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Diáspora

Javier Andrigo: “Esqueceram-se dos cabo-verdianos!”

Poucos dias depois da celebração dos 46 anos da Proclamação da Independência de Cabo Verde – a 5 de Julho! -, o vice-presidente da Colectividade de Buenos Aires, está magoado com os sucessivos governos da Praia. Num exclusivo ao  A NAÇÃO, Javier Omar Andrigo, filho de mãe crioula, nascido na “Tierra de las Pampas”, um ano após o “Dia do Nosso Orgulho”, não tem papas na língua: “Os sucessivos governos, desde a Independência a esta parte, esqueceram-se dos cabo-verdianos na Argentina”. Mas Andrigo não faz só críticas: aponta as saídas, lembrando que “na Argentina existem profissionais muito competentes, que podem contribuir, também, para o desenvolvimento de Cabo Verde”. 

 A NAÇÃO – Como é a vida dos cabo-verdianos na Argentina, mais concretamente em Buenos Aires – a Capital desse País Latino-Americano?
Javier Omar Andrigo – Está totalmente integrada na Cultura argentina. Mais do que tudo, porque muitos de nós somos descendentes. Hoje, vivem cá, cabo-verdianos nascidos nas Ilhas – que são muito poucos! -, porque, com algumas excepções, a maioria chegou à Argentina nos anos 1950, onde estamos totalmente integrados.

Estando “totalmente integrados” – como garante! -, o que devem fazer, para tirarem melhor proveito das oportunidades que a Argentina  lhes oferece?
Basta abordar ou comunicar-se com um membro da Comunidade que lhe fornecerá orientação ou dispõe-se para ajudá-lo. O último cabo-verdiano que emigrou para a Argentina, foi há seis anos. Toda a Comissão da Sociedad de Socorros Mutuos Unión Caboverdeana (SSMUC) – de que sou vice-presidente! -, comprometeu-se a prestar-lhe a ajuda necessária, seja através do processamento de documentação oficial, conseguindo-lhe contactos para empregos, etc, etc,.

Quando chegaram os primeiros cabo-verdianos, de que há memória?
Foi no final do Século XIX e início do século XX. Já se vai em quatro ou cinco ou gerações de descendentes. A Segunda Grande Emigração ocorreu durante as décadas de 30-40. A partir de 1950, a emigração para a Argentina foi diminuindo. Na verdade, a minha mãe, que emigrou no final dos anos 1960, foi uma das últimas a fazê-la.

Interesse pelas raízes 

Os descendentes “vivem” Cabo Verde?
Como acontece, frequentemente, em todo o Mundo, muitos destes descendentes perdem os costumes e hábitos culturais cabo-verdianos. Felizmente, muitos outros, apesar de já estarem, há várias gerações na Argentina, continuam mantendo os costumes, principalmente, se estiverem próximos das Associações que os unem. Uma boa-nova: há descendentes que vêm tentando aprender mais sobre a Cultura, porque tiveram um avô ou uma avó nascida em Cabo Verde e aí retomam o vínculo com a sua cabo-verdianidade.

Quantos cabo-verdianos e/ou descendentes vivem na “Tierra de las Pampas”?
Hoje, na Argentina, estima-se que existam 30 mil cabo-verdianos e/ou descendentes, mas não existe um Censo Oficial, para se saber, exactamente, quantos somos. Uma curiosidade: Recentemente, uma família de descendentes, cujo avô emigrou para Rio Gallegos, no Sul da Argentina, a mais de dois mil  e 500 quilômetros de Buenos Aires, que não sabíamos que existia, chegaram à União Caboverdeana, procurando informações sobre Cabo Verde. 

Quem são os integrantes da Comunidade?
Muitos dos que emigraram, e até seus filhos, trabalharam em navios, já que a Argentina tinha uma Frota Mercante muito pujante e importante, até meados da Década de 1990. Hoje é diferente, pois, os descendentes têm profissões diversas e actuam nos mais variados campos de actividades. Há muitos profissionais altamente qualificados. 

Curso de Ouril…

O que se ganhou com a Vossa Associação (a “Mutual Aid Society Cape Verdean Union”), criada em 1935?
Na Argentina, ainda hoje, não existe Embaixada de Cabo Verde; há apenas um Consulado-Honorário. Os cabo-verdianos e/ou seus descendentes recorrem à nossa Instituição para aconselhamento sobre questões jurídicas, como obter um documento ou como solicitar a cidadania, ou como podem viajar para Cabo Verde. Para todos estes assuntos, recorrem à Associação. Em outras palavras: funcionamos como uma Embaixada…sem sê-la. Mas, também, se deixássemos de existir, perderiam esses costumes das famílias. 

