Isa Margarida dos Santos, viúva de Autolindo Andrade, jovem assassinado em 2015, pelo emigrante Arlindo Teixeira, em Santo Antão, recorda o companheiro como um pai amoroso e uma pessoa que se dava bem com todos. Da justiça, esta mãe de quatro filhos, todos menores, já perdeu a esperança. Desempregada, da prometida indemnização de 250 mil escudos pela perda do marido, nunca viu um tostão.
Segundo Isa Margarida dos Santos, o companheiro com quem vivia e teve um filho, hoje com sete anos, era um jovem de fácil convivência, que se dava bem com toda a gente.
“Nunca mostrou nenhum sinal de violência, nem para mim nem para os outros. Era um pai amoroso”, recorda a jovem, agora com 34 anos, ao A NAÇÃO, a partir de Caibros, na Ribeira Grande de Santo Antão, onde continua a viver.
Na altura em que um desentendimento entre Autolindo e Arlindo Teixeira resultou na morte do companheiro, o
filho do casal tinha um anoe sete dias. Além desse filho, Isa tem outros três filhos, hoje com 13, 12 e nove anos, respectivamente. Todos estão na escola.
A jovem viúva, que tem trabalhado como empregada doméstica, neste momento está desempregada, já que, conforme revelou ao A NAÇÃO, um idoso de quem vinha a cuidar acabou por falecer recentemente. Até então, o seu rendimento médio era de cerca de oito mil escudos mensais.
“Tenho criado os meus filhos como posso. Agradeço a Deus que eu não pago renda”, sublinhou, explicando que vive na casa de um casal de idosos que estava a seu cuidado na altura em que o marido foi assassinado.
“Quando o Autolindo morreu mudei para lá. Mais tarde os idosos faleceram, mas tenho muito a agradecer ao filho desse casal que me permitiu continuar naquela casa. É uma grande ajuda para mim”, diz, agradecida.
Desgastada com a (in)justiça
Para o filho de Autolindo, na época com um ano e sete dias, o Tribunal de Santo Antão, que julgou o caso na primeira instância, estabeleceu uma indemnização de 250 mil escudos (e não 300, como Isa nos revelou), que até hoje não lhe foi entregue, já que o caso continua por transitar em julgado, com os sucessivos recursos que foi tendo por parte do advogado de Arlindo Teixeira.
“O advogado Amadeu Oliveira sempre me disse que ainda seríamos nós a indemnizar o Arlindo Teixeira. E, de facto,
até hoje o meu filho não recebeu nada”, declara a nossa entrevistada, desconsolada com a sua sorte.
Isa diz-se desgastada com o curso do processo na justiça dos homens, restando-lhe agora acreditar na “justiça de Deus”.
“Na altura disseram-me no tribunal que a criança seria indemnizada e orientaram-me a contratar um advogado.
Com quatro filhos para cuidar, sozinha, não tinha como pagar um advogado. Tive então de recorrer à Casa do Cidadão para que me fosse atribuído um advogado oficioso”, recorda também.
Após o pedido, feito pela advogada (estagiária) que pegou no caso, Isa foi contactada pelo escrivão do tribunal, para entregar, no dia seguinte, um documento do banco, em nome do filho, para que fosse dado andamento ao processo.
“Assim fiz. No entanto, quando cheguei disseram-me que o processo já tinha sido enviado para a Praia. Voltei para casa com o documento, à espera de uma outra chamada, que nunca aconteceu. Sempre que ia lá perguntar pelo processo davam-me uma desculpa diferente, até que decidi desistir, pois, com quatro filhos para sustentar, o dinheiro que eu gastava em deslocações dos Caibros para a Ponta do Sol fazia-me muita falta”, declarou.
Segundo Isa Santos, ao contrário de Arlindo Teixeira, ela e a família de Autolindo não têm dinheiro para suportar os gastos de um processo no tribunal, nem um advogado como Amadeu Oliveira para fazer o barulho que faz na comunicação social em torno deste assunto.
“Hoje, deixo tudo nas mãos de Deus, é o consolo que me resta”, desabafa. “Com a ajuda de Deus espero ter força e coragem para continuar a criar os meus quatro filhos, é este o meu consolo, porque da justiça dos homens nada mais espero”.
Família apresenta versão desconhecida pela opinião pública
Na passada sexta-feira, 02 de Julho, o A NAÇÃO-online publicou, pela primeira vez, a versão da família de Autolindo Correia Andrade, que se manifestou indignada com a notícia da fuga de Arlindo Teixeira para a França, país onde residia antes do crime ocorrido em 2015 na ilha de Santo Antão.
Aldevino Andrade diz ter presenciado a morte do irmão
Aldevino Andrade, que na altura assistiu à morte do irmão, apresentou ao nosso online a sua versão dos factos que, segundo diz, têm sido deturpados por Amadeu Oliveira e seu constituinte, Arlindo Teixeira.
