desenvolvendo, com o objetivo de derrubar o regime monárquico.
Pretendeu-se, também, que o derrube da monarquia tivesse uma mística messiânica, unificadora, nacional e acima de interesses particulares das diversas classes sociais. Esta panaceia que deveria curar, de uma vez, todos os males da Nação, reconduzindo-a à glória, foi acentuando cada vez mais duas vertentes fundamentais: o nacionalismo e o colonialismo, que segundo a wikipédia é a política de exercer o controle ou a autoridade sobre um território ocupado e administrado por um grupo de indivíduos com poder militar, ou por representantes do governo de um país ao qual esse território não pertencia, contra a vontade dos seus habitantes que, muitas vezes, são desapossados de parte dos seus bens (como terra arável ou de pastagem) e de eventuais direitos políticos que detinham.
O termo colônia vem do latim, designando o estabelecimento de comunidades de Romanos, geralmente para fins agrícolas, fora do território de Roma. Ao longo da história, a formação de colônias foi a forma como o ser humano se espalhou pelo mundo assim como seu discurso contraditório.
A exploração desenfreada dos recursos dos territórios ocupados — incluindo a sua população, quase totalmente aniquilada, como aconteceu nas Américas, ou transformada em escravos que espalharam pelo resto do mundo, como na África — levou a movimentos de resistência dos povos locais e, finalmente à sua independência, num processo denominado descolonização, terminando estes impérios coloniais em meados do século XX.
Em Cabo Verde apenas um grupo social era definido e se definia como mestiço pela sua posição social do grupo pequeno burguês cujo processo de ascensão social pretendia consolidar, através da escolarização e da ligação clientelística à administração colonial.
A identidade mestiça surgiu em Cabo Verde (tal como no Brasil), como uma estratégia de personalização das relações sociais numa situação de dominação racial.
Foi na emigração para os demais países de colonização portuguesa que essa identidade mestiça se consolidou como identidade étnica de todo o conjunto cabo-verdiano – e não apenas de um grupo no seu interior -, funcionando como símbolo de distinção social aos demais nativos, o que garantia um melhor tratamento por parte das autoridades coloniais e oportunidades de emprego mais destacados e favoráveis a um processo de ascensão social.
Em Cabo Verde, se um grupo constitui-se como distinto do branco e do negro, é em primeiro lugar pela sua relação personalizada com o grupo dominante.
Na medida em que este grupo podia retirar dividendos da sua relação clientelística com a administração colonial, foi-se constituindo como grupo dominante – pelas suas relações privilegiadas com o branco – e simultaneamente dominado no processo colonial.
Na primeira metade do século XIX, essa elite teria culminado a sua trajetória ascendente, ocupando os mais altos cargos administrativos do arquipélago.
A continuidade da trajetória ascendente passou a colocar-se num campo externo às ilhas, isto é, nas demais colónias portuguesas em África.
Assim por uma curiosa reviravolta da história, a comunidade cabo-verdiana, em grande parte vinda da África do séc. XVI, regressa a ela num quadro de organizações administrativas portuguesas ou simplesmente para desenvolver o comércio com os indígenas. Em ambos os casos, levam para África o que os portugueses lhes trouxeram: a civilização europeia.
A passagem da miscigenação como traço de um grupo específico para a reformulação como traço de origem ligada à terra fica explícita nos romances sobre a base de observações do tipo etnográfico.
Segundo Elisa Andrade; cuja perspectiva é mais africanista em relação à formação da sociedade em causa; o povo cabo-verdiano é dotado de uma língua própria, o crioulo, nascido do português arcaico e das línguas étnicas africanas. O crioulo, apesar da diversidade de pronunciação característica de cada ilha e o grande predomínio do léxico português, constituía um idioma comum a todas as ilhas e a quase todas as classes ou camadas sociais.
Nas ilhas do grupo Sotavento, de colonização mais antiga, a influência das línguas africanas na constituição do crioulo é mais marcante que em Barlavento, de colonização posterior; isso manifesta-se tanto no domínio fónico, como no domínio lexical, em que se encontra um grande número de palavras de origem africana.