Como assim?
Uma vez por mês, de Abril a Outubro, fazemos um almoço típico cabo-verdiano com Cachupa, que começa às 13H00 e termina por volta das 20H00, com Música e Dança das nossas Ilhas. De remarcar que estes encontros se dão em ambiente familiar, não só de cabo-verdianos e descendentes, mas, também, de amigos da nossa Instituição. 

Que outras acções realizam?

São inúmeras! Mais recentemente, ou seja, antes da Pandemia de COVID-19, fizemos um Curso de Ouril (também chamado de “Ourim”, “Urím” e “Uril”!), para recuperar aquele jogo tradicional, já que o costume se havia perdido. A ideia foi, nesses almoços, colocar três ou quatro pranchas (bancos de Ouril!), para que as pessoas pudessem e aprendessem a jogar e, quem sabe, fazer um Campeonato em algum momento. Só que, aí veio a Pandemia e o Projecto parou…

…e como estão fintando COVID-19?
Estamos a realizar cursos de Cultura Crioula e Cabo-Verdiana, em formato virtual, a par de um Programa de Rádio, para nos mantermos em contacto com a nossa Comunidade. Fazemos, também, a nossa típica “Cachupa”, em modo “Take Away”. Resumindo: sem a nossa existência, tudo isso estaria perdido.

Concertação com outras colectividades 

Como se dá a concertação com as restantes colectividades?
Na Argentina existem quatro associações de cabo-verdianos, incluindo a nossa. Temos um bom relacionamento com todos eles. Aliás, os membros dessas associações assistem às nossas actividades, assim como nós, também, assistimos e participamos nas delas. Às vezes, a distância é um empecilho. Uma das associações fica a 50 quilómetros da nossa, outros a 400 . Mesmo assim, sempre que podemos, tentamos estar lá e há uma boa predisposição.

Qual é o vosso evento de marca?
A minha maior conquista é o “Sodade”…

O que é isso?
É um Programa de Rádio. Além de nos permitir a Comunicação com a Comunidade, principalmente, nestes tempos de Pandemia, transmite muitas estórias e  novas, a par da Música que se cria e se escuta nas Ilhas e na sua Diáspora, bem como os seus clássicos e grandes referências musicais, algo que, até agora, não havíamos podido materializar.

Quando é transmitido?
Vai ao ar numa Estação de Rádio Universitária local, todos os domingos, das 18 às 19 horas, em: http://latecno.com.ar/. É mais uma ferramenta para transmitir a Cultura cabo-verdiana e conseguir maior visibilidade junto da Comunidade argentina.

COVID-19 matou…“não apenas idosos”

Que repercussões teve e está tendo COVID-19, na vida dos patrícios?
Houve muitas mortes. Não apenas de idosos, mas, também, na faixa dos 40-50 anos. Alguns morreram de COVID-19, mas outros, de tristeza, porque tiveram que ficar confinados em suas casas. Isso deve ter acontecido, também, nas Ilhas e em toda a Diáspora, uma vez que a Pandemia está a afectar, igualmente, o Mundo inteiro, não só na Saúde Física, mas, também, na Saúde Mental.

O que a sua Colectividade tem feito?
Não podíamos fazer muito! O que fizemos com os mais velhos, no final do ano, foi dar-lhes presentes…

Em que consistiu?
Cabazes de Natal, a par de entrega de pratos da época, para sentirem que nos lembramos deles e que tudo fazemos para manterem sorrisos. As possibilidades são muito limitadas no contexto da realidade de COVID-19, na Argentina. Seria muito gratificante poder atender a toda a nossa Comunidade, de forma mais próxima, mas é uma pena que, também, por recomendações das Autoridades Sanitárias, devemos ter alguns cuidados, sendo o mais duro, o isolamento.

Regresso às Ilhas? 

Há  patrícios em dificuldades, agravadas pela Pandemia e que gostariam de regressar a Cabo Verde, mas não conseguem?
A maioria dos cabo-verdianos, como já vos disse, são pessoas com mais de 70 anos, que vivem na Argentina há mais de 50 anos e têm uma vida aqui enraizada.

