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Cabo Verde perante os desafios do “Triângulo Mágico”: Crescimento Económico, Criação de Emprego e Redução da Pobreza (2)

Por: João Serra*

Esta é a segunda e última parte do artigo em referência e versará sobre a situação do desemprego e da pobreza e o desafio do seu combate e mitigação.

I. A armadilha do desemprego

Num relatório intitulado “World Employment and Social Outlook: Trends 2021”, publicado no início de junho corrente, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou que a pandemia destruiu, em 2020, horas de trabalho equivalentes a 255 milhões de empregos em todo o mundo. A OIT espera que esse um número se reduza para mais de metade (cerca de 100 milhões) até fim de 2021 e cerca de um décimo (26 milhões) até 2022. Apesar disso, os números, ainda negativos, mostram que “a crise do emprego está longe de ter terminado” e que “o crescimento do emprego não compensará as perdas sofridas até 2023”, advertiu a OIT.

As novas previsões da OIT são ligeiramente piores que as feitas no início deste ano, devido a fatores como o ritmo lento da vacinação em muitos países, que pode atrasar a recuperação económica. Por causa disso, a OIT espera que o número de pessoas desempregadas no mundo se situe em 205 milhões em 2022, muito acima dos 187 milhões em 2019, elevando a taxa de desemprego para 5,7%.

A OIT está confiante de que a recuperação do mercado de trabalho global irá acelerar no segundo semestre do ano, embora esta previsão esteja condicionada ao não agravamento da crise, com a desvantagem de um acesso desigual às vacinas e à capacidade limitada de muitas economias para apoiar medidas de estímulo orçamental.

“Os efeitos positivos permanecerão limitados no âmbito geográfico, a menos que seja acordada uma ação a nível internacional, tanto em termos de fornecimento de vacinas como de apoio financeiro, incluindo alívio da dívida”, diz a OIT.

Por outro lado, a organização adverte que muitos dos novos empregos criados na esperada recuperação serão de pior qualidade, e os quase 2.000 milhões de trabalhadores que vivem na economia informal podem ser particularmente vulneráveis. Porém, “não pode haver uma verdadeira recuperação sem uma recuperação de empregos dignos”, adverte o diretor-geral da OIT, Guy Ryder, que recomenda estratégias coordenadas entre governos para ajudar os setores mais duramente atingidos, tais como os da hotelaria e restauração, comércio, construção e indústria.

O relatório da OIT indica que as mulheres foram mais prejudicadas do que os homens no mercado de trabalho durante a pandemia, como demonstra o facto de o emprego feminino se ter contraído 5%, em comparação com 3,9% para os homens.

O mesmo se pode dizer do emprego juvenil, que caiu 8,7% em 2020, enquanto a média para os adultos era de 3,7%, consequências para as gerações que entram no mercado de trabalho que, segundo a OIT, “poderiam prolongar-se durante anos”.

Como não podia deixar de ser, a situação de desemprego em Cabo Verde também foi afetada pela crise provocada pela pandemia de Covid-19.

De acordo com os dados divulgados recentemente pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), no ano passado estima-se que o mercado de trabalho perdeu 19.718 empregos, com a taxa de desemprego a aumentar de 11,3% (2019) para 14,5% (2020) e o país a ter uma população desempregada estimada em 31.724 pessoas. A taxa de desemprego só não foi maior por causa das medidas de mitigação dos efeitos da crise implementadas pelo Governo, nomeadamente o “lay-off”.

Em 2020, o INE constatou igualmente um aumento do desemprego jovem (15-24 anos), que foi de 32,5%, um aumento de 7,6 pontos percentuais (pp) face a 2019. Entre os jovens de 25 a 34 anos o desemprego é de 18,6%, mais 5,3 pp face a 2019. Vale realçar que o total de jovens dos 15 aos 35 anos sem emprego e fora do sistema de ensino ou formação é estimado em 77.480, registando um aumento de 34,5% (19.875) face a 2019.