O crioulo tornou-se não apenas um instrumento linguístico pelo qual se exprimia e se transmitia o pensamento discursivo do povo cabo-verdiano, mas também na música, da “coladera”, funaná, à morna; esta última – canção popular a um ritmo lento -, própria a todas as ilhas, exprime sentimentos diversos de nostalgia, de evasão, de amor, por vezes com críticas mais subtis e irónicas à sociedade cabo-verdiana.
Manuel Duarte no seu livro “Cabo-verdianidade e africanidade” afirma: “Nós os cabo-verdianos estamos étnica e historicamente ligados tanto à África como à Europa, acrescendo sobremaneira no sentido da africanidade, a situação geográfica, o condicionamento climatérico, a predominância da corrente migratória negra no povoamento das ilhas, originariamente desertas; em suma, o fenómeno colonial e as suas necessárias implicações. Notável, sim é hoje pensar como numa época precisa, em que o peso das ideologias coloniais se fazia sentir, surgir Claridade, o que considero um mérito maior a par da sua qualidade criativa, do equilíbrio entre a especificidade do regional/nacional e do universal dos temas abordados”.
Segundo Andrade, salvo algumas exceções, os intelectuais do movimento literário dos “Claridosos” e a maior parte dos que lançaram também iniciativas literária, visaram demonstrar o predomínio da cultura portuguesa em Cabo Verde.
Para eles, as manifestações de origem africana não são mais que sobrevivências ou reminiscências, estas existentes sobretudo em Santiago, nas outras ilhas, há mais simbiose, com predomínio do elemento português.
A assunção da “africanidade” cabo-verdiana passa pelo passado dos problemas ainda por resolver ao nível da elite cabo-verdiana e de uma certa fração da população cabo-verdiana que não se “importou” com os maus feitos da ideologia colonial racista.
A autora segue citando o antropólogo Félix Monteiro, para quem estas reminiscências são depois de muito tempo definitivamente cantonadas no domínio do folclore e não representam mais do que “a petrificação de resíduos insignificantes de culturas ultrapassadas”.
Isabel Caldeira, afirma que a elite intelectual cabo-verdiana pretende ser representativa de uma cultura “nacional”, numa fase de pré-independência.
Em Cabo Verde, no entanto nota-se desde cedo um espírito nativista (correspondente a uma fase prévia do nacionalismo), que viria a apoiar o movimento para a independência nas décadas de 50 e 70 – eram “nacionalistas sem nação” -, na expressão de Amílcar Cabral.
Para Amílcar Cabral, que é antes de mais um herói nacionalista; para o mesmo quando se fala de literatura caboverdeana, vai-se buscar na realidade o aparecimento da revista Claridade, de forma evidente em duas facetas: antes do início e o que dá inicio a este movimento.
De maneira nenhuma pode isto significar que tudo o que foi escrito antes dos “Claridosos” não tenha valor.
A poesia por maior que seja “a influência do próprio indivíduo sobre a obra que produz, esta é sempre, em última análise, um produto do complexo social em que foi gerada”.
Cabral continua dizendo que é precisamente na “formação adquirida principalmente no Seminário de S. Nicolau (…) que reside a razão do ser das características da Poesia anterior à ”Claridade”, possuidores de uma cultura clássica (…) os Poetas da geração em referência esquecem a terra e o povo”.
Mas avança que de maneira nenhuma se nega o mérito destes mesmos Poetas.
É de atentar-se algumas condições de tal fenómeno: “O povo em geral, vive alheio à cultura e às manifestações artísticas. O Seminário por poucos pode ser frequentado”, onde “opera-se nele uma supremacia de tudo quanto é filosófico, religioso ou moral, sobre o económico”.
Para Cabral “é a própria condição económica em que vivem que facilita aquele alheamento das realidades cabo-verdianas”.