Com ou sem dificuldades?
Conhecemos o caso de um argentino, nacionalizado cabo-verdiano, que passou três anos a trabalhar em Cabo Verde (mais concretamente, na Cidade de Mindelo), e que, devido à Pandemia e à falta de Turismo, decidiu regressar a Mar del Plata, a sua Cidade da origem. Este ano, assim que tiver duas doses da vacina contra a COVID-19, pretende voltar a se instalar, definitivamente, em Santo Antão. Afora este, não temos conhecimento de outros cabo-verdianos que desejem regressar às Ilhas.

Como prognostica que seja a vida dos cabo-verdianos na Argentina, no período pós-Crise?
Não sou cartomante, mas tenho desejos fortes, que espero que se cumpram…

Quais?
Que todo esse pesadelo acabe e se volte “à normalidade”, a que estávamos acostumados, o mais rápido possível. Vamos torcer para que seja realidade, pois, queremos muito nos despedir de 2021, em maré de festa, na nossa Instituição. Quanto aos cabo-verdianos: o impacto será o mesmo que para a grande maioria dos cidadãos de Buenos Aires.

À espera de uma Missão Cultural…

Na sua leitura, enquanto vice-presidente da Associação Cabo-Verdiana de Buenos Aires, os saberes, conhecimentos e possibilidades de exercerem influência junto dos vossos círculos académicos, sociais, profissionais, entre outros – na Argentina! -, estão a ser bem aproveitados pelos governantes cabo-verdianos?
Embora o Governo de Cabo Verde tenha feito várias visitas diplomáticas à Argentina e tenham sido sempre recebidos na nossa Associação, os sucessivos governos, desde a Independência, esqueceram-se dos cabo-verdianos na Argentina…

 …como assim?
Do ponto de vista de lhes dar assistência e acompanhamento. Nos últimos 46 anos de Independência, apenas um promotor do Ministério das Comunidades veio, há 11 anos, para ensinar a Gramática Crioula e o ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cioulo Cabo-Verdiano)…

O que está faltando?
Todos os países têm missões culturais no estrangeiro. Nada disso chegou até nós, com os diferentes e sucessivo governos. Adoraríamos que uma Missão Cultural viesse e se divertisse aqui. Sabemos que mandam missões culturais para o Brasil (para São Paulo!), de onde estamos a apenas três horas de vôo. Mesmo que seja por um dia, o Governo devia mandar uma dessas missões culturais; seria muito reconfortante para nós.

Resumindo: como melhor aproveitar os cérebros crioulos?
Na Argentina existem profissionais muito competentes, que podem contribuir para o desenvolvimento de Cabo Verde. Isso vai das Ciências Sociais à Tecnologia, pois, existem profissionais de diversas áreas, que podem contribuir para o desenvolvimento do Arquipélago, não só com os seus conhecimentos pessoais, mas, também, actuando como pontes para empresas, cooperativas, etc, entre o Executivo de Cabo Verde e as diferentes instituições académicas argentinas.

Santo Cabo-Verdiano?

Tem novas do Processo de Canonização e Beatificação do escravo/leigo – tido por  cabo-verdiano!!! -, de sua graça, Manuel da Costa dos Rios – mais conhecido, pela alcunha:  “Negrito Manel”,  “Negro Manoel”  ou “Manoel da Guiné” -, que se crê ser testemunha ocular (no Século XVII), de um milagre e primeiro guarda da Sagrada Imagem de Nossa Senhora de Luján, na Argentina?
A Congregação para a Causa dos Santos – do Vaticano! -, informou, em Agosto de 2019, a inexistência de impedimentos para se começar o Processo…

A se concretizar, que impacto tem para Cabo Verde e os cabo-verdianos, residentes nas Ilhas e na Diáspora?
É uma conquista muito importante, pois, várias pessoas da Comunidade trabalharam muito, realizando pesquisas e apresentando todas as informações à Igreja, para que ele fosse beatificado. O destaque vai para Armando Monteiro, que fez uma investigação muito minuciosa, inclusive, viajando a Cartagena das Índias, na Colômbia, para obter informações sobre a passagem de “Negrito Manel”, por lá.

 Está a dizer que há, agora, maiores esperanças?
Agora que o Papa é argentino e que a embaixadora argentina no Vaticano é descendente de cabo-verdianos, esperamos que o Processo se possa acelerar… É um longo Processo, mas acreditamos que, finalmente, será beatificado.

“Saibam que existe uma Comunidade na Argentina!”