A família de Autolindo questiona, antes de mais, a facilidade com que o referido cidadão saiu do país, estando em prisão domiciliária e colocou a hipótese de o mesmo ter tido a ajuda de alguma instituição para essa evasão, através de Amadeu Oliveira, este último que já se encontra em solo nacional, “a rir-se de toda a gente”.
Tanto o advogado como o defendido reforçaram que o acto que tirou a vida do jovem em 2015, na localidade de Caibros da Ribeira Grande, Santo Antão, foi em legítima defesa, versão que, aliás, segundo Amadeu Oliveira, foi validada pelo Tribunal Constitucional, ao deitar por terra a pena inicial, de 11 anos de prisão, atribuída pelo Supremo Tribunal de Justiça a Arlindo Teixeira, reduzida depois para nove anos, mantendo a indemnização de 250 mil escudos.
Entretanto, Aldevino garante que não houve necessidade de legítima defesa, já que “em nenhum momento houve agressão por parte do irmão”, desmentindo, ainda, a acusação feita pelo acusado, que diz que a vítima o teria agredido por três vezes, quebrando-lhe o braço e facturando-lhe o joelho.
“Como alguém pode agir em legítima defesa se em nenhum momento houve agressão antes de golpear o meu irmão com a faca. Estavam presentes mais de 50 pessoas, destes dois ou três testemunharam a favor do Arlindo e cerca de 30 a favor do meu irmão?”, avança o jovem.
Para Aldevino, se fosse uma atitude tomada em legítima defesa, o golpe não teria sido para matar. “Se fosse legítima defesa ele não dava a facada para matar, poderia até feri-lo, mas ele acertou para matar”, diz o irmão, que segurou a vítima nos braços após ser atingida.
Justiça deixa a desejar
Tal como defende a viúva de Autolindo (Isa Santos), toda a família da vítima considera a pena injusta desde o primeiro momento quando foram decretados 11 anos de prisão para o agressor e uma indemnização de 250 mil escudos. Neste momento, os familiares de Autolindo mostram-se, ainda, mais desacreditados que nunca e dizem que, dentro de um ou dois anos, o emigrante estará de férias em Cabo Verde como se nunca nada tivesse acontecido.
“Amadeu agora fala em adulteração de provas.
Como é possível alterar ou corromper as declarações de cerca de 30 pessoas e fazer com elas digam todas a mesma coisa ao juiz? Às vezes, até duas pessoas não conseguem fazer isso pois sempre falham em algum detalhe agora imagina em 30”, indaga.
Outro aspecto que Aldevino realça nesta história é o facto de não ter conseguido, junto do tribunal da Ribeira Grande, uma certidão da sentença dada na altura a Arlindo Teixeira.
“Desde que o Arlindo saiu da cadeia, pela primeira vez, informei-me com um advogado se havia a possibilidade de a nossa família fazer alguma coisa. Ele disse-me que para ajudar-me precisava da certidão da sentença. Na altura, já vivia na ilha do Sal, tirei férias e fui a Santo Antão propositadamente para conseguir essa certidão. Primeiro disseram-me que estava na Praia, e, dias depois, disseram-me que afinal não estava na Praia, e nunca mais soubemos do paradeiro do documento”, recorda, alegando que com isso a família ficou de mãos atadas.
Ao fim de todos estes anos de recursos e mais recursos por parte de Arlindo Teixeira, a família de Autolindo diz não acreditar que a justiça venha a ser feita.
“O meu filho agora está debaixo da terra. Não teve justiça aqui, mas a justiça divina não falha”, desabafa a mãe, Maria Serafina Flor, em reacção à notícia da fuga daquele emigrante.
Já para Aldevino Andrade, a justiça de Cabo Verde tem medo de Amadeu Oliveira, “porque ele diz e faz o que bem entender e nada lhe acontece”.
Na defesa do seu cliente, Amadeu Oliveira tem dito que os familiares de Autolindo Andrade pretendem de Arlindo Teixeira uma indemnização de 4 mil contos. Em resposta também Aldevino Andrade diz não saber onde esse advogado foi buscar esse valor.
Momentos que antecederam à alegada agressão
Aldevino Andrade conta que no dia do crime ele e o irmão estiveram juntos a trabalhar. No final da tarde, o jovem saiu para passear com o filho de um ano. No regresso, prossegue, o mesmo teria começado a sentir tremores e entregado a criança ao primo, que, por sua vez, o levou para a casa da avó.
O jovem teria arremessado, sem motivo aparente, uma pedra em direcção a um grupo de pessoas entre as quais estava Arlindo Teixeira e também o próprio pai da vítima, António Andrade.