De acordo com os resultados do inquérito, no ano passado houve uma diminuição de 6,1% na população economicamente ativa (14.253), estimada em 218.351 pessoas disponíveis para o mercado de trabalho, representando uma taxa de atividade de 53%, valor inferior em 4,4 pp face aos resultados de 2019 (57,4%). Em contrapartida, a população inativa aumentou em 21.332 pessoas, estimada em 193.735 pessoas, e, em consequência, a taxa de inatividade aumenta 4,4 pp, passando de 42,6% em 2019 para 47% em 2020.

Já a população empregada em Cabo Verde foi estimada em 186.627 pessoas, diminuindo 9,6% (19.718 pessoas) e a taxa de emprego/ocupação situou-se em 45,3%, diminuindo 5,7 pp face a 2019 (50,9%).

As estatísticas do mercado de trabalho revelam, ainda, que a estrutura dos empregos por setor de atividade mantém-se, com o setor terciário a liderar e absorver a maioria dos empregos (65,6%), mas diminuiu 1,9 pp o seu peso relativo face a 2019. “O impacto negativo nos empregos do setor terciário deve-se essencialmente à perda de empregos nos ramos de atividade relacionados com alojamento e restauração, comércio e transporte”, explicou o INE. Não é por acaso que as ilhas do Sal e da Boa Vista são mais afetadas pela pandemia, por serem as mais turísticas do país.  Salienta-se que o número de turistas teve uma queda superior a 60%, depois de ter atingido o recorde de 819.000 em 2019.

Também o setor secundário, consequência da diminuição de empregos nos ramos de construção e indústria transformadora, registou uma diminuição de 6.616 empregos e do seu peso relativo em 1,3 pp face a 2019, passando a absorver 37.642 empregos e representar 20,2% do total dos empregos no país. Em sentido contrário, o setor primário registou um aumento de 3.145 empregos, e 2,8 pp no peso relativo, passando de 10,9% em 2019 para 13,7% em 2020.

Por seu turno, o setor empresarial privado continuou a absorver a grande maioria dos empregos (41,0%), estimando-se que 25,7% dos empregos são por conta própria.

Outro dado constatado pelo INE é que 51,6% dos empregos são informais e na sua maioria são trabalhadores por conta própria (46,6%) ou por conta de outrem no setor privado, mas que não beneficiam de proteção social. Comparando com o ano de 2019, o INE concluiu que houve uma diminuição de 14.615 empregos informais, enquanto a população subempregada é estimada em 23.513 pessoas e a taxa de subemprego em 12,6%.

Para promover a recuperação do mercado de trabalho, a OIT recomenda aos governos que invistam em setores que possam ser uma fonte de empregos decentes, e promovam o diálogo social.

II. A armadilha da pobreza


Segundo o já mencionado relatório da OIT, “a queda no emprego e nas horas de trabalho resultou em uma redução drástica do rendimento do trabalho e no consequente aumento da pobreza. Em comparação com 2019, globalmente, 108 milhões a mais de trabalhadores são agora considerados como vivendo na pobreza ou extrema pobreza”. Ainda de acordo com o relatório, “os cinco anos de progresso para a erradicação da pobreza global foram perdidos”. Isso afeta o horizonte da realização do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de, a nível global, erradicar a pobreza extrema e reduzir para metade a pobreza, em todas as suas dimensões, até 2030.

Atualmente, considera-se pobres as pessoas que devem subsistir com menos de 3,2 USD por dia, e muito pobres as pessoas que vivem com menos de 1,25 USD por dia.

O relatório conclui que a crise da Covid-19 afetou mais duramente os trabalhadores mais vulneráveis, e, portanto, também exacerbou as desigualdades pré-existentes. A falta generalizada de proteção social – por exemplo, entre os dois mil milhões de trabalhadores do setor informal em todo mundo – significa que as crises no trabalho relacionadas à pandemia tiveram consequências catastróficas para o rendimento e meios de subsistência das famílias.

Conforme os resultados do III Inquérito às Despesas e Receitas Familiares de 2015 (os últimos disponíveis), existiam em Cabo Verde, em 2015, 179.909 pessoas em situação de pobreza, o que corresponde a 35,2% da população então residente no país.