Depois surge a Claridade que “é o romper de uma nova aurora. É a Claridade que surge, dando forma às coisas reais apontando o mar, as rochas escalavradas, o povo a debater-se nas crises, a luta do povo cabo-verdiano “anónimo”, enfim, a terra e o povo de Cabo Verde”.
Os “Claridosos”, são homens-comuns que acompanham com o povo a sua vivência, o seu quotidiano, de “pés fincados na terra”
Esta observação vem sublinhar a abordagem de Isabel Caldeira para quem a Claridade é um movimento cultural à volta de uma revista de letras que surgiu em 1936, no Mindelo, e explorou o nativismo, formulando-o pela voz de um dos seus fundadores, Manuel Lopes como o acto de “fincar os pés na terra”.
É a geração de Amílcar Cabral que inicia a afirmação da identidade cabo-verdiana não somente como caso de especificidade africana e não de regionalismo luso-tropical, mas também como fundamento do movimento de libertação nacional.
Já a Revolução de 25 de Abril de 1974, foi o movimento que derrubou o regime salazarista em Portugal, em 1974, de forma a estabelecer as liberdades democráticas promovendo transformações sociais no país. Após o golpe militar de 1926, foi estabelecida uma ditadura no país. No ano de 1932, Antônio de Oliveira Salazar tornou-se primeiro-ministro das finanças e virtual ditador. Salazar instalou um regime inspirado no fascismo italiano. As liberdades de reunião, de organização e de expressão foram suprimidas com a Constituição de 1933.
Portugal manteve-se neutro durante a Segunda Guerra Mundial. A recusa em conceder independência às colônias africanas estimulou movimentos guerrilheiros de libertação em Moçambique, Guiné-Bissau e Angola. Em 1968 Salazar sofreu um derrame cerebral e foi substituído por seu ex-ministro Marcelo Caetano, que prosseguiu com sua política. A decadência econômica e o desgaste com a guerra colonial provocaram descontentamento na população e nas forças armadas. Isso favoreceu a aparição de um movimento contra a ditadura.
No dia 25 de abril de 1974, explode a revolução. A senha para o início do movimento foi dada à meia-noite através de uma emissora de rádio, a senha era uma música proibida pela censura, Grândula Vila Morena, de Zeca Afonso. Os militares fizeram com que Marcelo Caetano fosse deposto, o que resultou na sua fuga para o Brasil. A presidência de Portugal foi assumida pelo general António de Spínola. A população saiu às ruas para comemorar o fim da ditadura e distribuiu cravos, a flor nacional, aos soldados rebeldes em forma de agradecimento.
No início dos anos 60, desencadeou-se uma luta armada contra o colonialismo português, por três movimentos de libertação, FNLA, MPLA e UNITA.
A ditadura portuguesa negou-se a dialogar e continuou na defesa do último grande império colonial europeu (pela sua produção de diamantes, café, cana-de-açúcar, minérios de ferro somente para exportação e pela sua extensão territorial).
Em Angola assistia-se à realização de grandes obras públicas promovidas por Portugal que queria consolidar a sua presença aí.
Mais importante foi a exploração de petróleo em Cabinda iniciada em 1968 (ano em que fomos para Luanda), que significou um acréscimo das receitas das exportações de Angola.
Depois da Revolução dos Cravos, abriram-se as portas para a independência de Angola com as negociações com os 3 movimentos de libertação.
A independência de Angola não foi o começo da paz, foi antes o início de uma guerra aberta entre esses 3 movimentos para controlar o país, especialmente Luanda.
Num país como o nosso, onde a história da escravatura é ainda rodeada de certos tabus e complexos, um trabalho exigente de transmissão de conhecimentos e de diálogo para a reconciliação terá que ser feito de forma sobretudo pedagógica para que um vasto público seja atingido com acutilância, em escolas e universidades mas também em espaços privados.