Apesar de não ter atingido ninguém, o gesto originou uma discussão entre o agressor e a vítima. O barulho da altercação teria feito com que cerca de 50 pessoas juntassem no local, segundo conta o irmão.
Após a discussão, a vítima teria ainda pedido desculpas a Arlindo Teixeira, que reagiu mal, ameaçando-o de morte, segundo conta o irmão.
“Nesse momento, o meu irmão exaltou-se ainda mais, foi em direcção a uns blocos, levantou um e bateu no chão. Tentei segurá-lo e levá-lo para casa, mas ele não quis. Dirigiu-se em direcção ao Arlindo Taixeira e ao chegar perto levou a facada”, descreve.
Arlindo Teixeira, por sua vez, alega que o jovem teria quebrado o seu braço e fracturado o joelho, teoria também
desmentida pela família da vítima.
“Toda a gente sabe que é mentira porque eles não tiveram nenhum contacto para isso acontecer, quanto menos para fraturar o joelho ou quebrar o braço”, declara.
Família de Autolindo pode processar o Estado de Cabo Verde
De acordo com um jurista abordado pelo A NAÇÃO, os familiares de Autolindo Andrade, assassinado por Arlindo Teixeira, em 2015, em Santo Antão, podem processar o Estado por denegação da justiça, ao permitir a
fuga desse cidadão para a França. Desse processo poderá resultar uma indemnização a favor dos queixosos.
Processo por permitir fuga para o estrangeiro
O problema é saber se os herdeiros (a viúva e o filho), além de outros familiares, estarão em condições de enfrentar o Leviatão crioulo num processo que poderá ser longo e desgastante.
“A família de Autolindo Correia tem todo o direito de pôr uma acção civil contra o Estado de Cabo Verde, por permitir a fuga de Arlindo Teixeira para o estrangeiro, impedindo assim que ele cumprisse a pena a que fora condenado pelos tribunais do país”, resume a nossa fonte.
“Para todos e os devidos efeitos”, lembra e sublinha, “Arlindo Teixeira estava sob a guarda do Estado de Cabo Verde pelo homicídio contra o cidadão Autolindo Andrade. Independentemente das responsabilidades mandadas apurar sobre a fuga, a nível da polícia de fronteiras, a responsabilidade maior dessa evasão é do Estado de Cabo Verde”.
Viuva e filho abandonados à sua sorte
Para este analista, a situação em que se encontra a viúva e o filho de Autolindo Andrade é mais um “claro e triste exemplo” do “funcionamento” da justiça no país ou de como esta é feita em nome do povo e do Estado de direito democrático.
“Por ser gente pobre, sem capacidade de fazer barulho, a viúva da vítima do emigrante foi deixada à sua própria conta.
O próprio valor da indemnização de 250 mil escudos fixado pelo Tribunal da Comarca de Santo Antão, a favor dos herdeiros da vítima, atesta como a justiça é exercida, isto é, mata-se e o culpado é condenado a pagar 250 mil escudos. No mínimo, é de se estranhar como é que um juiz fixa esse valor como indemnização pela perda de uma
vida, o Ministério Público não recorre da sentença, e o próprio Supremo Tribunal, diante desse valor, não se atém a esse aspecto, ainda que oficiosamente, corrigindo a injustiça”.
Para a mesma fonte, tratando-se de gente pobre e humilde, colocada à margem do sistema em que todos vivemos, desde a primeira hora, a família da vítima ficou sem voz.
“Nem o Ministério Público, nem a Provedoria de Justiça, nem a Comissão Nacional de Direitos Humanos se interessou pelo caso dessa mulher, perdida lá no interior de Santo Antão, com quatro filhos por cuidar. Pelo contrário, entre a história do emigrante preso injustamente e os familiares de um pobre desgraçado, os gestos foram sempre no sentido de apoiar Amadeu Oliveira na sua ‘luta heróica’ contra os tribunais”, ironiza o nosso interlocutor.
Antes tarde que nunca
Felizmente também, acrescenta jurista ouvido pelo A NAÇÃO, a fuga de Arlindo Teixeira para a França teve o condão de despertar a opinião pública para este caso, vendo-o agora na perspectiva dos familiares da vítima.
“Só na semana passada, através do vosso online, é que os familiares de Autolindo Correia passaram a existir, passaram a ter voz. Antes tarde que nunca”, congratula-se.
Por fim, o nosso interlocutor reitera que há razões mais que suficientes para os familiares de Autolindo Andrade
avançarem com uma “acção civil contra o Estado, por negligência no cumprimento do seu dever de ver um homicida a pagar pelo crime que cometeu, no território de Cabo Verde, contra um nacional, fora os danos morais e o sofrimento causados à família pelo referido cidadão evadido”.
(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 723, de 08 de Julho de 2021)