 Que desafio deixa?
Aos cabo-verdianos na Argentina, que se aproximem das instituições, que as acompanhem nas redes sociais, que se inteirem das actividades que realizamos, que entrem em contacto e se envolvam com elas, o melhor que puderem. Para os cabo-verdianos das Ilhas: saibam que existe uma Comunidade, que é pequena comparada com outras da Diáspora, mas aqui estamos. E que, um dia desses, irei conhecê-los…

E ao Governo?
Que nos tenha mais em conta! Somos poucos,  sei que, eleitoralmente, não temos peso, mas gostaríamos que enviassem, ao menos, uma Missão Cultural com artistas das Ilhas.  Criaremos condições para os receber. Precisamos apenas de artistas em palco, para podermos desfrutar da nossa Música – ao vivo! -, mesmo que a Missão não seja apenas musical. Que  enviem, também, recursos para realizarmos actividades de Conhecimento Histórico e para a Divulgação Turística das Ilhas, de modo a darmos uma maior visibilidade de Cabo Verde, ao alcance da população, neste caso, de Buenos Aires. Para concluir mesmo: se fosse mais simples a obtenção da Nacionalidade Cabo-Verdiana, seríamos centenas de argentinos que, com orgulho e documentação em mãos, gritariam de alegria, a plenos pulmões: “Já sou, legalmente, Cabo-Verdiano!”.

Lista de (alguns) cabo-verdianos que desempenharam cargos relevantes e/ou se distinguiram na Argentina

1- José Manuel Ramos Delgado: Descendente de cabo-verdianos, jogou em Lanus, River Plate, Banfield, Santos (Brasil), Portuguesa Santista e na Selecção Argentina, disputando o Mundial de 1958, na Suécia, e 1962 no Chile;

2- Luis Antonio Medina Castro: foi um actor argentino, protagonista de mais de 40 filmes, além de ter trabalhado em Teatro e TV;

3- Adriano Nascimento Rocha: Colaborador activo da Sociedade Cabo-Verdiana, ex-presidente do SSMUC (Sociedad de Socorros Mutuos Unión Caboverdeana) e presidente-honorário até à sua morte. Foi nomeado “vizinho de destaque”,  de Dock Sud;

4- Diego Alonso Gómez: Actor de Cinema, Teatro e Televisão;

5- Fernando Damián Tissone Rodrigues: Jogou na Udinese, Atalanta, Sampdoria, Mallorca, entre outros clubes. Presentemente, actua em Taranto, na Série D, do Futebol italiano;

6- María Fernanda Silva:  Cientista Política e diplomata argentina. Actualmente, é embaixadora argentina no Vaticano;

7- Miriam Victoria Gomes: Professora e activista pelos Direitos e Visibilidade na Argentina, da Comunidade Afro-Descendente e ex-presidente do SSMUC;

8- Theresa Varela: Freira radicada em San Marcos Sierras, a Noroeste da Província de Córdoba (Argentina), no Departamento de Cruz del Eje. Preside a “Fundación Misión Esperanza”, desde 1997, destacando-se pelo seu trabalho social;

9- Pedro Silva: Foi comissário-geral dos Bombeiros da Polícia Federal Argentina e ex-vice-presidente do SSMUC;

10- Armando Monteiro: Auditor do Consórcio Techint-SADE-PIrelli e ex-presidente do SSMUC;

11- Hector Rodriguez: Participou no filme “El Tambor de Tacuarí”, ainda criança, em 1954;

12- Javier Dias: Participou na série “Jacinta Pichimahuida”, Série muito assistida nos anos 70, da qual, também, foi feito um Filme. É licenciado em Ciências Ambientais; e

 13- Obviamente, o “Negro Manuel”, guardião da Virgem de Lujan. 

Quem é Javier Andrigo? 

Javier Omar Andrigo, é filho de Júlia Rodrigues, natural do Porto Novo, na Ilha de Santo Antão, em Cabo Verde, e de Juan Carlos Andrigo.

Nasceu na Cidade de Buenos Aires – a Capital da Argentina -, em 1976. Estudou Engenharia Industrial, na Universidade Tecnológica Nacional da Argentina e trabalha numa Construtora, há 16 anos.

Além de vice-presidente da Associação Cabo-Verdiana de Buenos Aires (Sociedad de Socorros Mutuos Unión Caboverdeana – SSMUC), é responsável pelo Programa de Rádio da referida Colectividade,  participando, activamente, nas oficinas e no Programa Radiofónico do “Fórum de Pensamento Crítico da Universidade Tecnológica Nacional”.  

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 723, de 08 de Julho de 2021

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