Foram considerados pobres aqueles que viviam em agregados familiares com consumo médio anual por pessoa abaixo do limiar da pobreza, fixado no meio urbano no valor de 95.461 ECV (262 escudos diários) e no meio rural no valor de 81.710 ECV (224 escudos diários).

Dos 179.909 pobres, estimou-se que 54.395, cerca de 10,6% da população, viviam em extrema pobreza, ou seja, viviam em agregados familiares com rendimentos que permitiam consumos “per capita” anuais abaixo de 49.699 ECV (136 escudos diários), no meio urbano, ou menos de 49.205 ECV (135 escudos diários), no meio rural.

Do total dos pobres, 53% eram mulheres chefes de família, 44% correspondiam a agregados familiares monoparentais e em 61% dos agregados existiam seis ou mais pessoas. O estudo indica ainda que, do total dos pobres, 51% vivia no meio urbano, 58% estava em Santiago e 21% residia na Praia.

De um modo geral, desde a independência do país em 1975, Cabo Verde vem alcançando resultados positivos no combate à pobreza, facto reconhecido e muito apreciado pelos seus parceiros do desenvolvimento. Segundo estes, as conquistas de redução da pobreza de Cabo Verde baseiam-se, basicamente, na estabilidade política e numa gestão dos recursos públicos relativamente boa. Os investimentos em capital humano e na construção de infraestruturas também desempenharam um papel importante.

Apesar dos avanços feitos em matéria de combate à pobreza extrema e à privação material, a pobreza continua ainda uma dura realidade no nosso país. Ela está intimamente relacionada com a falta de comida, trabalho, habitação e de dinheiro, ao fim ao cabo, com as necessidades básicas da sobrevivência humana.

Por outro, é particularmente preocupante constatar que, em Cabo Verde, a maior taxa de pobreza incide sobre agregados familiares onde há crianças. Normalmente, pobreza entre crianças e jovens significa más condições de habitabilidade e menor acesso à educação e saúde no período mais crítico das suas vidas. E isso, geralmente, reflete-se uma privação “ad infinitum” do acesso a melhores condições de vida. Ademais, implica perpetuar a reprodução intergeracional da pobreza.

Estima-se que antes da pandemia um em cada três cidadãos cabo-verdianos vivia em situação de pobreza. Com a pandemia e a crise económica que com ela veio, a situação de pobreza e privação tornou-se, ainda, mais complicada. Na verdade, em 2020, com a recessão histórica de 14,8% do PIB Cabo Verde ficou mais pobre do que era em 2016 e as famílias cabo-verdianas empobreceram, em média e em termos reais, ao ritmo de 1,5% por ano, entre 2016 e 2020. Esta realidade, que afeta sobretudo as mulheres chefes de família, inverteu os progressos na redução de pobreza alcançados nos últimos anos, colocando, de acordo com estimativas oficiais, cerca de 100 mil pessoas na pobreza temporária.

Perspetiva-se que a crise económica que hoje vivemos se prolongue, com efeitos profundos na coesão social e nas oportunidades geradas para todos. É por isso uma prioridade nacional a salvaguarda de todos os cidadãos, através de uma estratégia nacional de combate à pobreza.

III. Desafios a vencer para acelerar o progresso e para reduzir o desemprego e a pobreza

É cada vez mais evidente a relação entre a crise pandémica e o agravamento do desemprego, da pobreza e da desigualdade. Todavia, em Cabo Verde, à semelhança de muitos outros países, o desemprego e a pobreza são estruturais, na medida em que a economia não consegue crescer suficiente para absorver toda a mão-de-obra disponível e o país, objetivamente, não consegue, nomeadamente através de políticas de redistribuição de rendimentos, garantir recursos financeiros acima do limiar da pobreza a todos os cabo-verdianos.

Assim sendo, o combate ao desemprego e à pobreza deve fazer-se com políticas indutoras de um crescimento económico robusto, sustentável e inclusivo, que produzirão efeitos a médio e longo prazo, tal qual sugerido na primeira parte do presente artigo.