Depois da “Década das Nações Unidas para os Afrodescendentes – 2015/2022” a UNESCO apelou à partilha do conhecimento da realidade do tráfico, da escravatura em suas várias formas, das várias maneiras de resistência, das grandes contribuições dos escravos para a civilização universal e das grandes contribuições atuais para o desenvolvimento mundial. A ideia é abordar o passado doloroso, mas, sobretudo, apresentá-lo como forma de compreensão de toda a trajetória, de trazer reconciliação com esse mesmo passado, realçando as grandes contribuições proporcionadas com um conteúdo “altamente” pedagógico e “preconizar” a reconciliação dos cabo-verdianos com a temática da escravatura, indo “para além da tragédia humana que ela constituiu».
Demonstrou-se que a história da escravatura é rica em termos de contribuições civilizacionais por parte dos escravos, repleta de acrescentos culturais, tecnológicos, económicos e sociais, contribuindo de forma marcante para o desenvolvimento dos continentes que receberam/importaram os escravos africanos.
“Não sei bem o que me liga a estas ilhas. Eu que gosto de me assumir como um cidadão do mundo. Capaz de me sentir em casa, em qualquer recanto desta nossa aldeia global, em qualquer espaço cultural, ainda que feliz gozando as oportunidades que o desenvolvimento proporciona, ou as delicias numa ocasional incursão no exótico, sinto uma incómoda urgência de regresso a esta cidade.
(…) Meu pai dizia-me que não procurasse lugar mais belo porque nunca o iria encontrar. Ele era marinheiro com os olhos cheios do mundo, com uma voz que fazia com que cada uma das histórias de longe que me contava calassem fundo no meu ser, tão reais como se as tivesse vividas.
Eu não compreendia como é que alguém tinha varado os mares deste mundo, visto as altas torres das cidades de sonho, florestas de um verde tão denso que feria os olhos, com bichos de fábula que prendia a minha imaginação pudesse dizer-me que não havia lugar mais belo do que a nossa cidade, onde tudo me parecia normal…
Chegou a minha vez de partir (…) fechando, de vez, uma doce página do meu caminho pela vida, cedo deram lugar ao fascínio da cidade grande, em que tudo parecia brilhar, em que a minha existência se tornou numa permanente descoberta (…) de coisas, de pessoas, de ideias que me fizeram crescer, que me tornaram cidadão do mundo e que fizeram da minha cidade uma cidadezinha.
Os anos passaram – longos anos! – a novidade deixou de ser, o desencanto instalou (…) e fez surgir novas ilhas de esperança no imenso mar do desencanto. Uma dessas ilhas o regresso só às ilhas (…) me fazem sentir que a vida muito tempo longe delas não valerá a pena…”
Parafraseando António Carreira, “nós cabo-verdianos, assemelhamo-nos ao cavalo alado: não fincamos os pés na terra, nem chegamos ao céu, vivemos (e muito bem) de idealismo – uma característica dos ilhéus. Fazemos poesia e ficção (bastante válidos), mas descuramos, em regra, as coisas positivas, reais, os ensinamentos da história social e económica, cuja análise permite conhecer melhor o que foi a vida dura, a luta enorme travada com as forças da natureza e com os homens. E a melhor prova de ânimo valoroso do ilhéu é dada quando emigra e trabalha em outras terras.”
02 de Agosto 2021
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1 Andrade, Elisa, “Histoire Economique des iles du Cap Vert”- de la “découverte à l’independence” (1460-1975), Paris, 1984, vol. I.
2 Duarte, Manuel, “Caboverdianidade e Africanidade… e outros textos”, Spleen e Eições, Mindelo, 1999.
3 Caldeira, Isabel, “O Afro-americano e o Caboverdeano: Identidade étnica e identidade nacional”, in Portugal: Um Retrato Singular, ed. Afrontamento, Centro de Estudos Sociais, Porto
4 Andrade, Mário de, “Obras escolhidas de Amílcar Cabral ”-A Arma da Teoria- Unidade de Luta, Vol. I, Seara Nova, 1978.
Idem, pág, 26 e 27
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António Cardoso Santos (1992), O meu Universo ilhéu, in Revista FESTIVAL BAÍA DAS GATAS
92 – Xº ANO, Mindelo, pag.s 12-13.
António CARREIRA, obra citada, 1977, p. 17.