Segundo a OIT, no já referido relatório, “a recuperação da Covid-19 não é apenas uma questão de saúde. Os graves danos às economias e às sociedades também precisam ser superados. Sem um esforço deliberado para acelerar a criação de empregos decentes e apoiar as pessoas mais vulneráveis da sociedade e a recuperação dos setores económicos mais duramente atingidos, os efeitos da pandemia poderiam prolongar-se por anos na forma de perda do potencial humano e económico, e de maior pobreza e desigualdade”, disse o diretor-geral da OIT. “Precisamos de uma estratégia abrangente e coordenada, baseada em políticas centradas nas pessoas e respaldada por ação e financiamento. Não pode haver recuperação real sem a recuperação de empregos decentes”, remata Guy Ryder.

Além de examinar as perdas de horas de trabalho, as perdas diretas de postos de trabalho e a redução do crescimento do emprego, o relatório descreve uma estratégia de recuperação estruturada em torno de quatro princípios: i) promover o crescimento económico de base ampla e criar empregos produtivos; ii) apoiar o rendimento familiar e a transição do mercado de trabalho; iii) fortalecer as bases institucionais para um crescimento e um desenvolvimento económicos inclusivos, sustentáveis e resilientes; e iv) utilizar o diálogo social para formular estratégias de recuperação centradas nas pessoas.

Por seu turno, o Banco Mundial (BM), num estudo sobre o combata à pobreza em Cabo Verde, publicado na sua página oficial no início de 2019, identifica cinco principais áreas, que devem merecer atenção urgente, para acelerar o desenvolvimento de Cabo Verde rumo ao progresso económico e social, das quais destacamos quatro:

Melhoria do capital humano. Isto exigirá, conforme o documento, combater as causas das taxas relativamente elevadas de abandono escolar e das qualificações e qualificações inadequadas da força de trabalho. Outrossim, o BM recomenda o fortalecimento das oportunidades de participação das mulheres no mercado de trabalho, por exemplo, através de melhores serviços de atendimento e mudança das normas de género em relação às tarefas domésticas e apoio à educação das crianças.

Reforço da conectividade. Para o BM é urgente o reforço da infraestrutura de transportes – especialmente do transporte aéreo e do transporte marítimo – através de parcerias público-privadas. Também são necessários melhores serviços de tecnologia da informação e comunicação, bem como uma melhor gestão do setor de energia.

Redução da elevada dívida pública. Neste particular, o estudo recomenda melhoria na eficiência técnica e operacional das empresas estatais, por forma a reduzir as grandes perdas que o Governo teve que cobrir com o Orçamento de Estado. Por outro, um envolvimento melhor e mais sistemático da diáspora no investimento no país também poderia ajudar a mobilizar recursos.

Tornar o setor público mais eficaz. Para o efeito, o estudo identifica várias medidas concretas, designadamente: i) melhorar as normas e procedimentos governamentais antiquados; ii) fortalecer a coordenação entre os serviços públicos; iii) mudar a ênfase do processo para os resultados; iv) melhorar o acompanhamento de desempenho e avaliar os principais programas que exigem melhor acesso aos microdados; e v) melhorar o relacionamento entre o setor público e o setor privado.

Em conclusão: para que possa resolver os desafios do “triângulo mágico”, ou seja, atingir o tão almejado progresso através de um crescimento económico robusto e sustentável, que lhe permita criar emprego e reduzir a pobreza, Cabo Verde precisa agir rapidamente. O país deverá promover ações corretas e criar as condições apropriadas para atrair o interesse do setor privado visando a diversificação da nossa economia, tornando-a mais resiliente e com maior capacidade para tirar proveito das novas oportunidades, nomeadamente nas áreas que têm que ver com a economia azul, a economia digital, a transição energética e uma agricultura e pecuária de maior produtividade e rendimento.

Praia, 28 de junho de 2021

*Doutor em Economia

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 722, de 01 de Julho de 2021

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